o Brasil & o Brasil (7)

“Orciny é a terceira cidade. Fica entre as outras duas. Fica no dissensi, nas zonas disputadas, lugares que Besźel acha que são de Ul Qoma e Ul Qoma acha que são de Besźel. Quando a velha comuna se dividiu, ela não se dividiu em duas, mas em três. Orciny é a cidade secreta.”

“A cidade & a cidade”, China Miéville

em 1984 o Brasil também estava em transe. o Povo das ruas conclamava por “Diretas Já”. contudo, em cima dos palanques estava Tancredo Neves. o mesmo Tancredo que em 1961 convenceu Jango a ir com ele de avião para Brasília e aceitar o Parlamentarismo. enquanto Brizola e o comandante do III Exército propunham que a marcha fosse por terra, numa coluna das tropas legalistas e  do Povo das ruas para tomar a capital federal e debelar o golpe. se na frente de milhões de pessoas Tancredo defendia as “Diretas Já”, nas sombras dos bastidores trabalhava por exatamente o contrário. a conta foi paga com a vida, antes mesmo de ser desfrutada uma gota sequer do gosto do poder.

em 1993, ao explodir o escândalo dos “anões do orçamento”, ficou também exposto o mecanismo de financiamento empresarial das campanhas eleitorais. logo após o impeachment de Collor, era o momento para desatar o capitalismo de laços brasileiro. Lula e o PT optaram então pelo conchavo de cúpula, por julgarem ser inevitável sua vitória nas eleições do ano seguinte. veio o Plano Real, que, sob o marketing de “estabilizar” a economia, doou ao setor privado quase todo o patrimônio público e mesmo assim gerou uma incontrolável dívida interna. Lula se tornaria presidente apenas após assinar a “Carta aos Banqueiros Brasileiros” e em Washington anunciar Henrique Meirelles no Banco Central.

o lulismo jamais deixou de ser uma estratégia de conciliação permanente a serviço de um projeto de hegemonia às avessas. ao ceder a quase todas as demandas de uma minoria para conceder alguns poucos benefícios para a maioria, em prol de uma governabilidade baseada no fisiologismo e no curto-prazo, o lulismo nos trouxe à ingovernabilidade sistêmica.

os longos 13 anos perdidos do lulismo: NÃO auditou a privataria tucana; NÃO auditou a dívida interna; NÃO desmantelou o aparato repressivo; NÃO puniu os crimes da Ditadura; NÃO reviu a Lei da Anistia; NÃO reviu as privatizações; NÃO regulou a mídia; NÃO democratizou a justiça; NÃO fez a Reforma Agrária; NÃO desmilitarizou a polícia; NÃO abandonou a política econômica neoliberal; NÃO desprivatizou o BC; NÃO alterou a Lei de Responsabilidade Fiscal; NÃO tomou a iniciativa de proibir o financiamento empresarial de campanhas; NÃO deixou de financiar com recursos públicos os oligopólios; NÃO combateu os grande corruptores e a sonegação dos grandes grupos empresariais; NÃO permitiu que a Operação Satiagraha prosseguisse…

a vida inteira que podia ter sido e que não foi. tosse, tosse, tosse, ó meu Brasil. diga: treze… treze… treze… todo seu organismo está comprometido. então ainda é possível tentar alguma conciliação de classes? não! a única coisa a fazer é tocar uma canção anarquista.

a presente herança maldita do lulismo é a mais grave crise de nossa História, combinando aspectos econômicos, políticos, sociais, institucionais e climáticos.

com o lulismo morto, o governo Dilma afastado sob processo de impeachment, as instituições falidas e a representação política completamente disfuncional, o sistema de poder está ruindo diante de todos. chegamos assim ao grau zero: o Brasil como o conhecíamos desapareceu.

é preciso se desfazer de todas as ilusões. o novo nasce dos escombros do velho. ou não nasce. esta é uma luta que não está sendo travada apenas nos espaços públicos – nas ruas, nas praças, nas ocupações, na web – é também a luta em nossos corações e mentes por aquilo que poderíamos denominar de: nossa alma.

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Redação

5 Comentários

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  1. Eu sonho com a mesma

    Eu sonho com a mesma sociedade que vc sonha… a vir depois dessa ruptura.

    Mas vc sabe que a sociedade brasileira é um sua maioria conservadora – em valores e em temas economico-sociais.

    O que vc propoe para sustentar um governo como o que vc quer, sem base social na maioria da populaçao?

