A caixa de Pandora e o Iceberg da Corrupção

A Caixa de Pandora brasileira está aberta. O conteúdo que ela expele neste momento adquiriu autonomia em relação ao projeto eleitoral que a destampou. Há, agora, uma motivação mais profunda e mais sincera que transcende à questão tática que colocou o tema da corrupção no horizonte restrito da luta partidária. O Brasil tem necessidade de compreender esse fenômeno cultural.

Essa necessidade nasce da circunstância de termos alcançado um grau de maturidade – não apenas dentro do Governo, mas, sobretudo, na esfera do Mercado e da Sociedade Civil organizada – suficiente para enfrentar o problema da corrupção sem medo de avançar até ao alcance de sua real dimensão.

A corrupção que passou a ser parcialmente enxergada pela opinião pública, nos últimos 12 anos, não foi inventada no governo do PSDB e muito menos na gestão do PT. O que difere na prática desses partidos é a evidente maneira de reagir de cada um deles frente ao mesmo problema.

No plano da experiência social de vários segmentos das diversas elites, temos enraizado uma cultura de esperteza que se lança de assalto ao bolso alheio e, principalmente, mediante o aperfeiçoamento da pilhagem e do saqueio ao cofre público; esta adaptação se dá mediante uma técnica de supressão da expectativa ética: aproveitando-se ‘dos furos’ da lei e, quando a lei é modificada para reduzir ‘os seus riscos’, instrumentalizando a interpretação da lei para manter sua armadura aberta às manobras de esperteza. Esgotadas essas possibilidades, inova-se com a edição de uma outra lei que crie outras novas possibilidades.

Dinheiro não tem pátria, corruptor não tem ideologia e corrupto não tem partido. Constitui erro de ponto de partida utilizar esses conceitos da ‘ordem social moderna e ocidental’ como referência de conhecimento e de análise. “O Estado brasileiro”, “comunista ou capitalista”, “PSDB, PPS, PMDB, PT ou PSOL” são termos teoricamente inadequadas para identificar estrutura, funcionamento, causa ou efeito do fenômeno corrupção!

Corrupção é um fenômeno universal relacionado com acesso e distribuição de riqueza e de poder, em regra pela articulação desses interesses de forma invisível aos sistemas de controle normativo e aos sujeitos do ambiente que não têm acesso direto às interfaces interativas de seus operadores diretos.

Erro mais grave ainda – porque tem força de inaugurar e alimentar ilusões – é supor que exista um salvador da Pátria, ou um super-herói mascarado, que tenha poder jurídico, moral, cognitivo ou tecnológico para debelar a corrupção e exterminar aos corruptos e corruptores. A história da humanidade é rica de demostração dessa farsa: o aventureirismo sempre acaba em shit e o herói na prisão ou no cemitério.

É muito difícil existir algo de bom ou de ruim que o homem invente para seu gozo, consumo ou exercício experimental, que possa ser extinto por vontade unilateral de outro homem. Tudo que gera prazer, prestígio ou poder – mesmo no âmbito da própria subjetividade individual – tende a permanecer disponível à escolha e ao acesso, até o dia do juízo final. O que o direito e a moral podem fazer, no plano intersubjetivo do controle da conduta humana, é desestimular a escolha, objetivando manter os limites comportamentais em níveis razoáveis de tolerabilidade. A tal “tolerância zero” é apenas um arroubo à moda de neófito, um signo que aponta para a ideia de ‘determinação da vontade’ para enfrentamento de uma luta.

Para compreensão da estrutura e do funcionamento da pilhagem que se faz aos cofres da Administração Pública, direta e indireta no Brasil, os partidos políticos importam sim, mas, apenas, como embalagem, canal ou recipiente. E tanto mais, na proporção em que seus quadros adquirem potencialidade de acesso a cargos de governança política (eleição), ou de direção na administração superior (nomeação) dos aparelhos que têm certa margem de autonomia para praticar decisões que originem contratos de fornecimento, compra ou manutenção de bens ou de realização de obras públicas.

