Liberdade de expressão, esse conto de fadas brasileiro, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Nossa constituição cidadã deve subordinar os contratos entre o Facebook e seus usuários ou deve ser subordinada pelo direito contratual?

Liberdade de expressão, esse conto de fadas brasileiro

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Ao decidir um caso envolvendo a violação do direito à liberdade de expressão de um cidadão, que casualmente é esse que vos fala, o Judiciário paulista proferiu a seguinte decisão:

“É certo que tons ácidos e jocosos podem ser aceitos em determinados grupos ou redes sociais. Entretanto, a parte ré imputa descumprimento aos termos anuídos no caso em tela. Tais regras foram aceitas segundo a liberdade contratual e, por si só, o bloqueio temporário de acesso não constitui cerceamento à liberdade de expressão. Importante ressalvar que a liberdade contratual deve ser exercida nos limites da função social do contrato, devendo-se prevalecer nas relações contratuais privadas o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual, observadas as alterações introduzidas pela Lei 13874/09 aos artigos 421 e seguintes do Código Civil de 2002.” (Processo no. 1020301-65.2021.8.26.0405)

Em dois processos de sua competência, o STF decidiu que a liberdade de expressão é uma cláusula potestativa, cuja observância não pode, portanto, ser ignorada nem pelos agentes do estado nem por empresas privadas:

3. A liberdade de expressão desfruta de uma posição preferencial no Estado democrático brasileiro, por ser uma pré-condição para o exercício esclarecido dos demais direitos e liberdades. 4. Eventual uso abusivo da liberdade de expressão deve ser reparado, preferencialmente, por meio de retificação, direito de resposta ou indenização. Ao determinar a retirada de matéria jornalística de sítio eletrônico de meio de comunicação, a decisão reclamada violou essa orientação. (Rcl 22328 / RJ – RIO DE JANEIRO, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Julgamento: 06/03/2018, Publicação: 10/05/2018, Órgão julgador: Primeira Turma)

1. A Democracia não existirá e a livre participação política não florescerá onde a liberdade de expressão for ceifada, pois esta constitui condição essencial ao pluralismo de ideias, que por sua vez é um valor estruturante para o salutar funcionamento do sistema democrático. 2. A livre discussão, a ampla participação política e o princípio democrático estão interligados com a liberdade de expressão, tendo por objeto não somente a proteção de pensamentos e ideias, mas também opiniões, crenças, realização de juízo de valor e críticas a agentes públicos, no sentido de garantir a real participação dos cidadãos na vida coletiva. (ADI 4451, Órgão julgador: Tribunal Pleno, Relator(a): Min. ALEXANDRE DE MORAE, Julgamento: 21/06/2018, Publicação: 06/03/2019 )

A liberdade de expressão é uma garantia constitucional especificada na constituição federal, cuja violação deve acarretar indenização por dano moral (art. 5º, incisos IX, da CF/88). Essa garantia tutelada pelos precedentes do STF mencionados foi simplesmente ignorada pelo juiz que proferiu a sentença transcrita no início.

Nossa constituição cidadã deve subordinar os contratos entre o Facebook e seus usuários ou deve ser subordinada pelo direito contratual? Essa pergunta é crucial. Sem respondê-la seria impossível chegar à conclusão juridicamente correta.

Ao proferir os Acórdãos acima transcritos, o STF entendeu que o direito constitucional à liberdade de expressão é potestativo, ou seja, que ele não pode ser revogado nem por decisões judiciais nem por normas privadas. Eventuais abusos podem ser reparados mediante procedimento próprio de indenização, mas este não é o caso que estamos comentando (o autor da ação julgada improcedente pela sentença comentada não foi processado por ninguém, ele foi silenciado pelo Facebook e teve seu pedido de indenização rejeitado).

Ao dizer que é “Importante ressalvar que a liberdade contratual deve ser exercida nos limites da função social do contrato, devendo-se prevalecer nas relações contratuais privadas o princípio da intervenção mínima…”a autoridade que proferiu a sentença no caso adotou a tese contrária àquela que tem predominado no STF e que deveria ser respeitada. Segundo o juiz de primeira instância o Facebook pode unilateralmente silenciar seus usuários como se a Constituição Federal não fosse potestativa. Pior, segundo ele nem mesmo os precedentes da Suprema Corte referentes à liberdade de expressão precisam ser respeitados.