    1. base social

      meu Nobre,

      esta é a discussão de fundo de qualquer projeto autêntico de transformação social: como viabilizar, concretizar e dar prosseguimento a mudança. compreendo qdo vc se refere a um “conservadorismo” da sociedade brasileira. ele existe. mas não com o peso que as análises do lulismo lhe dá (veja bem, uso “lulismo” cfe. André Singer em “Os Sentidos do Lulismo” e não pejorativamente). se nossa sociedade fosse tão conservadora, o PT não teria vencido 4 eleições presidenciais consecutivas. e este é apenas um exemplo de vários que podem ser enfileirados. a desalentadora verdade é que o lulismo sempre usou de diversas meias-verdades para tentar justificar sua inapetência para encaminhar qualquer tentativa, que fosse, de mudanças. este não é um problema exclusivo do lulismo. é o problema de toda uma Esquerda que vem fracassando historicamente em todas as épocas e em todas as partes do mundo. o mais escandaloso e recente exemplo foi a Grécia. reflitamos: com se explica o apoio que a sociedade grega deu ao “NÃO” – contra o austericídio – e ainda assim Tsipras capitular aos banqueiros alemães? esta Esquerda não quer arcar com os custos da mudança. nunca quis. na Grécia, como no Brasil, todo o instrumental está desde muito colocado para se encaminhar as mudanças. no Brasil, como na Grécia, existe base social para isto – tanto que o Povo sem Medo prossegue inundando as ruas. o que falta é uma liderança, uma coordenação, uma vanguarda, ou o termo que se preferir, que de fato lute pela mudança.

      abraços.

      p.s.: sei que já me alonguei em demasia para um simples comentário, mas deixo duas refer6encia que ilustram minha opinião sobre a questão que vc indagou.

      “Entrei exultante no gabinete do Primeiro Ministro. Eu flutuava numa bonita nuvem empurrada pelo entusiasmo popular com a vitória da Democracia Grega no referendo. E no momento em que adentrei no gabinete, senti imediatamente um certo ar de resignação – uma atmosfera negativamente carregada. Eu me deparei com um ar de derrota, que era completamente inverso ao que ocorria do lado de fora, nas ruas. Naquele momento, tive que dizer ao Primeiro Ministro: “Se você deseja usar todo este clamor por democracia que ouvimos do lado de fora das portas deste prédio, conte comigo. Mas se, por outro lado, você sente que não pode usar este majestoso “Não” contra uma proposta irracional de nossos parceiros Europeus, eu simplesmente desapareço no meio da noite”.

      Yanis Varoufakis – 13/07/2015

      http://www.abc.net.au/radionational/programs/latenightlive/greek-bailout-deal-a-new-versailles-treaty-yanis-varoufakis/6616532

      em “A Modest Proposal for Transforming Europe”, Varoufakis apresenta quatro linhas de ação para superar uma crise global que se desdobra em quatro frentes: crise bancária, crise da dívida, crise de investimentos e crise social. através de engenharia financeira clara e precisa, define o que fazer, porque fazer, como fazer e indica qual a fonte dos recursos.

      http://yanisvaroufakis.eu/euro-crisis/modest-proposal/4-the-modest-proposal-four-crises-four-policies

      .

  2. Caro,O exemplo que vc usa

    Caro,

    O exemplo que vc usa das vitorias eleitorais do PT trabalham contra o seu argumento.

    O PT só ganhou quando moderou o seu discurso, ocupando o nicho vago da social-democracia.

    O caso da Grecia tem outros complicadores.

    Tb fiquei muito frustrado com a “traiçao” do Tsipras.

    Depois caiu a ficha:

    (1) ele tentou usar a vitoria do nao como alavancagem para concessoes dos europeus. Nao colou. Ai ele nao teve o que fazer, porque nao havia plano B. A saida do Euro demandaria 6 meses de estudo e implementaçao. Nos, macacos velhos de mudança de moeda, sabemos bem como é isso. Nada tinha sido feito para viabilizar o plano “b”. E Yanis Varoufakis sabe disso. Faz demagogia agora.

    (2) A posiçao de Tsipras é dificil. Quem queria ser 1o ministro comandando o austericido? A saida facil para ele e politicamente melhor seria justamente pedir demissao e convocar eleiçoes depois da recusa dos europeus em negociar.

    Podia facilmente saltar do navio afundando.

    So nao digo que Yanis Varoufakis fez isso pq a sua cabeça era pre-condiçao da Merkel para seguir negociando.

    Mas ele vir com esse discurso demagogico é extremamente indigno para alguem que, assim como Tsipras, nao viabilizou o plano B.

    PS: Passa la no meu blog. Seus comentarios fazem falta.

    * * *

    Um adendo.

    Lembre-se da citaçao de Ortega y Gasset que o Barroso adora:

    – Entre querer ser e pensar que já se é, vai a distância entre o sublime e o ridículo.

    Aceite as limitaçoes do Brasil. É duro mas é a verdade.

    Para chegar onde vc quer com mais velocidade, só com uma revoluçao armada e repressao, ate mudar a maneira da maioria da populaçao de pensar – e se mudar.

    As experiencias do Sec. XX nao foram boas, nao é?

    Mas continue com o seu idealismo.

    É importante para o debate e para influenciar para onde aponta o vetor final.

