
Para o bem-estar do nosso país, precisamos examinar os fatos
por Claudia Wanderley
Para o nosso bem-estar, para o bem-estar de nossas famílias, precisamos fazer juntos e publicamente algumas correções de fatos, e a tecnologia do DNA pode nos ajudar. Precisamos conversar.
Há muitos anos as decisões de ficar em silêncio e ausências de pessoas e acontecimentos na esfera pública me chamam a atenção na vida brasileira. É claro que são objetos abstratos, porque o silêncio não tem um tópico por si, e a ausência também é um operador conceitual, ambos amplamente utilizados no regime militar e mais tarde nos acordos do desenho do processo de anistia. Mas nenhum dos dois tem uma realidade objetiva. A realidade objetiva é que falta algo que a gente sabe que deveria estar presente, e isto que gostaríamos de ver presente, ou discutido, ou cuidado é o mais importante.
Para citar algumas faltas que me tocam, e há várias outras… Não contamos o que houve com as etnias indígenas que estavam nos territórios que foram ocupados, muito menos explicitamos quem eram, o que pensavam, o que houve. A proibição de falar qualquer idioma que não fosse o português dificulta o entendimento da diversidade cultural do país. Durante o período do tráfico de africanos escravizados para o Brasil, havia um ritual de esquecimento feito na saída do continente africano. Ao chegar aqui os africanos eram organizados em grupos que não falavam o mesmo idioma, para não se entenderem e terem maior dificuldade de se organizar em resistência. A promoção da amnésia e do silêncio é uma prática muito familiar para os brasileiros, estratégia da formação do país.
Pergunta Alencastro em 2001: “A sociedade civil impediria hoje um ministro da Fazenda de garantir a um eventual ditador que um texto como o AI-5 pudesse ser “tranquilamente editado”? Pode ser que sim. Na circunstância, a memória dos “desaparecidos” ficaria de fato circunscrita ao luto mal resolvido dos sobreviventes.” E é uma pergunta que ecoa em 2023, considerando com tristeza a situação de genocídio à qual chegamos na pandemia aqui no país, com 700mil mortos de covid-19 e notícias falsas sobre vacinas e medicamentos. Os dados das pessoas mortas por covid precisaram ser levantados por um consórcio independente formado pela imprensa para reagir ao fato de que o governo parou de fazer a contabilidade das vítimas, e foi retirando gradativamente os dados de referência do que estava acontecendo. Mais uma vez, sem os dados, as vítimas desaparecem, os debates públicos vão sendo inviabilizados.
Este ano propus uma mesa de debate no evento de letramento midiático informacional e diálogo intercultural, MILWEEK2023, com o tema Memória, DNA e Censura. Minha hipótese é que boa parte do processo de desinformação que nos assolou no Brasil nos últimos anos tem a ver com a falta de debate público sobre as conjunturas brasileiras e particularmente sobre questões que hoje ligamos ao tema de memória, verdade e justiça. Porque se estamos em contato com as discussões das lideranças dos movimentos de cada região, com as reflexões desenvolvidas na universidade, com a compreensão dos jornalistas das atividades da midia no Brasil, com os filósofos que não estão na carreira acadêmica, mas estão pensando o que está ocorrendo a sua volta (que Michel Debrun, lendo Gramsci, chama de filósofos orgânicos) algumas [des]informações passam a ser imediatamente postas em cheque.
Não cultivar a memória das experiências duras que passamos, assim como não falar da violência do estado, permite que essas práticas se consolidem à sombra de nossa dificuldade de pautar estas questões em um âmbito mais amplo. A triste realidade é que muitas vezes se nós poderíamos falar sobre isso é porque são pessoas próximas, funcionários públicos, empresários, chefes, colegas, até mesmo em alguns casos familiares que participaram de atividades ilícitas ou violentas do regime autoritário. A gente se livra de uma dor de cabeça momentânea ficando quieto, mas de certa forma dá guarita para que essas práticas continuem e se multipliquem de maneira velada do lado da gente. A proposta então é um esforço de dialogar sobre questões que nos habituamos a evitar, neste caso o diálogo como um tipo de prevenção contra a escalada da desinformação, que usa assuntos sensíveis para se espalhar e para nos dividir.
