Superado o marco temporal, STF vota teses do julgamento e senadores querem mudar Artigo 231 

Renato Santana
Renato Santana é jornalista e escreve para o Jornal GGN desde maio de 2023. Tem passagem pelos portais Infoamazônia, Observatório da Mineração, Le Monde Diplomatique, Brasil de Fato, A Tribuna, além do jornal Porantim, sobre a questão indígena, entre outros. Em 2010, ganhou prêmio Vladimir Herzog por série de reportagens que investigou a atuação de grupos de extermínio em 2006, após ataques do PCC a postos policiais em São Paulo.
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No Senado, a bancada ruralista apresentou nesta sexta (22) a PEC 48/2023, que pretende acrescentar o marco temporal ao Artigo 231

A mobilização dos povos indígenas seguirá em Brasília: no Congresso, a bancada ruralista reage à decisão do STF. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Desde que o ministro Edson Fachin instituiu a repercussão geral ao Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, onde a tese do marco temporal ultrapassava os interesses subjetivos da causa, os povos indígenas não estavam apenas sob tensão, mas também sob ataques às suas vidas tendo a tese como munição. 

Quatro anos depois, nas dependências exteriores do Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília, o choro e a alegria de centenas de indígenas pareciam não se justificar diante de uma vitória prevista. Ocorre que o choro e a alegria eram o estouro de almas perdidas na luta pela terra e na esperança da justiça restaurada entre os povos indígenas. 

Desta vez, a boiada não passou. Conforme o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), são mais de 200 ações, tramitando em todas as instâncias do Poder Judiciário, com o marco temporal como tese embasando pedidos de reintegração de posse e impedindo a finalização de demarcações. 

Para Dinaman Tuxá, da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a derrota do marco temporal na sessão do STF desta quinta-feira (21) se remete a um caráter histórico porque trata do direito originário dos povos indígenas, algo que se estabelece ainda no Brasil colonial. 

“São séculos em que o direito originário é reivindicado, debatido, questionado, desconsiderado. Com ele sofremos genocídio. Sem ele, talvez tivessem conseguido matar cada indígena deste país. É uma felicidade muito grande esse momento, essa vitória”, diz a liderança da Apib. 

Julgamento ainda não acabou 

Na próxima quarta-feira (27), a Corte Suprema deve votar as teses levantadas durante as sessões do Recurso Extraordinário com repercussão geral. Nelas estão a tentativa de alguns ministros de acomodar interesses não indígenas sobre os territórios tradicionais.  

Algumas dessas teses são consideradas particularmente nocivas pelos povos indígenas, caso da indenização prévia por terra nua, a revisão de limites de demarcações e a regulamentação do artigo 231 pelo Congresso, no prazo de 12 meses, concernente à exploração hídrica e minerária de territórios indígenas.  

Para a presidenta da Fundação Nacional do Índio (Funai), Joenia Wapichana, “há muitos desafios pela frente (teses levantadas), mas é uma luta a cada dia. Nós acreditamos na Justiça do STF para dar essa segurança jurídica aos direitos constitucionais dos povos indígenas Hoje se enterra de vez o marco temporal”. 

A votação dessas teses pelos ministros do STF, por outro lado, é a fronteira definitiva para que a bancada ruralista no Congresso Nacional consiga tirar desse julgamento algo positivo da derrota sofrida com a queda da tese do marco temporal. Indenização prévia por terra nua, por exemplo, é um ponto de agrado.  

O que virá pela frente 

Conforme a advogada Paloma Gomes, da assessoria jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), também incumbida da defesa do povo Xokleng no Recurso Extraordinário, o STF julga na sessão da semana que vem as teses que vão nortear a interpretação do artigo 231 da Constituição.

“O marco temporal foi superado. Agora acredito que o Supremo vai se debruçar efetivamente nos efeitos das demarcações de terras tentando, em alguma medida, tentar dar algum tipo de respaldo jurídico àqueles que eventualmente venham a ser atingidos pela demarcação das terras indígenas”, diz a advogada. 

A discussão vai estar centrada nos votos dos ministros Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin e Dias Toffoli, que trouxeram outros elementos, para além do marco temporal, ao plenário da Corte. Essas manifestações estão mais relacionadas às indenizações para terceiros de boa-fé. 

