Os 85 anos de Dolores Duran

(Rio de Janeiro, 7 de junho de 1930 — 24 de outubro de 1959) 

Dolores Duran, nome artístico de Adiléia Silva da Rocha, era filha de Armindo José da Rocha e Josepha Silva da Rocha.

O viúvo Armindo tinha dois filhos (Hilton e Hilda) ao se casar com Josepha. Ela, por sua vez, era mãe de Adiléia e registrada por Armindo como se fosse sua filha. Seis anos depois, nasceria Denise, a Lela, a caçula da família. Nunca conheceu seu pai biológico.

Seu Armindo era sargento da Marinha e passava a maior parte do tempo no quartel. Em casa, gostava de tocar violão e de dançar valsa com as filhas. Dona Josepha cuidava da casa e complementava o orçamento como costureira. Passava os dias cantarolando músicas de sucesso e improvisando versos sobre qualquer tema. O violão de Armindo, as melodias de Josepha e o rádio sempre ligado, sem dúvida, foram importantes na formação musical de Adiléia.

A menina soltou a voz pela primeira vez aos 5 anos, fantasiada de “anjo cantor”, quando desfilava no rancho, com os pais, durante o carnaval de 1935. Ainda criança participou de vários programas de calouros no rádio.

Com apenas 11 anos, recebeu seu primeiro prêmio no programa “Calouros em Desfile”, de Ary Barroso, cantando “Vereda Tropical”, um bolero de Gonzalo Curiel. Ary, que detestava que seus calouros cantassem em outro idioma que não fosse o português e adorava humilhar os candidatos, olhou com certo desdém para aquela caboclinha pretensiosa. Dolores impressionou não somente o apresentador, mas toda a plateia presente, que ficaram admirados com a pronúncia perfeita do seu espanhol e da sua voz límpida e potente. Dos 12 aos 14 anos atuava em peças infantis no Teatro Carlos Gomes ficando conhecida como  “a voz mais bonita do teatro infantil”.

A menina humilde não quis mais ir à escola e depois da morte do padrasto trabalhou como modista e balconista para ajudar no sustento da casa, sem nunca deixar de participar de programas de calouros. Apesar de não ter concluído os estudos era inteligente, sensível, interessada em aprender e lia tudo que lhe caísse nas mãos.

Renato Murce instituiu concurso em seu “Papel Carbono”, a fim de escolher “uma cantora mexicana” para o elenco da Rádio Nacional. Dolores se inscreveu utilizando o pseudônimo Helena Martins. Ela cantou pela primeira vez no microfone da PRE-8, no Papel Carbono, de  7 de julho de 1946, imitando Libertad Lamarque, e obteve o primeiro lugar.

Em uma de suas participações em programas de calouros, causou boa impressão em Dr. Lauro Pais de Andrade e esposa, que a convidaram por para fazer um teste na boate Vogue, uma das mais sofisticadas do Rio, cujo dono, o Barão von Stuckart, era amigo do casal. Aprovada, obteve um contrato de crooner. Tinha só 16 anos, e por isso foi obrigada a falsificar a idade em seu documento para poder trabalhar na noite. Para brilhar nos palcos cariocas escolheu o pseudônimo de Dolores Duran, nome que misturava a influência dos ritmos latinos com a cultura cinematográfica norte-americana.

Cantou em várias outras boates e a exigência de ter de embalar a plateia em diversos estilos musicais lhe daria grande versatilidade. Sua sensibilidade e sua afinação emocionavam o público. Interpretando de forma singular, exibia um belo domínio vocal e era capaz de fazer sofisticadas improvisações jazzísticas. Vai para a Rádio Nacional a convite do apresentador César de Alencar. Ao apresentá-la nos programas, ele dizia: “Dolores e seus candelabros!!!”, em referência aos brincos grandes e chamativos que a cantora gostava de usar. Mas seu apelido nos ambientes do rádio e da noite era “Bochecha”, por causa do rosto redondo e rechonchudo.

Era uma grande imitadora de cantores nacionais e internacionais, reproduzindo com perfeição os timbres de voz, inclusive dos homens. Autodidata, dominava o inglês, o francês, o italiano e o espanhol ouvindo músicas. Em passagem pelo Rio, a cantora Ella Fitzgerald elogiou Dolores  chegando ao ponto de dizer que foi na voz da cantora brasileira que ouviu a melhor interpretação de “My Funny Valentine”, um clássico da música norte-americana.