Vejamos mais de perto o que realmente ocorreu.

Ao contestar a ação comentada, o Facebook disse o seguinte:

“30. Não se trata de censura ou represália, conforme pretende fazer crer a Autora, muito menos de tratamento diferenciado entre usuários, mas de compromisso por parte do Provedor de Aplicações do serviço Facebook em oferecer um ambiente harmônico, respeitoso e seguro a seus usuários.”

​Na sentença, o juiz fez a seguinte afirmação:

“Não se observa qualquer indício de perseguição pessoal em desfavor da parte autora.” 

O alinhamento automático da sentença com a tese do Facebook é evidente. A empresa pode não apenas definir suas regras, mas pode obrigar o Judiciário a respeitá-las e não precisa nem mesmo provar qualquer coisa (suas afirmações são consideradas verdades auto evidentes que criam obrigações para terceiros). O direito à liberdade de expressão outorgado ao cidadão, cuja validade e eficácia é reconhecido por precedentes do STF, deixa de existir no momento em que o próprio Facebook decide impor restrição ao perfil do usuário. Sob o império do contrato, nenhum princípio jurídico constitucional tem valor. Compete ao juiz apenas homologar as decisões que são tomadas interna corporis pelo Facebook?

Se a decisão comentada prevalecer, o desequilíbrio entre a plataforma e seu usuário é e sempre será total. O Facebook pode escolher respeitar a liberdade de expressão, mas também pode cassá-la. Chamado a resolver a disputa, o Judiciário não poderá fazer nada exceto legitimar a decisão tomada pela empresa. E o cidadão? Bem… ele tem o direito de ficar calado. Caso ouse se expressar de maneira livre ele será punido. Quando reclamar ele perderá o processo, pouco importando qual foi o entendimento da Suprema Corte acerca do art. 5º, incisos IX, da CF/88.

Num mundo em que tudo o controle da opinião é regulado exclusivamente por contratos, ninguém pode dizer que tem direito a liberdade de expressão. O regime democrático, que depende da livre circulação de opiniões, também sofre uma mutação importante. Se a decisão comentada prevalecer apenas o dono do Facebook poderá dizer que é livre. Todos os demais estão sujeitos à censura e à autocensura. E os inconformistas poderão ser silenciados ou até excluídos da plataforma. 

A censura é proibida pela Constituição Federal. Qual a punição para quem a pratica? Nesse caso envolvendo Facebook e esse infeliz cidadão que vos fala a punição não será nenhuma. 

Além de desautorizar precedentes do STF, a sentença funciona como um incentivo para o rede-social de Mark Zuckerberg se tornar mais e mais antissocial. Certo de que nunca será condenado a indenizar seus usuários, o Facebook simplesmente continuará fazendo o que já fez no caso comentado. 

E assim nós chegamos ao paradoxo da modernidade. O máximo de tecnologia é capaz de proporcional o mínimo de liberdade de expressão. Capturado e até mesmo cortejado pelas Big Techs, o Poder Judiciário esvazia princípios constitucionais e/ou confere status constitucional às relações contratuais que podem ser administradas unilateralmente por uma empresa. Diante desse Leviatã virtual o usuário não é ninguém. Ele nem mesmo pode dizer que tem direitos tuteláveis pelo Estado. 

O golpe de 2016 “com o Supremo, com tudo” removeu a soberania popular da arena política. Durante a pandemia, Jair Bolsonaro fez propaganda de cloroquina, dificultou a compra e a produção de vacina, desestimulou o uso de máscara, lutou para manter os templos evangélicos abertos e desprezou as recomendações da OMS. O presidente brasileiro usou a crise sanitária para maximizar o número de mortes como se os cidadãos brasileiros não tivessem direito à vida. E agora o Judiciário permite que o Facebook silencie impunemente os cidadãos. Paradoxalmente, o mesmo Facebook que ajudou Bolsonaro a protagonizar o genocídio pandêmico ganhou do Judiciário o direito de silenciar impunemente quem ousa zombar dos apoiadores evangélicos usando o vocábulo “evanjegue”.