“Destaco que a Constituição Federal é muito clara ao dizer que todos os títulos que incidem sobre terras indígenas são nulos de pleno direito. As pessoas que detêm títulos em terras indígenas, não têm garantia jurídica ou constitucional da validade desses títulos”, explica Paloma.

Uma vez que ocorre a demarcação, a única indenização prevista constitucionalmente, que pode ocorrer, está relacionada às benfeitorias de boa-fé. Ou seja, se o Estado demarca a Terra Indígena, a única indenização possível é relacionada às benfeitorias, além do reassentamento aos pequenos. 

Motivações do STF  

“O STF está muito movido a não criar injustiças diante da sua decisão. Embora não trate do caso concreto, os ministros querem prever essa discussão dos terceiros que tenham esse tipo de título. Para que essas pessoas não fiquem desassistidas. Quem são essas pessoas para o STF? As de boa-fé”, acrescenta. 

Títulos fraudulentos, grilagem, utilização de violência para se apropriar dessas terras, as ocupações de má-fé, na opinião de Paloma, não são essas as que estão no foco da preocupação dos ministros. Os ministros, para a advogada, desejam que essas indenizações não fiquem adstritas apenas às benfeitorias de boa-fé. 

“Como advogados do povo Xokleng, assessores jurídicos do Cimi, e que somos amigos da Corte (amicus curiae) nesse julgamento, acreditamos que a preocupação do STF é legítima. Desde que ela não afete ou restrinja os direitos constitucionais indígenas”, ressalta. 

Analisando os votos, o ministro Moraes entende que deve haver as indenizações às benfeitorias de boa-fé, mas também à terra nua. Para o ministro, a indenização precisa ser prévia. “O que isso significa: os povos indígenas só poderão ter acesso ao território depois que a União pagar as benfeitorias e a terra aos terceiros de boa-fé”, explica. 

Nesse caso, a indenização vira um requisito prévio ao procedimento demarcatório. O outro problema apontado por Paloma, é que a indenização se dará dentro do processo administrativo. “Nesses 35 anos de Constituição, os territórios indígenas não foram demarcados porque o processo administrativo é complexo, depende da vontade do Poder Público”, analisa.  

Com a indenização por terra nua fazendo parte desse procedimento, por ser prévia, a tendência é de que se dificulte ainda mais as demarcações, o que, para Paloma, não é a intenção da Corte Suprema porque durante o julgamento os ministros expressaram contrariedade à demora na garantia desse direito. 

Eventos danosos 

Já a tese do ministro Zanin, no entendimento da equipe que advogou para os Xokleng, supera discussões e lacunas do voto apresentado por Moraes. “Verificamos que há na Constituição Federal, artigo 37, parágrafo 6o, a garantia de que as pessoas que tiveram algum tipo de dano por ação do Estado, a sua efetiva reparação”, diz Paloma. 

São as chamadas “indenizações por eventos danosos”. Para a assessoria jurídica do Cimi, e também para alguns ministros do STF, a indenização não decorreria da demarcação das terras indígenas, ainda mais porque tais terras são patrimônio da União, mas sim dos eventos danosos previstos pela Constituição. 

O Estado estimulou a ocupação de territórios indígenas no decorrer de todo o século XX, as chamadas frentes de colonização. Um dos últimos grandes ciclos ocorreu durante a Ditadura Militar (1964-1985), por toda a Amazônia, e que agora foi novamente incentivada a partir do garimpo ilegal com Bolsonaro. 

“O ministro Zanin aderiu a essa corrente jurídica, no que apoiamos. A outra coisa que o ministro Zanin faz, extremamente interessante, é retirar essa aferição da indenização por terra nua do processo demarcatório, e isso salvaguarda os direitos indígenas de não ficarem adstritos à discussão da indenização para só depois terem a demarcação concluída”, diz. 

Dias Toffoli lançou um tema novo, a exploração dos recursos naturais das terras indígenas. O tema não foi discutido no Recurso Extraordinário com repercussão geral. “Por ser um tema estranho do caso concreto, entendemos que a Corte não irá querer debater mais profundamente esse tema”, especula. 

