O Secularismo como causa política

As pessoas podem defender as mais variadas causas e há tempos a política saiu daquela situação binária “direita-esquerda”, que remete basicamente a classes sociais. Com o mundo convergindo para modelos de manutenção do capitalismo com esforços para promoção de bem-estar social, estes especialmente nos países em desenvolvimento, um outro eixo se interpôs, o que leva de conservadorismo social ou religioso (ou mesmo “ditadura da maioria”) a libertarianismo (o que inclui forte defesa do secularismo.) E será assim enquanto não houver uma completa transição para sistemas que garantam a liberdade de expressão individual em comportamento.

Nos países ocidentais, durante muito tempo e mesmo após a disseminação dos modelos de democracia representativa partidária com Estado Laico, foi muito mais frequente do que não que o conservadorismo religioso, com muitos ditames a respeito de como as pessoas deveriam não apenas se portar, como também “ser”, tivesse se aliado ao conservadorismo econômico.

Como, ao mesmo tempo, as experiências do socialismo real foram claramente antirreligiosas, firmou-se, por um bom tempo, a conceituação de que não apenas causas como o combate à discriminação racial e social mas também as ligadas a sexismo e secularismo seriam mais bem defendidas pela então chamada “esquerda”. Assim, novamente mais frequentemente do que não, foi em países socialistas por um lado, e por iniciativa de partidos trabalhistas ou social-democratas por outro, que legislações secularistas, tais como aborto, divórcio, voto feminino, fim de educação religiosa em escolas públicas, etc foram se espalhando pelo mundo. (O desastre no lado “socialista real” para lidar com a questão da homofobia foi uma exceção, mas, para a confirmação da regra geral, a maioria das iniciativas por direitos civis dos homoafetivos foi de partidos mais à esquerda no lado “capitalista” do mundo. Sem ter a ver com secularismo, mais ou menos o mesmo ocorreu com a discussão de meio-ambiente.)

E o Brasil não fugiu dessa regra: tomando como exemplo o PT, que desde seu início se posicionou à esquerda no espectro político, pois constavam em seu programa a despenalização do aborto e em seus quadros vários deputados atuantes na proposição de legislações para direitos civis de LGBTs.

Mas a Guerra Fria terminou. Depois dela uma onda neoliberal varreu o mundo. A desconcentração de renda, uma constante quase universal após a II Guerra e até meados dos anos 1980, foi substituída por modelos econômicos concentradores. Ao mesmo tempo, uma outra onda, de redemocratização, substituiu boa parte das ditaduras, militares ou civis, do mundo subdesenvolvido, por governos eleitos. Que, não raro, viriam a ser de centro-esquerda, numa tentativa de reproduzir em seus países passos já tomados pelas economias ricas décadas antes. E já também sintonizados com o modelo social-liberal do mundo globalizado, de respeito a regras de mercado e propriedade privada.

E aí religião voltou para a política. Os impactos foram diferentes dependendo da região do mundo. Na Europa Ocidental e demais países desenvolvidos relativamente pouco mudou, pois a tendência de longo prazo de secularização se manteve, assim como a associação conservadorismo em economia com conservadorismo religioso para as eventuais exceções. Para esses países, e pode-se citar EUA e França como exemplos, pode ocorrer um exemplo perverso para os mais pobres e menos informados, que é o feito de que justamente por manipulação de discursos de medo (que não precisam ser apenas em torno de “família”, mas também de segurança pública e o já velho mas ainda existente “medo do comunismo”) estes sejam levados a votar na opção política menos comprometida com programas sociais ou distribuição de renda. De qualquer modo, como esses países são também daqueles com maior escolaridade e liberdade de informação, isso deve tornar-se um efeito de médio prazo.

Na Europa Oriental, com muitos países de maioria cristã-ortodoxa, especialmente os maiores dentre a ex-URSS, vimos movimentos pela recriminalização do aborto e as bem-sucedidas proibições da manifestação da homossexualidade. Nos países de maioria islâmica, em vários dos mais populosos pelo menos, o que se viu foi movimentos anti-secularistas se aliando a demandas sociais reprimidas com vistas a chegar ao poder, com eleições ou não (e a esquerda secularista passar à oposição, junto à classe média mais cosmopolita.)

Na África e América Latina, menos gravemente nesta última, também foi parecido. Ficou claro nos últimos 10 anos, em boa parte dessas regiões, como o discurso político por reformas sociais, contemporizado por legislações de proteção à iniciativa privada e patrimônio, triunfou. E nem cabe mais questionar se essa combinação, que se pretende social-democrata, é mais “neoliberal” ou mais “socialista”, é a mais popular na maioria das eleições. E mesmo nas situações em que há alternância de partidos no poder, o que de fato muda? Relativamente pouco na maioria dos países, não obstante eventuais diferenças sejam realçadas para efeito de propaganda política.