Amiga dos jornalistas boêmios Antônio Maria, Sérgio Porto, Fernando Lobo e Lúcio Rangel, eles asseguram seu prestígio na imprensa e na noite carioca escrevendo publicações sobre ela, servindo para espalhar seu talento: Disse Maria: “Dolores Duran falou de sentimentos como ninguém, em todas as línguas. Seu idioma era o amor!”

Muito romântica e à frente do seu tempo, Dolores correu pela vida sem freios. Era namoradeira e aproveitava todas as oportunidades. O primeiro namorado foi um garçom da boate Vogue. Um dia, disse a um ex-namorado que pedia para reatar: “Repeteco não dá não! Se não deu certo na primeira, não dá certo na segunda. Isso aqui não é gravação”.

Entre seus namorados estiveram Billy Blanco, com quem namorou por 6 meses, de quem também gravou músicas. Com João Donato, o relacionamento não foi em frente devido à oposição da família do rapaz. João Donato tinha 17 anos, enquanto Dolores, 21. Quando Donato foi morar no México o namoro acabou.

Em 1950, passou a dividir um apartamento com a cantora Julie Joy, em Copacabana. Em fins de 1951, na gravadora Star, gravou o primeiro disco, lançado para o carnaval do ano seguinte. Em 1952,  gravou “Um amor assim”, de Dora Lopes, e  “Outono”, de Billy Blanco. Em 1954, foi contratada pela Copacabana e estreou com “Tradição”, de Ismael Silva e “Bom é querer bem”, de Fernando Lobo. No mesmo ano, gravou “Canção da volta”, de  Antônio Maria e Ismael Neto. Em 1955, “Praça Mauá”, de Billy Blanco, “Carioca 1954”, de Antônio Maria e Ismael Neto e “Pra que falar de mim”, de Ismael Neto e Macedo Neto. Nessa última gravação, ficou conhecendo Macedo Neto, com quem passa a viver junto.  

No mesmo ano, aos 24 anos, foi vítima de um infarto, ficando internada trinta dias no hospital. A doença foi consequência de uma febre reumática (doença inflamatória autoimune provocada por uma bactéria) que Dolores contraiu em 1938. O médico avisou que talvez ela não chegasse à idade adulta. Apesar das recomendações médicas, Dolores resolveu não segui-las, agravando seus problemas cardíacos.

Dolores  chegou a engravidar, mas perdeu o bebê e ficou estéril. Após a perda do filho, entrou em depressão e resolveu se casar oficialmente com Macedo. Um fato que a marcou foi a proibição do comparecimento de sua mãe ao casamento deles pelo fato da mãe dela ser negra, o que a deixou perplexa e enfurecida. A única que foi ao seu casamento foi a irmã Denise, pois sua mãe e suas outras irmãs não conseguiram ir por tamanha ofensa. Dolores nunca perdoou o marido, o que contribuiu para a separação do casal.

A melancolia tornou-se presente na vida de Dolores Duran. Por conta da grande vontade de ser mãe, adota uma menina, a pequena Maria Fernanda. A adoção deu-se quando ainda era casada com Macedo que, mesmo depois de separado de Dolores, registrou-a em seu nome.

Em 1955 e 1956, apresentou-se no Uruguai e na Argentina. Lançada em 1957, a canção “Por causa de você” tem uma história: quando Tom Jobim ainda não era muito famoso, mostrou à Dolores uma melodia que havia feito com Vinícius de Moraes. Dolores escutou a belíssima melodia, encantou-se e fez, de pronto, o poema. O instrumento que tinha nas mãos para escrever e não perder o momento de inspiração era um lápis de sobrancelha. Ao final deste encontro casual entre ela e Tom, Dolores escreve a Vinícius: “Esta é a letra que fiz para esta música, se não concordar, é covardia”. O poeta, então, admitiu que a letra de Dolores era melhor e aceitou-a.

“Por causa de você” recebeu diversas regravações. Entre elas estão as de Elizeth Cardoso e Ângela Maria, de 1958. Dois anos depois, Silvia Telles gravou uma versão em francês, intitulada de “Gardez moi pour Toujours” (“Guarde-me para Sempre”), com letra de Serge Rodhe. Em 1971, sob forte influência da Bossa Nova, Frank Sinatra faz uma versão em inglês, com o título de “Don´t ever go Away”. O samba-canção foi regravado por Nana no álbum “A Noite do Meu Bem”: as canções de Dolores Duran”.

