Observatorio da DesInformacao
O Observatório da Desinformação é uma iniciativa para combater a desinformação no Brasil de forma articulada, dando visibilidade às frentes de reflexão, formação e extensão ligadas ao Letramento Midiático e Informacional e ao Diálogo Intercultural no âmbito dos Direitos Humanos.
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A ética da indiferença, o “novo normal” e seus avessos no mundo acadêmico

A desatenção deveria estar distante, tanto de quem ensina ou informa a respeito de uma temática quanto de quem produz conhecimento

Banksy

do Observatório da DesInformação

A ética da indiferença, o “novo normal” e seus avessos no mundo acadêmico

por Josianne Francia Cerasoli

Há quem consiga produzir conhecimento e informação sem se indagar, mas não existe convivência possível entre quem atua nesses campos e a indiferença. Não seriam aceitáveis, sequer imagináveis, graus da indiferença, na forma de algum desprendimento, alguma desobrigação ou certa falta de atenção, de cuidado, de interesse, de consideração e de sentimento ou, ainda, na forma de alguma suposta neutralidade ou normalidade.

Qualquer modo de desatenção deveria estar distante, tanto de quem ensina ou informa a respeito de uma temática quanto de quem produz conhecimento e dados sobre um assunto – mudanças climáticas, vacinas, saúde física e mental, partículas subatômicas, big data, inteligência artificial, robótica, projetos sociais, fundamentos teóricos, pedagogias, dinâmicas políticas, acontecimentos históricos, princípios estéticos, preceitos morais etc.

Desde março de 2020, o campo do conhecimento e da informação sofreu um enorme impacto. Junto a toda a sociedade em escala global, que tem vivido, desde então, efeitos intensos, trágicos e desiguais da pandemia de Covid-19, esse campo sofreu tamanho impacto que talvez viva hoje uma mutação. Os setores ligados à produção de conhecimento, ao ensino e à aprendizagem em todos os níveis e à difusão de informação fiável foram brutalmente atingidos por grandes mudanças, como a imposição de ferramentas tecnológicas e mediação remota em escala inédita e jamais antes planejada. Não haveria em parte alguma o suficiente para se sair ileso dessa crise, de aparatos tecnológicos, subsídios materiais, condições sociais, fundamentos pedagógicos, instrumental didático a estados mentais e compromisso ético. A exigência, desde então, é máxima.

Embora imediatamente tenham se multiplicado bem-vindas iniciativas locais e globais para a adequação de meios e para a mitigação dos efeitos, além de terem se formado redes colaborativas em larga escala para lidar com a emergência, os lapsos de indiferença em meio às exigências contínuas são preocupantes. Apesar de iniciativas comprometidas com o interesse comum, como rede de vigilância genômica para monitoramento amplo da Covid-19 e as ferramentas e a Coalizão Global para a Educação organizadas pela UNESCO, pode ser bastante perturbador constatar que o chamado “novo normal” permitiu bem menos aprendizados coletivos que o impacto inicial da pandemia enunciou ou esperou.

A ansiedade em relação aos aprendizados prováveis ou apenas desejáveis a partir de um evento de tamanho impacto em todas as dimensões da sociedade talvez tenha alimentado a pressa em nomear a “novidade”. Na aclamada “nova normalidade”, foram enunciados não apenas dispositivos técnicos de distanciamento físico preventivo e mudanças de comportamento capazes de aumentar o zelo com a integridade de cada pessoa, mas, sobretudo, foi imaginada como transformadora uma nova postura diante de cada ser vivo, guiada por uma ética da corresponsabilidade e, para visões mais otimistas, por uma ética do respeito e da solidariedade.

Apesar do anúncio da “novidade” e de seu incontido otimismo, faltaria espaço para enumerar aqui as evidências de que a normalidade que prevaleceu é um elogio cotidiano à ética dos individualismos. Não faltam notícias sobre como a pandemia não impediu a fartura e a concentração de recursos, em todos os setores da vida humana, e não cessou a exploração e a privação, sempre reincidente, sobre quem já convive com exclusões e carências.

Mesmo na esfera acadêmica, fortemente impactada de muitas formas, inclusive com uma expressiva queda na produção científica em todo o planeta, o peso do “novo” incidiu apenas reforçando iniquidades há muito conhecidas. Coletivos de cientistas e pesquisas em múltiplas áreas têm demonstrado, em detalhes, a alteração na produção científica e o forte impacto da desigualdade de gênero e a dimensão familiar, também sobre esse quadro. No cotidiano vivido em escolas, universidades e locais de pesquisa, não se entra em um espaço sem que seja visível alguma desigualdade, injustiça ou mesmo indiferença que fragilize os compromissos coletivos desses espaços diante da sociedade.

Quem convive com a rotina de produção, discussão e difusão do conhecimento não deveria estranhar a expectativa ética que acompanha essa função social. A expectativa é quase uma obrigação para qualquer área do conhecimento e para todo campo de atuação. Pensar o “para que”, em cada uma das dimensões do conhecimento, é o ponto de partida, tanto para humanidades, biológicas, exatas ou artes, com ênfase teórica ou aplicada, com vocação tecnológica, social ou cultural, quanto para todos os níveis de ensino, na pesquisa, nas ações diretamente ligadas à sociedade. Ética e conhecimento estão implicados de modo inevitável.

Apesar dessa consciência, diante de situações de anormalidade a que cada um de nós tem sido exposto de modo agudo desde 2020, houve entre nós quem conseguisse saltar sobre todos os despojos para registrar, com satisfação, que aproveitou a pandemia para produzir mais. Seria a liberação do compromisso ético do conhecimento um componente do “novo normal”? Seria melhor nem trazer a público uma pergunta como essa. Ela tornaria possível desobrigar de encargos morais quem faz do conhecimento e da informação seus mundos de trabalho. Fala-se aqui do vínculo moral de fazer esse trabalho sempre em benefício de outrem.

Haveria, então, alguma perversidade ou maldade em anunciar que “aproveitei a pandemia” para fazer algo? Talvez seja apenas uma “nova ética”, capaz de acolher a indiferença. Se não falarmos sobre isso, séria e profundamente, corremos o risco de nos fragilizarmos ante a luta ética diária contra a desinformação.

Josianne Francia Cerasoli – Departamento de História – UNICAMP. Observatório da Desinformação

O Observatório da Desinformação é uma iniciativa para combater a desinformação no Brasil de forma articulada, dando visibilidade às frentes de reflexão, formação e extensão ligadas ao Letramento Midiático e Informacional e ao Diálogo Intercultural no âmbito dos Direitos Humanos.

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