Internet: Os Drones Virtuais

REVISTA MAQUIAVEL

O que aprendi em dois dias de ataques — uma análise empírica dos drones virtuais

Os ataques programados nas redes sociais e sua função na destruição e constituição de sujeitos políticos

Imagem: “Cruzando Jesus Cristo com Deusa Shiva”, de Fernando Baril (1996)

No texto “A Internet Que Precisamos Salvar”, Hossein Derakhshan descreve a diferença da internet-livro para a internet-televisão. Enjaulado por seis anos em uma prisão iraniana, ao voltar a acessar a web, ele percebeu que o fluxo de informações na rede passou a ser “linear, passivo, programado e ensimesmado”, em contraposição à rede “livre, rica e diversa” da década de 2000. Dos adjetivos citados, eu destaco o “programado” para essa análise empírica, baseada em um comportamento interessante que observei nos últimos dias nas minhas redes.
Tudo começou com um tweet viralizado.

Contexto

O tweet diz uma obviedade, mas no momento certo. O momento: na sexta-feira, após uma bem-sucedida estratégia de disseminação de narrativa nas redes sociais, membros do Movimento Brasil Livre, ao lado de militantes cristãos, entraram na exposição Queermuseu, do Santander Cultural, para denunciar “pedofilia, zoofilia e arte profana”.
Essa mobilização provocou uma onda de “avaliações negativas” na página do Santander Cultural e do banco, que passou a responde-las nas redes sociais. No domingo, o banco anunciou a sua capitulação pública à narrativa montada: fechou a exposição, que deveria durar mais um mês.
Vale observar aqui que, até o domingo, a narrativa não pertencia ao Movimento Brasil Livre: ela estava disseminada também entre evangélicos (Gospel Prime, por exemplo), católicos políticos (como o secretário de Comunicação do RS), jornalistas identificados politicamente com os grupos acima e defensores dos animais, como Luísa Mell — esta apagou a sua postagem depois da repercussão negativa.
A derrubada da exposição, em um final de semana de poucas notícias, provocou matérias na mídia de Porto Alegre e chamou atenção de militantes de peso da rede de extrema-direita no Brasil, como o youtuber Nando Moura.
Esse preâmbulo ajuda a entender qual o fluxo da narrativa montada aqui: ela é inicialmente disseminada, sem um “dono”. Uma vez vitoriosa, passa a pertencer a um “dono” — os militantes virtuais da extrema-direita — e esse “dono”, também, é atacado pelo campo ideológico oposto. É importante ressaltar que vetores fortes da extrema-direita, como a família Bolsonaro, só se posicionaram depois disto.

O fluxo de interações

Na segunda-feira, quando o tweet foi postado, ele foi disseminado inicialmente na minha rede e nos seus pequenos nós. (importante ressaltar: o conceito de “redes e nós” desse texto é bem explicado no livro Linked, de Albert Laszlo-Barabási)
Ele passou a ser disseminado com mais força a partir de nós grandes, perfis de pessoas famosas, como o escritor Marcelo Rubens Paiva e a artista Zélia Duncan. É a partir daqui que dá para observar a curiosidade do fenômeno.
Os RTs de Marcelo Rubens Paiva e Zélia Duncan não tiveram uma interação objetiva direta comigo. Foram 23 tweets respondendo ao meu a partir do RT de Marcelo, nenhum a partir do RT de Zélia. Porém, a partir destes, o meu tweet passou a ser compartilhado pelos seus seguidores, naquela noite, atacado por perfis evidentemente falsos ou robotizados.


Foram, naquela noite, cerca de 50 interações com perfis reais, em maioria positivas. Das interações negativas, 15 foram com perfis falsos e 2 com perfis verdadeiros. Até o início da madrugada, quando o tweet entrou na rede de extrema direita com nós mais fortes.