Sobre o Parecer 001 da Advocacia-Geral da União (AGU), que em 2016, já sob a gestão de Michel Temer no Palácio do Planalto, institui o marco temporal para toda a administração do Poder Executivo que tratasse da demarcação de terras indígenas, uma vez que caia o marco temporal, esse parecer, de força vinculante, deve derreter por completo.       

Placar histórico

Se esperava um placar até folgado, um 7 x 4 ou 8 x 3, mas não largo e histórico. Os 9 x 2 contra o marco temporal representam o seguinte: apenas os dois ministros indicados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, o mais anti-indígena dos presidentes da Nova República, votaram a favor do marco temporal. 

Nunes Marques e André Mendonça, os terrivelmente evangélicos, ficaram isolados em um tribunal que nem mesmo o ministro Gilmar Mendes, em seus longos apartes anti-indígenas durante os votos dos demais ministros, se viu autorizado a desconsiderar a Constituição de 1988. 

A Carta Máxima do país reconhece o direito dos povos indígenas sobre suas terras como um direito originário – ou seja, anterior ao próprio Estado. Essa tradição, a chamada Teoria do Indigenato, perpassa, em cartas distintas e nomes diversos, a história do Brasil desde o Período Colonial. 

“Ainda que não tenham sido demarcadas, essas terras devem ter a proteção do Estado. Essa, no meu modo de ver, é a interpretação mais correta da Constituição. Muito já se disse aqui. Trago no meu voto essa interpretação finalística do artigo 231 que assenta que são reconhecidas aos índios as terras que tradicionalmente ocupam”, afirmou o ministro Luiz Fux, em seu voto.  

Congresso reage à decisão do STF 

O senador Dr. Hiran (PP/RR), do Movimento Pró-Garimpo de Roraima, e demais senadores bolsonaristas e integrantes da bancada ruralista, apresentou nesta sexta (22) a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 48/2023, que pretende alterar o artigo 231 para definir o marco temporal de demarcação das terras indígenas tradicionalmente ocupadas.

Acontece que o artigo 231 é cláusula pétrea e direito fundamental. Ou seja, o artigo não pode ser alterado ou mexido nem mesmo por uma PEC. Para a Apib, não se trata de ignorância dos proponentes. “O objetivo é pressionar o STF para o julgamento das teses na próxima semana. Assim podem conseguir a indenização prévia, por exemplo”, diz Dinaman Tuxá.     

O presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), deputado federal Pedro Lupion (PP-PR), afirmou, sem embasar a opinião que transmitiu em coletiva de imprensa, que a decisão do STF que derrubou o marco temporal é “política” e “viola a harmonia entre os Poderes”. 

Lupion ressaltou, em caráter de retaliação à derrota sofrida pela tese que a FPA defendia, que a bancada do agronegócio irá obstruir a tramitação de pautas importantes até que projetos de lei e propostas de emenda constitucional (PECs) sobre o marco temporal sejam analisadas pelo Congresso Nacional. 

“Não consigo entender que isso seja acaso, o STF cumprindo sua função. O STF tem se colocado como legislador, usurpando as funções do Congresso Nacional”, disse o parlamentar logo após os ministros da Corte Suprema enterrarem o marco temporal. Lupion se insere na narrativa bolsonarista de que o STF viola a separação dos poderes da República, uma determinação constitucional.

Para ele, o julgamento é um “ataque frontal ao direito de propriedade” e uma “decisão política para passar um recado para o atual governo”. Nas investigações da Polícia Federal sobre os ataques golpistas aos prédios dos Três Poderes em 8 de janeiro, ruralistas de várias partes do país financiaram a ida de caravanas a Brasília.   

O que é o marco temporal 

O marco temporal era uma tese jurídica segundo a qual os povos indígenas tinham o direito de ocupar apenas as terras em que estavam ou já disputavam na data de promulgação da Constituição de 1988. Há casos em que o marco temporal retroage à Constituição de 1934.  

A tese restritiva se contrapõe à Teoria do Indigenato, segundo a qual o direito dos povos indígenas sobre as terras tradicionalmente ocupadas é anterior à criação do Estado brasileiro, cabendo a este apenas demarcar e declarar os limites territoriais.

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