Nós evidentemente não vivemos mais numa democracia. Isso está escrito nas entrelinhas da sentença comentada. Então a questão que se coloca é evidente. Se não podemos recorrer ao Judiciário o que faremos para obrigar as empresas e as autoridades a respeitar nossos direitos?

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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5 Comentários

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  1. “…o STF entendeu que o direito constitucional à liberdade de expressão é potestativo, ou seja, que ele não pode ser revogado nem por decisões judiciais nem por normas privadas…”…Nós evidentemente não vivemos mais numa democracia…”PAREM O MUNDO QUE PRECISO DESCER !!!!!!!!!! LOGO ALI DEPOIS DE MARTE!!!!!! Não existe mais espaço para devaneios ideológicos esquerdopata-fascistas que enterraram esta Nação por 92 anos e foram ressuscitados em mais 4 décadas de farsante e corrupta Redemocracia. A Mediocridade Intelectual Brasileira Esquerdoapa-Fascista, construída por quase 1 século, bate cabeça e não sabe mais para onde atirar ou seguir. É apenas o Poder pelo Poder. A Opinião pela Opinião. É o “meu rumo”, já que o cabresto não permite outra direção. Não dá para condenar Luiz Zveiter e suas perseguições e arbitrios ditatoriais e consentir o silenciamento de Daniel Silveira, Jair Bolsonaro, Weintraub ou Allan dos Santos. Não dá mais para paixões politico-ideológicas risíveis, tentarem explicar a CENSURA FASCISTA DE STF contra a Opinião Livre e Soberana dos Cidadãos Brasileiros, quando tal Opinião não se alinha com este Projeto comuno-fascista de quase 1 século. Ou quando não se alinha, como esta Matéria-Reclamação-Indignação. Não dá mais para aceitar as Determinações Ditatoriais Fascistas Censuradoras deste STF, que nada representa, fora quase 1 século de Cleptocracia. Não existe mais desvios ou desculpas. “CONHECEIS A VERDADE. E A VERDADE VOS LIBERTARÁ”.

  2. “Pimenta no rabo dos outros é refresco”. Coloque o rabo do cara na reta e descobrirá sua verdadeira opinião. Descobrirá como subterfúgios, desculpas e hesitações desapacerem. Desaparecem os espaços para “SENÃO’s”. O inacreditável é esta discussão vir à tona somente agora às vesperas do próximo mandato do Presidente Bolsonaro. E se Ele não tivesse sido eleito em 2018 e reeleito em 2022, quando surgiria tal discussão na Sociedade Brasileira???!!! Quando seriam expostas todas Elites Esquerdopata-Fascistas, em especial este STF pária, abjeto, ditatorial, censurador?? Se boa parte de suas Vítimas, até o dia de ontem, ainda apoiavam e endeusavam seus Algozes?? A Bipolaridade entre ABI, OAB, MEC, UNE, Unvs. Públicas é de uma surrealidade inimaginável!!! Vale e CENSURA lá, mas não vale aqui??!! Por favor Ministro Marco Aurélio de Mello, tente explicar: “…O problema é que o chicote pode mudar de mãos…” Então, todos conseguem enxergar o Pelourinho!!! Mas o pior, que Nossas Elites só descobriram agora. A ingerência, manipulação, lesa-pátria, dominação aceita e imposta pelo pária Ditador Assassino Getulio Vargas, entregando o Brasil aos interesse norteamericanos, desde Disney, aculturamento estadunienese, AT&T via Rede Globo no Governo JK, tem se apogeu agora entre NorteAmericanas que não precisam nem pisar, nem se submeter à Legislação Brasileira. É o CONTROLE, MANIPULAÇÃO e ARBITRIO direto de MIAMI/USA. Facebook, Tweeter, Instagram, Apple, Microsoft, Youtube,…” se linchando” para Governos ou Cortes Nacionais. Tudo virou pasto. E só agora Nossa Imprensa e Intelectualidade perceberam?? Ou ainda não? Pobre país rico. Mas de muito, muito, muito fácil explicação.

