Chile cria novo estado civil para 2,0 milhões de uniões estáveis

Ministro Alvaro Elizalde

Frederico Füllgraf

Santiago do Chile

Exclusivo para Jornal GGN

Promessa de campanha do ex-presidente Sebastián Piñera e ante-projeto encaminhado ao Congresso chileno em 2011 – mas não aprovado até o final de seu mandato, em março de 2014, devido às resistências da Alianza de direita – neste mês de outubro tramita pela Câmara dos Deputados, o “Acuerdo Vida en Pareja” (Acordo sobre a União Estável), já aprovado pelo Senado, que prevê a regulamentação de direitos e proteção social de estimativamente 2,0 milhões de cidadãos (em uma população de 17 milhões de chilenos), hetero- ou homo-afetivos, não casados, mas que vivem em regime de união estável.

País afetado por forte cultura machista (137.296 casos de violência intra-familiar registrados em 2012) e pela quarta posição no macabro ranking do feminicídio na América Latina (com 273 assassinatos de mulheres ocorridos entre 2007 e 2012, segundo a Unidade Especializada de Violência Intrafamiliar e Delitos Sexuais da Procuradoria Nacional), no Chile governado pela coalizão Nova Maioria, da presidente Michelle Bachelet, estão em curso reformas, cujo objetivo é encorajar o país à despedida de suas tradições arcaicas, para não perder o bonde da História.

Sinal eloquente de que a coalizão governante, de socialistas, democrata-cristãos e comunistas, literalmente está dando a cara para bater ao “Chile profundo”, guardião de tradições autoritárias, foi a participação dos ministros Alvaro Elizalde e Jimena Rincón – respectivamente ministros-secretários do Governo e da Presidência – na colorida “Marcha pelo respeito à diversidade sexual”, ocorrida no último dia 15 de outubro, que há alguns anos toma as principais avenidas de Santiago e Concepción.

Falando aos manifestantes, o socialista Elizalde parecia acolhê-los sob o manto protetor do Estado, ao exortar a opinião pública para o “dever de promover a cultura da tolerância e do respeito, erradicando toda forma de discriminação em nosso pais”, advertindo que “na sociedade chilena não se discrimina apenas a orientação sexual, mas também por razões étnicas, sociais e de todo tipo”.

Homossexuais queimados nas fogueiras do Vice-Reino

A homofobia é tão antiga no Continente como o séc. XVI dos “descobrimentos”. Soa como quixotada barata, mas de acordo com pesquisadores como Osvaldo Bazán (“Historia de la homosexualidad en la Argentina”, 2004), ao desembarcarem no litoral dos Andes meridionais, os espanhóis taparam seus olhos e brandiram a cruz cristã contra o opróbio, pois, com toda a naturalidade, os machis (xamãs) araucanos praticavam o intercurso passivo com jovens no papel de maridos. Mas a leitura da prática que se consolidou na historiografia e na moral dos conquistadores e seus descendentes, confundia rituais sagrados com “devassidão” – a mesma já registrada entre os Incas, que dominavam metade do território chileno de então, e entre os quais o relacionamento homossexual, inclusive lésbico, era prática religiosa cortejada.

O sistema colonial instituiu a proibição, outorgando aos tribunais do vice-reino e aos bispados o poder da condenação e a estipulação dos castigos.

Exemplo de punição atroz é o registro de Diego de Rosales anotado no Livro V de sua “Historia General del Reyno de Chile” – escrita durante o séc. 17, mas apenas publicada em 1877 – da inspeção de fortes espanhóis na Araucânia, em 1602, pelo governador Juan de Jaraquemada, que ordenou queimar vivos em uma fogueira a 13 soldados do Forte Paicavi, em Angol, acusados de “sodomia e traição”: “Otra enfermedad más pestilente dio a algunos españole sen Paicabi, y due del alma, porque se hallaron tenidos de un sodomítico contagio, quemaron los trece y perdonose el uno por no ser tan culpado, cosa tan lastimosa y que puede servir de escarmiento a los que son tocados...”.

Vagabundos, loucos e sodomitas”

Com requintes de selvageria como os de Angol, durante 400 anos o relacionamento homoafetivo e -sexual foi duramente reprimido no Chile. Cúmulo da centenária herança machista e autoritária, durante seu segundo governo (1954-1958), ocorreu ao despótico presidente Carlos Ibañez del Campo, a promulgação de uma “Ley de Estados Antisociales” [espécie de “Lei de párias”], que em pleno ano de 1954 fixava disposições para o combate a “vagabundos, mendigos, loucos e homossexuais” – nesta ordem.

