Cícero e os Catilinas brasileiros


Cícero e Catilina – Mural de Cesare Maccari (1840-1919), Sala Maccari, Palazzo Madama (Senado Italiano, Roma/Itália – 1882/1888), representando o primeiro discurso de Cícero contra Catilina (63 a.C.)

“Uma nação pode sobreviver aos idiotas e até aos gananciosos, mas não pode sobreviver à traição gerada dentro de si mesma. Um inimigo exterior não é tão perigoso, porque é conhecido e carrega suas bandeiras abertamente. Mas o traidor se move livremente dentro do governo, seus melífluos sussurros são ouvidos entre todos e ecoam no próprio vestíbulo do Estado. E esse traidor não parece ser um traidor; ele fala com familiaridade a suas vítimas, usa sua face e suas roupas e apela aos sentimentos que se alojam no coração de todas as pessoas. Ele arruina as raízes da sociedade; ele trabalha em segredo e oculto na noite para demolir as fundações da nação; ele infecta o corpo político a tal ponto que este sucumbe”. (Discurso de Marco Túlio Cícero, tribuno romano, 42 a.C.) (1)

CÍCERO & CATILINA

Primeiro discurso contra Catilina de Marcus Tuliu Cicerus (106 a.C. – 43 a.C.), o maior orador romano de todos os tempos, e um dos seus maiores pensadores, cônsul de Roma, recitado no Templo de Júpiter em 8 de novembro de 63 a.C., no monte Capitolino de Roma. Quando Cícero descobriu que havia uma conspiração para assassiná-lo e tomar o poder, ele então convocou uma reunião do Senado e proferiu o primeiro de seus quatro célebres discursos contra Catilina, que ficariam conhecidos como Catilinárias. A intervenção de Cícero se tornou um clássico da política e passou a ser invocada ao longo de mais de 2 mil anos sempre que um homem público atenta contra o interesse geral da população. O mentor do complô era o senador Catilina, nobre arruinado por dívidas que contava com o apoio de outros homens ricos igualmente debilitados financeiramente. Lucius Sergius Catilina, patrício romano, nasceu em 109 a.C. e morreu em 62 a.C. Corajoso e ousado, mas sem escrúpulos, tornou-se sinônimo de conspirador e o nome dele é empregado para designar os que desejam recompor o seu poder e a sua fortuna sobre as ruínas da própria pátria.

PARTE INICIAL DO DISCURSO (2)

“Já não podes conviver por mais tempo conosco”

Até quando, oh Catilina, abusarás da nossa paciência? Por quanto tempo ainda há de zombar de nós essa tua loucura? A que extremos se há de precipitar a tua audácia sem freio? Nem a guarda do Palatino, nem a ronda noturna da cidade, nem os temores do povo, nem a afluência de todos os homens de bem, nem este local tão bem protegido para a reunião do Senado, nem o olhar e o aspecto destes senadores, nada disto conseguiu perturbar-te? Não sentes que os teus planos estão à vista de todos? Não vês que a tua conspiração a tem já dominada todos estes que a conhecem? Quem, dentre nós, pensas tu que ignora o que fizeste na noite passada e na precedente, em que local estiveste, a quem convocaste, que deliberações foram as tuas?

Oh tempos, oh costumes! O Senado tem conhecimento destes fatos, o cônsul tem-nos diante dos olhos; todavia, este homem continua vivo! Vivo?! Mais ainda, até no Senado ele aparece, toma parte no Conselho de Estado, aponta-nos e marca-nos, com o olhar, um a um, para a chacina. E nós, homens valorosos, cuidamos cumprir o nosso dever para com o Estado, se evitamos os dardos da sua loucura. à morte, Catilina, é que tu deverias, há muito, ter sido arrastado por ordem do cônsul; contra ti é que se deveria lançar a ruína que tu, desde há muito tempo, tramas contra todos nós.
(…)

No original

Quo usque tandem abutere, Catilina, patientia nostra? quam diu etiam furor iste tuus nos eludet? quem ad finem sese effrenata iactabit audacia? Nihilne te nocturnum praesidium Palati, nihil urbis vigiliae, nihil timor populi, nihil concursus bonorum omnium, nihil hic munitissimus habendi senatus locus, nihil horum ora voltusque moverunt? Patere tua consilia non sentis, constrictam iam horum omnium scientia teneri coniurationem tuam non vides? Quid proxima, quid superiore nocte egeris, ubi fueris, quos convocaveris, quid consilii ceperis, quem nostrum ignorare arbitraris?