  3. Um grupo de REDE SOCIAL é uma reunião voluntária de pessoas. A única diferença de um grupo de rede social para um grupo de bate-papo de bar ou de jogo de pelada, além do seu alcance é a presença meramente virtual e a produção de provas, via áudio, vídeo ou texto, registros, contra ou a favor. Se incomoda é só sair; se desligar do ou dos contatos. Se ofendido, como num bate-boca comum, presencial, é só acionar os mecanismos judiciais.

  4. Tudo é mercadoria, amigos. Tudo, sem exceção.
    Nós próprios somos; nós, e nossas paixões e ódios. A liberdade, a expressão, tudo é, e assume o formato de mercadoria.
    Nós, nossa força de trabalho, nossa liberdade, nossas paixões. Para aqueles que Adam Smith denominava Mestres da Humanidade – mercadores da vida e da morte – tudo é uma questão de ser capaz de vender, seja o que for, seja de que jeito for.
    Se uma plataforma ou rede social acolhe seu blog, seu site, seu portal de notícias, é por um motivo de só: vender. Espaço publicitário, serviços, ideologias, o diabo, tudo serve para atrair clientela. Especialmente a desavisada; de que outra forma qualificar as pessoas que caem presas dos kwais e tiktoks da vida? O que essas pessoas sabem, que capacidade de raciocínio crítico possuem?
    Mas esse é outro assunto.
    Uma vez fidelizada a clientela, passa-se a uma espécie de expurgo. Essa imensa linha de produção de informação e entretenimento tem, naturalmente, detratores. Há uma minoria de seres pensantes que percebem a verdadeira natureza das instituições e atos dos Mestres da Humanidade, e não se calam nem baixam a cabeça; mas só podem expressar e denunciar essa discordância…nos meios que eles fornecem.
    Qual é a lógica dessa situação?
    A supressão dessas vozes. E o benefício da mesma? Este: ninguém vai dar pela falta, salvo uma minoria de uma minoria da população, ou seja, seres pensantes, uma espécie em extinção. Alguns ainda podem ser vistos aqui, entre os leitores (não todos) do GGN. A cada dia que passa, um blog sujo lança apelos aos leitores, porque também ser íntegro e honesto tem seus custos.
    Liberdade nunca houve; a liberdade de expressão não foi senão um apelo – sempre abafado e agora sendo extinto – pela sua existência efetiva, e não aquelas fábulas cínicas que a Revolução Francesa popularizou, ao mesmo tempo em que submetia africanos, asiáticos, etc., etc., etc.
    Publiquei este comentário, ontem, aqui, sobre o twitter:
    “Tenho batido nessa tecla repetidas vezes, aqui no GGN – o jornalismo independente, por enquanto, e por razões diversas, é apenas e tão somente tolerado em todas essas plataformas e redes sociais, que são propriedades privadas, capitalistas, alinhadas aos interesses da elite dominante, do binômio Bancos/Corporações, e, portanto, a uma visão conservadora do mundo. Esse mundo – que parece estar a caminho de uma espécie de monopólio mundial do pensamento e da comunicação – não terá espaço reservado para qualquer crítica a si e seus atos e instituições, qualquer visão divergente que aponte para alternativas de distribuição igualitária do que quer que seja – renda, liberdade, dignidade, opinião; em resumo, só serão veiculadas ideias condizentes com o pensamento único conservador. Já está começando.”
    Venho dizendo isso há tempos.
    Lula está na revista Time. Quantos brasileiros tomarão conhecimento disso, fora os habituais adoradores locais dos Mestres da Humanidade? Onde isso repercutirá, ou, como diria o Moro(n), onde isso reberverará?
    Aqui, ou no Viomundo, no DCM, no Tijolaço, e mais alguns gatos pingados.
    O pensamento está em extinção, a capacidade crítica também.
    A imagem, o slogan publicitários requerem menos esforço para serem assimilados.
    E vamos ao Tiktok!

  5. A alternativa é migrar para redes sociais mais democráticas.
    O ORKUT está voltando. Dizem que é bem melhor que o atual FOICEbook, que até o GOLPE 2013/2016 era viável. Não tive o primeiro mas posso dizer que o segundo após o GOLPE travestido de “impeachment” mudou muito. E para pior!

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