Dolores e Jobim criaram mais duas canções juntos: “Se é por falta de adeus” de (1955) e “Estrada do sol” (de 1958). Entre as três, a preferida de Jobim era Por causa de você.

Em 1957, estreou na TV Rio, no programa “Caboclo” e depois em “Noite de Gala”. Foi um ano de muita televisão, muito rádio e muitas turnês. Ela seria a quarta cantora com mais participações na programação da Rádio Nacional no primeiro semestre de 1957.

Em 1958, com Nora Ney, Jorge Goulart, Maria Helena Raposo, o Conjunto Farroupilha e uma orquestra comandada por Paulo Moura, excursionou pela então União Soviética. Em Moscou separou-se do grupo, que seguia para China, e foi para Paris, onde permaneceu por cerca de um mês, apresentando-se num pequeno bar frequentado por brasileiros.

Rainha das noites de Copacabana, Dolores criou uma nova forma de interpretar o samba e compôs pérolas da nossa música. Copacabana foi o palco de sua trajetória, para quem a noite começava obrigatoriamente na boate Cangaceiro onde, quando estava especialmente feliz, bebia um coquetel de frutas. Porém, se um triste pressentimento lhe vinha – “a solidão vai acabar comigo”, como diz o verso de “Solidão”, uma de suas composições mais famosas –, uísque puro era a pedida. Batia um papo, soltava algumas piadas e depois ia cantar no Little Club. Dificilmente dormia antes do início da manhã; cantava até tarde nas boates, esticava o programa por aí e chegava a ir assistir à primeira missa do dia no Mosteiro de São Bento, com o fundo musical dos cantos gregorianos.

Apesar de ser autora de canções e letras em que o amor é cantado muitas vezes de forma triste e melancólica, Dolores foi uma mulher divertida, irônica e namoradeira, que vivia intensamente a noite carioca.

Mesmo sendo considerada a rainha do samba-canção, Dolores também foi apontada como uma precursora da Bossa Nova, por seu estilo inovador de cantar.

Negra, de rosto arredondado, os olhos sempre envoltos numa alegre melancolia, dentes da frente ligeiramente separados, corpo miúdo e um pouco gorducho, raciocínio rápido, vivaz, com um jeito meigo e triste. Para os amigos, entre eles os cronistas Sérgio Porto e Antônio Maria, ela era “uma falsa mulher alegre”. Para o público que apreciou suas interpretações e composições, ela foi uma estrela de brilho intenso e fugaz, que iluminou a música brasileira e se apagou subitamente, aos 29 anos.

O LP 78 rotações com os sambas-canções “A Noite de meu bem” e “Fim de caso”, interpretados pela autora, chega às lojas em 1959. Ainda em 1959, são lançados os discos “Esse norte é a minha sorte”, com baiões, xotes e forrós, incluindo “Prece de Vitalina”, parceria de Dolores com Chico Anísio; e o EP “Dolores Duran no Michel de São Paulo”.

Um mês depois do lançamento, no dia 24 de outubro de 1959, Dolores sofre um infarto fulminante no apartamento que aluga em Ipanema, logo após chegar de uma jornada pelas boates de Copacabana. Morreu de infarto tão precocemente e no auge da carreira, deixando um legado inesquecível para a MPB.

Homenagens:

Postumamente, ganha álbum-tributo de Lúcio Alves (1960), “Lúcio Alves interpreta Dolores Duran” e tem letras musicadas por Ribamar (“Ternura antiga”, sucesso de 1961 com Tito Madi) e Carlos Lyra (“O negócio é amar”, gravada por Nara Leão)

O primeiro grande resgate que se fez de Dolores Duran ocorreu em “Brasileiro, Profissão Esperança”, show que estreou em 1970 com Maria Bethânia e Ítalo Rossi, sob a direção de Bibi Ferreira. O espetáculo retrata as características de um povo, sob a ótica de Paulo Pontes, contadas através das músicas de Dolores Duran e os textos de Antônio Maria. Em 1974, foi remontado com maior repercussão, com Clara Nunes e Paulo Gracindo. Mais uma vez voltou à cena nos anos 1990 com Bibi Ferreira e Gracindo Júnior.