O tempora, o mores! Senatus haec intellegit. Consul videt; hic tamen vivit. Vivit? immo vero etiam in senatum venit, fit publici consilii particeps, notat et designat oculis ad caedem unum quemque nostrum. Nos autem fortes viri satis facere rei publicae videmur, si istius furorem ac tela vitemus. Ad mortem te, Catilina, duci iussu consulis iam pridem oportebat, in te conferri pestem, quam tu in nos [omnes iam diu] machinaris.
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CATILINA ABUSA DE NOSSA PACIÊNCIA (3)
Análise de Frei Betto 

“Até quando, ó Catilina, abusarás da nossa paciência?”, indagou Marco Túlio Cícero ao senador Lúcio Sérgio Catilina, a 8 de novembro de 63 a.C., em Roma. Flagrado em atitudes criminosas, Catilina se recusa a renunciar ao mandato.

Cícero, orador emérito, respeitado por sua conduta ética na política e na vida pessoal, pôs em sua boca a indignação popular: “Por quanto tempo ainda há de zombar de nós essa tua loucura? A que extremos se há de precipitar a tua audácia sem freio? Nem a guarda do Palatino, nem a ronda noturna da cidade, nem os temores do povo, nem a afluência de todos os homens de bem, nem este local tão bem protegido para reunião do Senado, nem o olhar e o aspecto destes senadores, nada disto conseguiu perturbar-te? Não sentes que os teus planos estão à vista de todos?”

“Ó tempos, ó costumes!”, exclamou Cícero movido por atormentada perplexidade diante da insensibilidade do acusado. “Que há, pois, ó Catilina, que ainda agora possas esperar, se nem a noite, com suas trevas, pode manter ocultos os teus criminosos conluios; nem uma casa particular pode conter, com suas paredes, os segredos da tua conspiração; se tudo vem à luz do dia, se tudo irrompe em público?”

Jurista, Cícero se esforçou para que Catilina admitisse os seus graves erros: “É tempo, acredita-me, de mudares essas disposições; desiste das chacinas e dos incêndios. Estás apanhado por todos os lados. Todos os teus planos são para nós mais claros que a luz do dia”.

Se Catilina permanecia no Senado, não era apenas a vontade própria que o sustentava, mas sobretudo a cumplicidade dos que teriam a perder, com a renúncia dele, proveitos políticos. Daí a exclamação de Cícero: “Em que país do mundo estamos nós, afinal? Que governo é o nosso?”

Cícero não temia ameaças e expressava o que lhe ditava o decoro: “Já não podes conviver por mais tempo conosco; não o suporto, não o tolero, não o consinto. (…) Que nódoa de escândalos familiares não foi gravada a fogo na tua vida? Que ignomínia de vida particular não anda ligada à tua reputação? (…) Refiro-me a fatos que dizem respeito, não à infâmia pessoal dos teus vícios, não à tua penúria doméstica e à tua má fama, mas sim aos superiores interesses do Estado e à vida e segurança de todos nós”.

Os crimes de Catilina escancaravam-se à nação. Seus próprios pares o evitavam, como assinalou Cícero: “E agora, que vida é esta que levas? Desejo neste momento falar-te de modo que se veja que não sou movido pelo rancor, que eu te deveria ter, mas por uma compaixão que tu em nada mereces. Entraste há pouco neste Senado. Quem, dentre esta tão vasta assembléia, dentre todos os teus amigos e parentes, te saudou? Se isto, desde que há memória dos homens, a ninguém aconteceu, ainda esperas que te insultem com palavras, quando te encontras esmagado pela pesadíssima condenação do silêncio?”