Durante a pandemia, soube que havia um Instituto de Pesquisa de DNA Forense da Polícia Federal em Brasília, encarregado de encontrar pessoas perdidas através do DNA. Pensei em propor no evento uma mesa do coordenador do Instituto com o jornalista que escreveu dois livros considerando a prática de roubo de bebês durante a ditadura militar brasileira. Imaginei que os “bebês” do livro do Prof. Eduardo poderiam fazer a coleta de DNA com o Prof. Samuel, para poderem reencontrar suas famílias de origem, caso ainda não tenham encontrado.
Meu primeiro pensamento, sabendo desse laboratório, é que todos nós poderíamos fazer as pazes com as mulheres indígenas e homens indígenas que fazem parte de nossa ancestralidade, conhecê-los um pouco mais. Já que não podemos vê-los em nossos sobrenomes, poderíamos vê-los em um banco de DNA, e talvez refazer o desenho de nossa diversidade [linguística, cultural, epistemológica e, porque não?] genética. Também me ocorreu criar uma parceria com a União Africana ou com o movimento de Pan-Africanismo, para que quem tem ascendência africana possa ter uma idéia de suas próprias raízes, mesmo que seja regionalmente ou etnicamente. Isso deveria ser um direito de todos os afro-brasileiros: poder retomar um laço material [estou me referindo à materialidade do DNA, neste caso] com seu continente de origem.
O trabalho que o Prof. Samuel Ferreira desenvolve é bem mais objetivo e prático do que eu imaginei. E ele precisa de voluntários, pessoas que tenham parentes desaparecidos que se apresentem para coleta de DNA. Se você tem um parente desaparecido, deve fazer um boletim avisando do desaparecimento de seu parente sanguíneo, e se apresentar em seu estado para coleta de DNA. Com o DNA da pessoa que “perdeu” um parente, o laboratório monta sua base de dados, como quando encontramos as cartas iguais em um jogo de memória. Assim, tem o DNA da família coletado. Caso apareça alguém perdido com um DNA afim, a análise avisa da semelhança, e a família é contatada. Por exemplo, se chega a notícia de que há alguém que não lembra quem é, ou que está perdido, ou mesmo no caso de se encontrar um corpo sem identificação, quando coletam o DNA dessa pessoa “perdida” a informação do DNA pode ser comparada com o DNA de um membro da família que já foi coletado, e está na base de dados do laboratório. E assim, a pessoa é reintegrada na família dela.
Estava também o jornalista Eduardo Reina. O Prof. Eduardo escreveu um livro de ficção chamado “Depois da Rua Tutóia” contando a história do sequestro de um bebê por militares durante a ditadura, em São Paulo. Depois escreveu o “Cativeiro sem Fim” que são casos de bebês que foram efetivamente sequestrados no período da ditadura militar no Brasil, que ele pesquisou. É um esforço de trazer essas informações para arena de debates públicos de forma a entendermos melhor o que ocorreu no país através do jornalismo combinado com a literatura. Este trabalho está também em uma exposição sobre o livro “Cativeiro sem Fim” no Museu das Memórias (in)possíveis em Porto Alegre <https://museu.appoa.org.br/site/exposicao-cativeiro-sem-fim/>, e há alguns depoimentos gravados disponíveis, que são muito tristes e também são bacanas porque nos dão a dimensão de como é importante pensarmos nossa história, e cultivarmos nossa memória com todas as dificuldades que temos para fazer isso hoje ainda. Dá uma olhada em como foi a conversa: <https://www.youtube.com/live/YFSwe_FlD4Y?si=7bWHTjvyFoe1ItnE>
Vamos pensar a desinformação no Brasil e pautar juntos fatos que precisamos encarar para o bem-estar coletivo.
cf. Alencastro, L.F. 1964: por quem dobram os sinos? (p.39-43) in Mortos e desaparecidos políticos: reparação ou impunidade? – organizado por Janaína Teles. 2. ed. São Paulo: Humanitas e FFLCH/USP, 2001. 386p. ISBN 85-7506-011-2, acesso: https://www.marxists.org/portugues/tematica/livros/diversos/impunidade.pdf
O Observatório da Desinformação é uma iniciativa para combater a desinformação no Brasil de forma articulada, dando visibilidade às frentes de reflexão, formação e extensão ligadas ao Letramento Midiático e Informacional e ao Diálogo Intercultural no âmbito dos Direitos Humanos.
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