Nina Becker canta Dolores Duran

Nina Becker encontra seu melhor momento nessa beleza de CD, interpretando Dolores Duran acompanhada apenas de bandolim e violão.

 

Por um mundo Dolores
por Fred Coelho

São muitos os caminhos que levam um músico e visitar o repertório sonoro de outro músico. Pode ser um convite institucional, pode ser uma necessidade de pesquisar novas searas sonoras, pode ser até mesmo uma relação pessoal com a obra visitada. No caso de Nina Becker e Dolores Duran, temos um pouco de todas as opções acima.

Em 2012 o Canal Brasil convidou Nina para participar do programa Cantoras do Brasil, em que cantoras da atualidade homenageavam as de outras gerações. A sua sugestão foi imediata: sua homenageada seria Dolores Duran. E por que Dolores? Porque desde sua adolescência, no momento em que estamos definindo caminhos pessoais e estéticos, Dolores fez parte das escolhas de Nina. Seus discos foram ouvidos, suas músicas foram tocadas nos primeiros acordes de violão quando ela aprendia o instrumento.

Desde então, Dolores Duran foi sua fiel companheira. Mesmo assumindo em sua carreira uma sonoridade ligada às pontes possíveis entre o rock e a canção popular, seus shows volta e meia traziam no repertório canções ligadas a Dolores. As músicas que ouvimos aqui, portanto, não são fruto de uma fria seleção visando o sucesso ou de uma pesquisa de encomenda. Elas são parte da vida de Nina, cantadas na sua solidão com o violão, na sua memória sonora mais subjetiva. Como diz Nina no título do disco, esta é a sua Dolores.

E é importante dizer isso, pois Dolores pode ser muitas. Nascida e criada nos subúrbios da cidade, iniciando sua trajetória através do Rádio, até chegar à boemia musical e cultural de Copacabana, Dolores teve uma carreira intensa e fulminante (ela falece em 1959). Apesar disso, foi uma das poucas compositoras de sua geração, além de uma artista popular e uma mulher a frente do seu tempo. Escolher um caminho para visitar essa obra, propor uma interpretação pessoal, com novos arranjos a partir de instrumentos que não estavam nos arranjos originais, imprimir seu olhar pessoal sobre algo já definido pela voz de Dolores, tudo isso foram etapas que Nina Becker conseguiu vencer de forma decidida. Sua segurança em seguir tal caminho está clara quando ouvimos sua voz precisa em perfeito casamento com o violão de sete cordas de Lucas Porto e o bandolim de Luis Barcelos. Dois instrumentistas que transportam a voz de Nina e o universo de Dolores para novos planos de audição. Temos em suas cordas a invenção de novo caminhos sonoros para nos deleitarmos com a interpretação preciosa de Nina Becker. Esse trio em perfeita união faz com que tudo em Minha Dolores emane beleza, criatividade e cuidado com o trabalho feito. Além disso, deve ser ressaltado o movimento decisivo feito aqui pela cantora: ao abrir mão do rock como base sonora que a acompanha há dez anos (baixo, bateria e duas guitarras), Nina cai de cabeça em um novo universo cujo espaço aberto de possibilidades (e silêncios) amplia a força de seu trabalho. E assim, faz um disco em que suas escolhas renovadoras envolvem os riscos e o frescor inerentes à liberdade de inventar seu próprio som.

Mesmo que Minha Dolores parta de uma ligação afetiva de Nina com a homenageada (e sempre é bom lembrar que afeto não é apenas o que gostamos, mas também aquilo que nos afeta de alguma forma), ela não se amarra à ideia-chavão de interpretar apenas Dolores Duran. A partir de canções preciosas, o disco transmite para o ouvinte toda uma atmosfera de época. Nina consegue isso ao nos sugerir uma perspectiva mais ampla sobre o mundo de Dolores, que vai muito além de suas próprias composições. Faixa a faixa, entramos na ambiência sonora das boates de Copacabana, das ruas e dos corações cariocas dos anos 1950. Através da voz de Nina, ouvimos os dramas amorosos transformados em canção, lembramos de paixões esfaceladas que eram cantadas dentre fumaças e garrafas de uísque.

Ao apresentar esse olhar generoso para o que estava ao redor de Dolores, Nina Becker faz com que o repertório de Minha Dolores seja um dos seus pontos altos. Billy Blanco, Chico Baiano, Ismael Neto, Antonio Maria, os irmãos Flavio e Claudio Cavalcanti, Ismael Silva, Mario Faccini, Lucio Alves e a própria Dolores Duran são os compositores espalhados por treze faixas selecionadas com esmero. Sua relação afetiva e criativa com a música brasileira desse período, nos mostra como suas escolhas são certeiras. Fugindo do óbvio, ela nos mostra a força de um repertório que, por ter sido supostamente “superado” pela Bossa Nova, fica muitas vezes obscurecido ou até mesmo menosprezado dentre as atuais gerações. Nina e os músicos que a acompanham conseguem, em pleno 2014, levar a canção de fossa, o samba-canção, o bolero e os sucessos da rádio a um espaço de modernidade e qualidades indiscutíveis.

Minha Dolores, portanto, é a garantia de que nossa canção popular ainda guarda um manancial generoso em sua história quando reinventada de acordo com sua força e sua beleza. E, principalmente, quando isso é feito com qualidade e inteligência – dois atributos que Nina Becker nos apresenta aqui em sua melhor forma.

Luis Nassif

2 Comentários

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  1. Nina Becker e sua Dolores

    Fred Coelho e Nassif,

    Excelente comentário crítico sobre esse trabalho de Nina Becker, inovador em muitos aspectos. Mas sou suspeito para elogiar, já que o CD de Nina tem a participação do meu filho, Lucas Porto. 

    Chamo atenção para os ótimos arranjos de Luis Barcelos. Anote este nome, Nassif. Trata-se de um dos nossos melhores bandolinistas. Reparem que Luis Barcelos aplicou aos arranjos a linguagem musical do Choro e do samba genuíno. Os músicos tocam de forma livre, em arranjos abertos que facilitam as intervenções do bandolin e os fraseados do violão. 

    De certa forma o CD de Nina Becker é uma reunião de várias gerações, estilos e formações musicais. Mas, o mais importante é que é uma delícia ouvir cada faixa desse disco. 

    Abraço

    Henrique Marques Porto

     

  2. Ccorrendo o risco de parecer

    Ccorrendo o risco de parecer chato, queria apenas fazer um reparo que em nada diminui o valor da obra em si: como sempre acontrce com intérprete novos que resgantam músicas de outras gerações, falta o cuidado com o rigor da letra. Exemplo: em Estrada do Sol o verso é “…mas os pingos da chuva que ontem CAIU” (fala da cjhuva que caiu ontem). Isso me lembra também que todo intérprete novo de Garota de Ipanema deu para cantar “… mais cheia de graça num doce balanço A caminho do mar”. O original é …doce balanço, caminho do mar” muito mais poético. Deculpem-me mas como diz a canção em outro contexto “não me altere o samba tanto assim”. 

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