Catilina fingia não se dar conta da gravidade da situação. Fazia ouvidos moucos, jurava inocência, agarrava-se doentiamente a seu mandato. “Se os meus escravos me temessem da maneira que todos os teus concidadãos te receiam” – bradou Cícero -, “eu, por Hércules, sentir-me-ia compelido a deixar a minha casa; e tu, a esta cidade, não pensas que é teu dever abandoná-la? E se eu me visse, ainda que injustamente, tão gravemente suspeito e detestado pelos meus concidadãos, preferiria ficar privado da sua vista a ser alvo do olhar hostil de toda a gente; e tu, apesar de reconheceres, pela consciência que tens dos teus crimes, que é justo e de há muito merecido o ódio que todos nutrem por ti, estás a hesitar em fugir da vista e da presença de todos aqueles a quem tu atinges na alma e no coração?”

Cícero não demonstrava esperança de que seu libelo fosse ouvido: “Mas de que servem as minhas palavras? A ti, como pode alguma coisa fazer-te dobrar? Tu, como poderás algum dia corrigir-te?” E não poupou os políticos que, apesar de tudo, apoiavam Catilina: “Há, todavia, nesta Ordem de senadores, alguns que, ou não veem aquilo que nos ameaça, ou fingem ignorar aquilo que veem”.

Acuado, Catilina se refugiou na Etrúria e morreu em 62 a.C. Cícero, afastado do Senado por Júlio César, foi assassinado em 43 a.C. Um século depois, Calígula, desgostoso com o Senado, nomearia senador seu cavalo Incitatus, com direito a 18 assessores, um colar de pedras preciosas, mantas de cor púrpura e uma estátua, em tamanho real, de mármore com pedestal em marfim.

Frei Betto é assessor de movimentos sociais e escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros.
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Pesquisas:
(1) Arte Fato 
(2) Adaptado e extraído d’O Portal da História Aqui & Aqui 
(3) BRASIL DE FATO 

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O DISCURSO COMPLETO 

 Marco Túlio Cícero – Primeiro Discurso contra Catilina no Senado

https://www.youtube.com/watch?v=R_0kA6gSwIk align:center
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Jota Botelho

6 Comentários

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  1. Uma bela lição para os que

    Uma bela lição para os que acham que a politica de hoje é muito diferente da politica de todos os tempos.

  2. Do Passado!
    Reconstruimos a nova historia. Aprendendo e vendo o que aconteceu e conduzindo a novo futuro.
    Muito bom!
    Nos brasileiros temos uma grande memoria!

  3. É ……………

    que bela épóca !!! Que belo discurso proferido no Senado Romano !! E finalmente que tribuno romano, ou melhor que homem tão raro nos dias de hoje !!!

    Onde estão os Tribunos contemporâneos em nosso Senado ? Onde andam os verdadeiros homens públicos que gostaríamos de admirar, mas que infelizmente deixaram de existir !!!

    Oh, vida ingrata, quando vemos os traidores da Nação, leves e soltos, negociando a honra da Nação e de seus habitantes!!!

    Que o digam os gregos, nacionais da antiga Grécia, Pátria da Democracia hoje tão ultrajada !!!!!

    Finalizo dizendo tal qual  Ruy Barbosa – ” …. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto.”

     

     

    1. Wendel

      kkk

      Este mesmo Ruy que mandou por folgo em todos os arquivos de compra e venda, entrada e saída, transferências dos negros, escravos, etc… os irmaos e parentes, tribos foram selados com seus destinos, memorias e matando sua historia e seu passado.

      1. E …………………

        João, não tenho procuração para defender  Ruy Barbosa, e ao transcrever parte de sua célebre Oração aos Moços,  (“De tanto ver triunfar as nulidades…” ), deveu-se ao momento pelo qual estamos passando.

        Quanto às polemicas, sobre as atitudes do escritor, sem falsa modéstia, deixo a critério dos ilustres historiadorese e seus biógrafos, que são a meu ver os mais indicados para a abordagem da  matéria! 

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