    1. demagogias

      o lulismo e seu reformismo sem reformas

      “-> O exemplo que vc usa das vitorias eleitorais do PT trabalham contra o seu argumento. O PT só ganhou quando moderou o seu discurso, ocupando o nicho vago da social-democracia.”

      vc tem uma posição fechada: a sociedade brasileira é conservadora e a correlação de forças nada mais permite do que um projeto de reformas de baixa intensidade. é a mesma posição que determina os rumos do PT, e do lulismo, desde a fatídica última semana da campanha presidencial de 1989. por sinal, uma eleição que não foi ganha por Collor e sim entregue por Lula.

      insisto, e posso usar argumentos poderosos, que se trata muito mais de uma opção política do que uma análise das condições objetivas encontradas na sociedade brasileira. e minha posição não é fechada. ao contrário, é dinâmica e fundada na permanente análise da realidade. entre a revolução armada e a capitulação voluntária existe todo um universo de possibilidades.

      apenas para reflexão: o PT ganhou em 2002 pq ganharia de qq jeito! o Brasil estava farto do neoliberalismo selvagem de FHC desde a crise cambial do primeiro mês de seu segundo mandato, em janeiro de 1999. a “moderação” do PT objetivou muito mais, eu diria que exclusivamente, a ser aceito pelo setor dominante – e não só o brasileiro, Lula apertou a mão de Bush (num cuidadosamente encontro articulado por FHC e Dirceu) e de Washington anunciou o BC nas mãos do mercado financeiro. o projeto do lulismo sempre foi ser um gestor mais eficiente do que FHC, porque capaz de neutralizar as demandas dos trabalhadores, seja pela cooptação seja pela implementação de políticas sociais compensatórias formuladas pelo Banco Mundial – algo que FHC fracassou magistralmente em fazer.

      Varoufakis e sua proposta para mudar a Europa

      -> “So nao digo que Yanis Varoufakis fez isso pq a sua cabeça era pre-condiçao da Merkel para seguir negociando. Mas ele vir com esse discurso demagogico é extremamente indigno para alguem que, assim como Tsipras, nao viabilizou o plano B.”

      existia sim um Plano B. e Varoufakis tentou implementá-lo.

      Tsipras é o tradicional representante de uma Esquerda que a Direita adora – como Lula e o PT no Brasil. uma Esquerda demagógica e ávida por se deleitar com as delícias do poder – e aqui mais uma vez Lula e os “companheiros” aboletados nos Conselhos das estatais vitimadas pela privataria tucana são um enorme e péssimo exemplo.

      a proposta da equipe de Varoufakis foi declarar default ANTES das negociações, devolvendo o problema para quem o criou: a Troika. nisto se encaixa a auditoria da dívida (contribuição da brasileira Maria Lucia Fatorelli). como a situação das dívidas dos países Europeus é insustentável, assim como um Euro mantido como padrão fixo (sem mecanismo de absorção de choques e reciclagem de superávits), esta estratégia levaria necessariamente a um rearranjo financeiro da EU, sob pena de colapso do Euro.

      “Varoufakis fala também pela primeira vez da derrota política que o levou a sair do governo. Segundo a versão do ex-ministro, propôs ao governo um plano com três ações caso o BCE obrigasse ao encerramento dos bancos: a emissão (ou o anúncio) de uma moeda paralela (uma promessa de dívida conhecida como IOU), o corte na dívida detida pelo BCE desde 2012 e tomar o controlo do Banco da Grécia. “Perdi por seis contra dois”, diz Varoufakis, que voltou a insistir no plano na noite da vitória do OXI.”

      http://www.infogrecia.net/2015/07/varoufakis-abre-o-livro-voce-ate-tem-razao-mas-vamos-esmagar-vos-a-mesma/

      em  06/07/2015, comentei aqui no Nassif sobre os motivos da saída de Varoufakis, ocorrida na manhã daquele mesmo dia. sua propostas recusadas por Tsipras:

      1. estatização do sistema financeiro grego;

      2. adoção de moeda paralela;

      3. reestruturação da dívida;

      https://jornalggn.com.br/comment/684963#comment-684963

      o Plano B incluía até mesmo a tomada de assalto do sistema que controlava as finanças gregas, gerido pela Troika.

      “So we decided to hack into my ministry’s own software program in order to be able break it up to just copy just to copy the code of the tax systems website onto a large computer in his office so that he can work out how to design and implement this parallel payment system.”

      http://www.infogrecia.net/2015/07/planos-b-de-lafazanis-e-varoufakis-animam-a-imprensa-grega/

      http://www.zerohedge.com/news/2015-07-26/reports-secret-drachma-plots-leave-tsipras-facing-fresh-crisis

      O infoGrécia publica a gravação da intervenção de Varoufakis para uma plateia de investidores em Londres, onde descreve a preparação do plano alternativo para o caso de o país ser empurrado para fora do euro. Depois da polémica criada com artigos na imprensa grega a atacá-lo, o ex-ministro das Finanças da Grécia autorizou a divulgação pública desta gravação.

      http://www.infogrecia.net/2015/07/ouca-aqui-o-plano-b-de-varoufakis-explicado-a-investidores-estrangeiros/

      http://www.omfif.org/media/1067578/omfif-telephone-briefing-greece-and-europe-after-the-brussels-debt-agreement-yanis-varoufakis-16-july.mp4

      abraços

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