O grosso de toda essa dinheirama que é dado, seletivamente, ao eleitor ver nos jornais da TV vem das práticas instituídas pelos processos de licitações; ou melhor, pelas brechas ou pelas exceções geradas pelas complexidades dos regulamentos. Pouco desse dinheiro é direcionado ao enriquecimento pessoal dos burocratas e dos políticos que os indicam para nomeação nos cargos decisórios estratégicos. A maior parte da propina que é repartida na licitação é direcionada à formação de caixa dois para financiamento de candidaturas. Ao lado do caixa que alimenta a prestação de contas oficial, o “caixa dois” será um fundo espúrio de campanha posto ao controle de novos coronéis que, secreta e seletivamente, distribuirão cotas para financiamento da campanha dos candidatos que interessam ‘ao esquema’ lobista. Cada vez menos, os interesses corporativistas confiam na ação parlamentar de políticos profissionais. Nesse sentido, cresce o abandono da ideia de democracia representativa na medida em que os quadros do próprio setor interessado trocam suas funções sociais econômicas e mercadológicas por funções políticas nas esferas estatais.

O exercício da governança no ambiente democrático implica limitações e complexidades. Diferentemente do princípio de direito que rege a atividade privada – segundo o qual o particular “está autorizado a fazer tudo o que não está proibido por lei” (liberdade) – no exercício da atividade pública a autoridade “está proibida de fazer aquilo que sua liberdade possa escolher”, salvo se estiver previamente autorizado por lei (legalidade). Essa condição que limita o arbítrio do governante funcionou durante muito tempo como o instrumento de compensação e equilíbrio dos pesos, tal como era a expectativa dos criadores do sistema tripartite de poder. Porém, as transformações ocorridas no seio do capitalismo determinando o refluxo de valores éticos por influxo dos discursos pela busca de resultados técnicos, impuseram outras condições politicas: a base parlamentar da governança depende de alianças complexas, que dependem de barganha por cargos de alta direção estratégica, que implicam nomeação de gente da confiança dos parlamentares, que passa pelo filtro dos coronéis que controlam o mapa e os dutos de tais minas de ouro, etc. Etc.

Num quadro complexo como este, falar em responsabilidade política do governante pelas patifarias que um burocrata de carreira (guindado a cargo de direção pela mãos de políticos ‘aliados’) possa fazer, aliado com políticos e empresários, eleitos para o parlamento e escolhidos pelas licitações, é piada de mal gosto. É supor imbecilidade por todas as partes, exceto no campo da oposição…

Voltemos à corrupção.

Uma pista para para tentar ver o desenvolvimento da corrupção, tal como tem sido fragmentariamente exposta na mídia como forma de influenciar a disputa eleitoral, tendo por objetivo enfraquecer e excluir o PT da governança nacional e regional.

Até 1967, a corrupção que assolava o espaço da administração pública era uma prática amadora de baixo custo e dano; estados e municípios montavam secretarias de obras com quadros completos de técnicos e operários, aptas a realizarem os próprios serviços. Era uma época de ‘‘desvios’’: tijolo, cimento, ferro, etc. O corrupto levava ‘a sobra’ para vender ou construir patrimônio próprio. Operação complicada, pesada, amplamente compartilhada e visível mesmo quando feita à noite e aos fins de semana.

No governo do bem-intencionado Castelo Branco – e com o elevado objetivo de acabar com a corrupção que assolava a Administração pública daquela época – foi editado o DL 200 que, em seus artigos 125-144, instituiu as “normas relativas a licitações para compras, obras, serviços e alienações” como parte da Reforma Administrativa modernizadora que ali se inaugurava e que iriam resultar na mudança de papel e de finalidade das secretarias de obras até então cheias de corruptos que se apropriavam das sobras das medidas. Posteriormente, em 1986, pelo DL 2.300, o bem-intencionado José Sarney aperfeiçoou o sistema licitações e contratos da Administração pública, dando-lhe estatuto próprio cheio de complexidades e riscos. Essas, historicamente, as duas medidas legislativas que autorizaram as práticas licitatórias de onde emerge hoje a corrupção, complexa e organizada, que chega parcialmente ao conhecimento da opinião pública brasileira. Como essa amostragem se dá no painel superexpositivo que atrai as energias da campanha eleitoral, a sociedade saiu das eleições perplexa e assustada – sem ter consciência de que tudo isto pode ser, apenas, a ponta de um iceberg.

O lado positivo de tudo isso: o Titanic experimentou a morte, quando despareceu dos mares. O Brasil, se todos – governo, mercado e sociedade civil organizada – quiserem realmente ir ao fundo desse oceano, experimentará um processo de [re] nascimento. Mas, é preciso, antes largar essa mania por futebol fora dos estádios.

Chega de Fla-Flu!

Redação

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