Em 1994 Nana Caymmi gravou um CD só com obras suas com o título A noite do meu bem – As canções de Dolores Duran

No final dos anos 90, o Centro Cultural Banco do Brasil apresentou o musical “Dolores, com texto de Douglas Dwight e Fátima Valença e direção de Antônio de Bonis. O elenco era estrelado por Soraya Ravenle e a direção musical coube a Tim Rescala. 

Em 2009 a gravadora Biscoito Fino lançou o CD “Dolores Entre Amigos, com gravações inéditas descobertas pela jornalista Ângela Almeida durante uma pesquisa para uma biografia sobre a vida de Tom Jobim.  Ainda em 2009, Projeto do CCBB relembra os 50 anos de morte de Dolores Duran.

Dolores foi objeto de biografias: “Dolores Duran:  a noite e as canções de uma mulher fascinante”, por  Rodrigo Faour, “A vida acaba um pouco todo dia”, de Angela  de Almeida e Dolores Duran” de Maria Izilda Santos de Matos.

Fontes:

Áudio de gravações de Dolores Duran

Dolores Duran no Dicionário Cravo Albin 

Dolores Duran na Enciclopédia Itaú Cultural 

Dolores Duran na Wikipédia 

Dolores Duran

Imagens de Dolores Duran

Dolores Duran, Estrada do Sol, por Eliete Negreiros  

Dolores Duran e Antônio Maria – Memória do Rádio 

Dolores Duran na Rádio Batuta 

Dolores Duran rompe com os comunistas – 1958 

Experiências boêmias em Copacabana: Dolores Duran, por Maria Izilda Santos de Matos 

Músicas para ouvir

A noite de Dolores Duran, por Amilton Pinheiro

Nina Becker canta Dolores Duran, por Luis Nassif

O samba da falsa mulher alegre, de Maria Izilda Santos de Matos 

Livros:

Dolores Duran:  a noite e as canções de uma mulher fascinante, por  Rodrigo Faour 

A vida acaba um pouco todo dia, de Angela  de Almeida 

Videos:

Brasileiro, profissão esperança

Participou do filme  “Rico Ri à Toa” (1957), de Roberto Farias.

 

 

Redação

9 Comentários

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  1. Cantoras do rádio das quais nunca nos esqueceremos

    Precisam sempre ser ouvidas, regravadas para que as novas gerações não as percam na história da música brasileira.

    As composições de Dolores Duran revelam um âmago totalmente feminino.

  2. Eu li este comentário na

    Eu li este comentário na madruga.Curti TUDO.

      Foi o comentário MOR que merece ser post.Obrigatório ser post.

      E com um detalhe:

          Nosso blogueiro é musical.( ele já disse sobre sua angústia entre ser economista ou crítico musical)

                  Eu tbm gosto.

                   Valeu .

                        Abraços !

           

          

    1. Terceira vez

      Essa é a terceira vez que eu tento emplacar uma homenagem a Dolores. Refiz o texto porque muitos links caem, muitos vídeos somem, mas, finalmente, saiu!!

      Obrigada, abraços!!

  3. Excelente post com vasto

    Excelente post com vasto material, maravilha. Parabens e obrigado. Dolores é uma das minhas cantoras favoritas, tem um CD da Revivendo mas aqui tem musicas que não tem lá.

  4. Parabéns, Mara

    Parabéns pela pesquisa e sensibilidade.

    Contam que houve um incidente de racismo com Dolores numa boate. Billy Blanco, que testemunhou o caso, respondeu com a canção antológica Olha a Banca do Distinto: 

    “Não fala com pobre, não dá mão a preto
    Não carrega embrulho
    Pra que tanta pose, doutor
    Pra que esse orgulho
    A bruxa que é cega esbarra na gente
    E a vida estanca
    O enfarte lhe pega, doutor
    E acaba essa banca
    A vaidade é assim, põe o bobo no alto
    E retira a escada
    Mas fica por perto esperando sentada
    Mais cedo ou mais tarde ele acaba no chão
    Mais alto o coqueiro, maior é o tombo do coco afinal
    Todo mundo é igual quando a vida termina
    Com terra em cima e na horizontal “

     

  5. Dolores

    Querida Mara, obrigada por trazer à baila as lembranças da carreira de Dolores Duran. Linda voz, pessoa e emocionante personagem e vida.

    Fica entre meus favoritos, pela qualidade do material aqui exposto. 

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