É importante observar aqui que a interação DIRETA com esse tweet foi nula. Ninguém respondeu ao meu tweet citando ele, diferente do caso Marcelo Rubens Paiva. Entretanto, a partir dele, o jogo virou: foram mais de 50 interações na manhã seguinte, de terça-feira, em maioria negativas. Essas interações, porém, foram de perfis comandados por pessoas reais. Alguns ofensivos, outros querendo efetivamente discutir o tema. O número de impressões do tweet quase dobrou (de 120 mil em 14 horas para 230 mil em 12 horas de ataque).
O meu comportamento, até a tarde de terça-feira, foi de não responder a perfis falsos e/ou robotizados, e tentar dar o mínimo de atenção para pessoas reais, contrárias à ideia, que queriam efetivamente discutir. Passei, porém, a responder essas “pessoas reais” um dia depois do tweet, para testar uma hipótese: a de que o movimento de ataque na rede, quando iniciado através de uma rede de extrema-direita, é principalmente programado. O movimento de ataque espontâneo, de uma pessoa real que lê, ataca e interage, também existe, mas tem um peso cada vez menor no fluxo de interações.
Os ataques programados e os movimentos de pilhagem
Diferenciar o ataque espontâneo do ataque programado é importante para entender qual é o jogo praticado nas redes nesse momento. O ataque espontâneo vem de uma pessoa real, com uma rede difusa (a pessoa escreve tweets sobre vários temas), normalmente é uma interação direta, administrável a partir do controle de usuário da própria rede — se eu não gosto do ataque, posso bloquear ou silenciar a pessoa sem consequências para mim.
O ataque programado, entretanto, tem outra natureza. Ele é operado: uma pessoa pode controlar diversos robôs, ou fakes, para promove-lo. Esses robôs ou fakes não têm uma rede difusa — escrevem apenas sobre um tema, normalmente relativo ao conteúdo da postagem atacada. Essa postagem difusa é encontrada através de monitoramento: o operador dos robôs ou fakes descobre o que precisa ser atacado ao observar páginas e perfis da rede oposta, e iniciar ali um movimento de pilhagem. É como um drone virtual, um avião não-tripulado de bombardeio de postagens.
Caso o alvo responda aos ataques dos robôs ou fakes de forma contraditória, com erro gramatical, difusa ou incoerente, ele se torna um objeto ainda mais fácil de pilhagem. Assim, o monitoramento do operador detecta imediatamente a falha do alvo e coloca a postagem como print ou como tweet quotado em um nó poderoso de uma rede real para que a pilhagem seja efetuada. Se o alvo bloquear o perfil, ter uma postura agressiva ou cometer mais erros, a missão dessa operação de guerra está cumprida. O objetivo da missão é bloquear um nó que tem potencial para ser forte na “rede oposta”, fortalecer os “nós menores” da sua rede nesse ataque e, a partir disso, disseminar uma narrativa que pode ser aplicada na realidade.
Do virtual para o real
Esse é outro ponto fundamental na compreensão da rede como uma máquina de guerra de informação: uma narrativa bem-sucedida é aquela que sai do virtual e é disseminada no real. Assim, o que faz um robô ou um fake não é apenas o ataque, mas a exposição de uma informação potencialmente falsa que pode ser disseminada em uma rede real, por meio das métricas de endosso da própria rede (RTs, likes, shares etc). A máquina de guerra de informação na rede é previsível e operada por monitoramento — o que a “pessoa real” fará com essa informação, entretanto, é sempre imprevisível, e, por consequência, com um potencial muito maior que o programado.
Aqui voltamos a um dos atores mais importantes na polêmica: o MBL. Eles não eram os “donos” da narrativa, porém, as escolhas dos veículos de comunicação foram por associar o movimento como emblema da oposição à exposição. Essas escolhas não são erradas: pessoas ligadas ao MBL estavam na ação. Essas escolhas conferiram ao MBL a autoridade de sujeitos ativos, e colocaram uma rede real dentro do sistema.
Por consequência, também se tornaram sujeitos ativos os opositores ao MBL: as organizações pelos direitos LGBT e contra a homofobia. Esses sujeitos ativos se confrontaram pessoalmente na tarde de terça-feira (12), em frente ao Santander Cultural. A partir deste fato, a disseminação das narrativas é evidentemente polarizada.
Entretanto, quanto mais “nós fortes” forem derrubados no caminho da transposição da narrativa do virtual para o real, melhor para quem opera a máquina de guerra. Os “ataques programados”, dessa forma, não são apenas uma ação troglodita de pessoas ignorantes: são uma moeda pesada para que, no futuro, a narrativa encontre o máximo de disseminação com o mínimo de oposição real.
Voltamos à “internet que precisamos salvar”, citada no primeiro parágrafo: na “internet-televisão”, o objetivo não é fazer pensar, mas fazer compartilhar. Assim, o mais importante para um operador de guerra virtual é que você faça parte do streaming e esteja em uma rede poderosa de disseminadores, e o objetivo principal das redes — fazer com que você seja um usuário ativo, frequente, e que saia o mínimo possível — ajuda bastante em promover os “comportamentos robotizados”.
Esse cenário tem uma consequência ainda não totalmente previsível: a constituição de feudos virtuais, “espaços seguros” murados, nos quais “pessoas reais” dotadas de influência abdicam desta por não conseguir lidar com as ações de guerra que observam. Esse é um assunto para outro texto.

Luís Felipe dos Santos trabalha com comunicação, reportagem, mídias sociais, consultoria e assessoria de imprensa. Contato.
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Redação

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