sábado, 11 de maio de 2024

Didi, o Mito

*Texto de Beto Mussa, sobrinho de Didi

Quando pensei em escrever este pequeno texto sobre a vida de Didi – meu tio, que foi poeta da União da Ilha e do Salgueiro, e um dos maiores e mais vitoriosos compositores de todos os tempos – me preocupei em separar a história das muitas lendas que circulam em torno dele. Mas logo me dei conta de que o homem e o mito se confundem.

Didi era o tio gente boa, era o tio que gostava de futebol, que jogava bola com a molecada. Era Flamengo doente e fez muitos sobrinhos traírem o time dos pais para ingressarem na massa rubro-negra – meu caso, por exemplo.

Era também o tio conquistador e mulherengo, que provocava escândalos na família. Sobre isso, aliás, não se falava. A vida particular de Didi (para nós, apenas o “tio Gustavo”) estava envolvida num halo de mistério. Minha avó – alagoana rígida, que fazia um delicioso caruru mas era muito católica – não gostava da vida que Didi levava. Naquela época, nenhum dos sobrinhos sabia por quê. Mas eu tive a sorte de descobrir, por acaso. 

Sempre gostei de samba, porque minha mãe – irmã do Didi – só escutava rádio que tocasse samba. E foi num dos almoços familiares de domingo, na casa da minha avó, que o “tio Gustavo” me pegou batucando e cantando um samba de enredo. 

Deve ter sido uma emoção forte, para ele, ver um sobrinho seguir espontaneamente o caminho do tio. Para mim, foi uma vida nova que se abriu. Porque eu passei a ser o companheiro de Didi, o sobrinho mais chegado e preferido. Aprendi muita coisa – sobre samba, sobre mulheres, sobre a rua. 
Didi passou a me levar com ele, em segredo, à União da Ilha. Tudo que Didi fazia era cercado de algum tipo de mistério. E eu fui aos poucos penetrando nos sentimentos dele e conhecendo melhor o conflito interior em que ele se debatia. É isso que vou contar.

Minha avó tinha sido uma mulher rica, mas ficou reduzida à miséria quando meu avô morreu. A família, que morava num casarão na Tijuca e tinha até motorista particular, foi viver de favor no porão de uma casa simples, na Ilha do Governador. Didi devia ter uns três anos nessa época. 

Clique para ampliarE ele cresceu na Ilha. Era um garoto de 18 anos quando ganhou o primeiro samba de enredo, em 1955. Entre 1954 e 1959, quando a União desfilou apenas no Cacuia, Didi, com seu grande amigo e principal parceiro Aurinho da Ilha, ganhou 5 sambas. Um deles, “Epopéia do Petróleo”, de 1956, impressionou o imenso Jamelão, que acabou gravando o samba numa de suas antologias de sambas de enredo, ao lado de nada menos do que “Seca do Nordeste”, o clássico da Tupi de Brás de Pina, que o próprio Jamelão considerava o maior de todos os tempos.

Em 1960 a União da Ilha passou a desfilar na Praça Onze, no grupo 3. Didi e Aurinho foram os autores do primeiro samba, “Homenagem às Forças Armadas”. Entre 1960 e 1971, a parceria ganhou 6 sambas, ou seja, metade dos que disputou.

Nessa época, no entanto, algumas coisas importantes aconteceram na vida de Didi. Disse que ele vivia um conflito. É que minha avó depositava nele uma grande expectativa, tinha feito muitos sacrifícios para dar a ele uma boa educação, para que que ele “fosse alguém”.

Clique para ampliarAtendendo ao sonho da minha avó, Didi se formou em Direito, no início dos anos 60. E alguns anos depois foi nomeado Procurador da República. Passou a viver em dois mundos, a ter diante de si duas trajetórias, duas possibilidades de sucesso.

Mencionei os seis sambas ganhos por Didi e Aurinho na União da Ilha, então uma escola do terceiro grupo. Didi amava a União; mas também era salgueirense. E, também com Aurinho, participou de quatro disputas de samba no Salgueiro, entre 1966 e 1969. Ganhou duas vezes, com “História da liberdade no Brasil” e “Dona Beja, feiticeira de Araxá”, em 1967 e 1968. E foi vice-campeão nas outras.

Esse foi o grande dilema da vida do meu tio: seguir a carreira jurídica e satisfazer o desejo da mãe; ou ser compositor de uma grande escola de samba, como o Salgueiro, e ser feliz, embora entrando em choque com a família quase inteira.

Porque Didi não conseguia conciliar essas duas vidas. Lembro que ele me dizia que, para fazer samba, precisava “se brutalizar”. Não que ele considerasse o samba coisa menor, pelo contrário. Mas, para ele, forçado pela mãe a ser uma “pessoa importante”, a resgatar a “nobreza” familiar perdida após a morte do pai, escolher uma via significava renunciar à outra. Porque era impossível apenas “fazer” samba. A inspiração só vinha se houvesse uma entrega total – e isso envolvia rua, noite, mulheres, bebida. Didi não conseguia fazer samba sem beber.

Ele até tentou se esconder, não quis assinar os sambas ganhos no Salgueiro, para não prejudicar sua imagem no meio jurídico, certamente muito preconceituoso. Data dessa época a lenda de que Didi era o autor oculto de uma infinidade de sambas, e de que a família não permitia que ele revelasse sua identidade. Não era bem assim: ele continuava assinando na União da Ilha, escola que na época chamava menos atenção, e participava aberta e ativamente das disputas no Salgueiro. 