A lei esteve em vigor no Chile até 1994 e as disposições que penalizavam a “sodomia” foram anuladas apenas em 1998. Em 2003, finalmente, o Congresso chileno começou a debater um esboço de “pacto de união civil” entre pessoas do mesmo sexo, que 11 anos depois é então equipado com as disposições de proteção social.

Homofobia violenta

Em que pese o legado histórico, nem de longe a discriminação de homossexuais no Chile mata tanto como no truculento Brasil.

Contudo, de acordo com o “XII Relatório Anual de Direitos Humanos da Diversidade Sexual no Chile” (2013), em 11 anos foram registrados 1.128 casos de discriminação por orientação sexual, agravados em 2011, com 186 casos, e tendência decrescente em 2012 e 2013, provavelmente devido aos maciço repúdio da opinião pública.

A origem da discriminação violenta é generalizada, com 99 casos de agressão por parte de civis, 72 casos de discriminação no local de trabalho e 40 casos de agressão pela polícia.

De 2002 até o final de 2013, foram perpetrados 24 assassinatos contra homosssexuais, 4 deles apenas em 2013.

O Acordo sobre União Estável

Adiantando-se a eventuais investidas conservadoras, Elizalde advertiu que “o AVP não debilita a família, mas a fortalece”.

Em 2011, Sebastián Piñera, o antecessor conservador de Bachelet, surpreendeu com uma definição assaz corajosa: “Não existe um só tipo de família, existem múltiples formas e expressões de familia” (…), “motivo pelo qual todas merecem respeito, merecem dignidade e merecem e terão o apoio do Estado.” Mas durante três anos a Alianza governista de Piñera torpedeou a aprovação do projeto-lei do AVP com ressalvas sempre reeditadas.

Por isso, ao assumir o governo, em março de 2014, Michelle Bachelet recomendou sua aprovação em caráter de “suma urgência”, e na tramitação tiveram participação ativa ONGs do arco LGTB, como a Fundação Iguales e o Movimiento de Integración y Liberación Homosexual (MOVILH), que simbolicamente representam 35.000 homossexuais vivendo em regime de união estável, segundo o Censo de 2012.

Trocado em miúdos, o AVP significa a primeira regulamentação jurídica e social na história chilena da relação entre duas pessoas, hetero ou homossexuais, com ou sem filhos, que se amam, vivem sob o mesmo teto e constituiram família, mas são excluídas dos benefícios concedidos aos casais que contraíram matrimônio.

Com promulgação prevista para o mês de novembro, ao AVP poderão recorrer todos os casais maiores de idade, com estado civil de solteiros, bastando que requeiram a legalização de seu relacionamento perante o Registro Civil e o Instituto de Identificação, ou mediante ata notarial de fé pública.

Como no caso do Brasil, a certidão AVP chilena garante aos casais de namorados direitos de inclusão em planos de saúde e seguros de vida, a citação em testamentos e, em caso de rompimento do contrato, a divisão dos bens acumulados pelo casal e a concessão de pensão alimentícia. As disposições incluem a obtenção de visto chileno para estrangeiros que mantenham relacionamento estável com nacionais.

Casamento, não: “novo estado civil”

Diferentemente do Brasil, onde a família homoafetiva foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal em maio de 2011 como segunda etapa das uniões estáveis (a primeira concedeu direitos apenas aos heterossexuais), a AVP do Chile resolve com uma só canetada os direitos de hetero- e homossexuais. Mas apenas para quem efetivamente mora debaixo de um só teto, estando excluídos os namorados com casas separadas.

Contudo, ao reiterar que as disposições do AVP “estabelecem um novo estado civil”, que não estava previsto no projeto de Piñera, a linguagem do governo da Nova Maioria tenta contornar o nome da coisa que não pode ser admitido escancaradamente perante a nação ainda majoritariamente conservadora em seus costumes: “casamento”.

Eis o problema, reclamado por grande parcela dos casais homossexuais, ao que tudo indica ainda dominados pela obsessão conservadora da instituição do casamento: o AVP não significa “casamento igualitário”, pois os parceiros não podem mudar de sobrenome, de modo que os filhos que um e outro integrem ao relacionamento, continuam com o sobrenome do pai ou da mãe, e não do namorado com quem casou – perdão: com quem vive em “novo estado civil”.

 

 

Redação

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