Clique para ampliarEm 1971, tendo ganho “Ritual afro-brasileiro” na União, Didi encerrou sua primeira fase como compositor. Para fazer a mãe feliz, para se reintegrar à vida familiar, Didi passou a ser apenas o doutor Gustavo Adolpho de Carvalho Baeta Neves. O temperamento rebelde, todavia, ainda fervia dentro dele.

Não suportando mais a formalidade e a empáfia da Procuradoria da República, Didi pediu exoneração do cargo de procurador para ser advogado de grandes empresas do setor imobiliário. Ganhou dinheiro, foi morar em Botafogo, aprendeu alemão, comprou sítio em Bacaxá – para onde levava a família e dava mordomia a todo mundo.

Só que essa tentativa durou pouco tempo. Imenso foi o esforço que ele fez para tentar corresponder aos ideais da mãe. Mas há sentimentos impossíveis de conter. E Didi gostava mesmo era de samba. Não sei se aquele almoço de domingo, quando ele me ouviu batucar um samba de enredo e me tomou como o filho que ele nunca teve, influiu na sua decisão. Mas foi exatamente depois disso que ele voltou à União da Ilha. 

E voltou por cima, ganhando logo a primeira disputa, em 1978. Como estava afastado da ala de compositores, e houvesse na escola a obrigação de cumprir quarentena, Didi não pôde assinar “O amanhã”; mas no ano seguinte já assinava outro samba vencedor, com Aroldo Melodia: “O que será?”. Com Mestrinho, fez seu samba de maior sucesso: “É hoje!”, de 1982; e de novo com Aurinho ganhou seus últimos sambas na União da Ilha, em 1984 e 1985: “Quem pode pode, quem não pode, quá” e “Um herói, uma canção, um enredo”.

Pelas minhas contas, Didi ganhou ainda 4 sambas no antigo Bloco do Boi da Freguesia, hoje escola de samba Boi da Ilha. Um deles, “O segredo das águas dançantes”, era considerado, por ele próprio, sua obra-prima. 

Clique para ampliarGanhou também mais dois sambas no Salgueiro – um deles que não pôde assinar, em 1983, em parceria com Bala e Celso Trindade, porque estava também concorrendo na escola insulana. Aliás, o samba concorrente da União nesse ano, que ele considerava um dos mais bonitos da sua carreira, foi solenemente cortado quando o então presidente Peixinho descobriu que Didi tinha posto samba na escola da Tijuca. 

O último samba ganho no Salgueiro foi também o último da sua vida: “E por que não?”, de 1987. Didi vinha num processo radical de afirmação de identidade. Tendo vivido a maior parte da vida num conflito ético e emocional, tendo que escolher entre o samba e a carreira jurídica, acabou não resistindo; e, quando optou pelo samba, não fez concessões. 

Desde que voltou à União da Ilha, Didi simplesmente abandonou o escritório, começou a gastar o dinheiro acumulado, a vender os bens, a beber diariamente (lembro que ele acordava de manhã e esvaziava de cara um copo de uísque), a virar noite, a freqüentar rodas de samba, enfim, a viver com ênfase a vida que sempre quis ter vivido, a vida de sambista.

Nem o derrame o tirou do samba. Mesmo com todas as proibições médicas, assim que voltou a andar, burlava nossa vigilância e fugia para a rua. Perdi a conta das vezes em que fui buscá-lo no Salgueiro ou num buteco da Praça Saenz Peña. 

Clique para ampliarDidi desceu para sua última morada coberto pelos estandartes tricolor e alvi-rubro. Quatro anos depois, recebia a maior homenagem que pode receber um ser humano sobre a face da terra: ser enredo de uma escola de samba. A União da Ilha desfilou em 1991 com “De bar em bar: Didi, um poeta”, uma belíssima obra. Mas quem canta hoje esse samba talvez não tenha idéia da grandeza e do drama íntimo desse homem que andava de bar em bar. 

Disse no início que, na vida de Didi, os fatos se confundem com a lenda. É verdade. Quem viveu o que ele viveu, quem desprezou o que ele desprezou, quem sentiu o samba como ele sentiu, não pode ser um personagem da vida real – mas o herói de um mito. O meu mito.

*Texto de Beto Mussa, sobrinho de Didi
 

  • Ademir da Silva · São Paulo · 1.550 seguidores

    Belo texto, eu me emocionei quando via o FRANCO, virar o bumbum pra torcida e cantar o refrão fazendo a quadra vir a baixo, tive o prazer de acompanhar a vitória do samba que prestou esta grande homenagem ao mestre dos mestres. CANTA MINHA ILHA!
  • Elmo Monteiro · Rio de Janeiro

    apenas ‘saudade Didi’.
       
    • Adelino Coelho  · Estácio

      Didi foi um mestre, realmente um mito entre os grandes compositores de samba de enredo. Nunca se sabe o que existe por trás da vida oculta de um homem, mas sabemos o resultado desta angústia, quando este homem é um compositor.

    http://saideira.galeriadosamba.com.br/post/didi-o-mito/75/sai/1/

     

     

    Redação

    5 Comentários

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    1. Para mim, as primeiras

      Para mim, as primeiras estrofes do “É HOJE” são definitivas, Minha alegria atravessou o mar, e ancorou na passarela . . . figura poética perfeita . . . . . . será, que eu serei o dono desta festa ???? . . . . .  eitaaaaaaaaaaaa . . . . .

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