Nesse contexto, deixou de fazer sentido para a Igreja Católica se posicionar em questões econômicas, até porque isso levava a divisões internas, que não eram raras quando havia muitas ditaduras militares. Mas esta continuou tentando exercer sua influência temporal , com a consequência de que a América Latina é, junto com o Oriente Médio, das poucas onde a proibição ao aborto é generalizada (a proibição do aborto se estende a apenas ¼ da população mundial.)

E em alguns países, notadamente o Brasil (mas fenômeno também visível em países da América Andina e do Sul da África) surgiu o fenômeno do rápido crescimento de igrejas cristãs mais conservadoras em costumes. Como no Oriente Médio, a preferência por interpretações religiosas mais dogmáticas recai nas parcelas com menor acesso à instrução, o que termina por significar também as de menor renda.  Ao contrário do islamismo, onde não é bem visto se deixar a religião, no mundo cristão a passagem do catolicismo para o protestantismo não causa mais grandes reservas. E aí surgem muitas denominações que inclusive se articulam politicamente.

Vê-se ainda que na América Latina, como se trata de nações ainda pobres e com problemas sociais, discursos redistributivistas e de programas sociais manterão sua força eleitoral. Também se sabe que isso não levará a nenhuma ruptura : o poder econômico patrocina campanhas bem sucedidas para o legislativo, a mídia adota um discurso conservador que influencia as pessoas a serem moderadas nas expectativas, os estamentos (como legislação e Poder Judiciário) fazem com que qualquer iniciativa mais radical de mudança se “estabilize” e se transmute em reformismo gradual.

Mas e o que ocorreu com aquela velha ideia de que o conservadorismo religioso se associaria ao conservadorismo político e econômico, situação ainda presente no “Bible Belt” dos EUA?  O que cabe para um líder religioso fazer? Bom, pelo visto, pelo menos no Brasil, o pragmatismo imperou. Como não há riscos institucionais, o discurso conservador em religião não busca mais aliar-se ao que se chamaria de “direita”, mas mais simplesmente a quem provavelmente ganhará eleições.

Isto é, voltando à figura inicialmente exposta, a dos dois eixos atuais na política, torna-se indiferente para um grupo religioso que deseja atuar politicamente a ideologia dos grupos políticos que apoiará, contanto que estes sejam também possíveis favoritos junto à sua congregação. Como em outros países, no Brasil a possibilidade de usar religião para convencer eleitores é mais forte junto às camadas mais pobres, mais propensas a acreditar que dogmas religiosos deveriam voltar à legislação do país. Este segmento da população também é o mais carente de desenvolvimento social.

Tudo isto torna bastante coerente a seguinte situação: a presença de “conservadores” (no sentido moral-comportamental) de “esquerda” (como reformistas sociais.) Isto é, após 30 anos de variadas evoluções políticas, econômicas e demográficas, o libertarianismo (ou mesmo o secularismo) deixa de ser uma causa típica de esquerda, e o apoio de grupos religiosos, mais influentes entre mais pobres, passa a ser aliado, ainda que historicamente não tenha sido assim.

Houve também tempos em que parte substancial da classe média, mais informada e defensora de valores como liberdades democráticas, se alinhava com a porção mais à esquerda do espectro eleitoral, especialmente por reconhecer a importância de eleições pluripartidárias, liberdade de imprensa e mesmo progressismo social (não pode passar despercebido que no 2º turno da eleição de 1989 Lula obteve, conforme pesquisas, mais votos na faixa acima de 2 S.M. e Collor o contrário.) Mas nada disso está em aparente risco no momento e a classe média não é o alvo de programas sociais.

Órgãos de comunicação, habituados a enxergar a classe média como seu público habitual, reconhecem agora no mesmo um pendor para um discurso menos reformista em economia. O que não raro, e além de interesses corporativos que podem também estar presentes, faz esses mesmos órgãos defenderem programas políticos mais conservadores e/ou mais voltados a redução de Estado e/ou redução de impostos (o fato de que o sistema tributário no Brasil é regressivo passa completamente ao largo de qualquer discurso, mas isto não é o foco aqui.)

Então, para fechar o ciclo de mudanças o que temos? Que não somente a mídia como a academia (grosso modo o conjunto de pensadores que pesquisa e reflete sobre a sociedade) também enxerga nas classes médias uma maior tendência para abraçar o secularismo e várias causas minoritárias. Não importa que o aborto seja principalmente um drama para os mais pobres com menor acesso à educação sexual ou contracepção, é nas faixas superiores de renda que a aprovação à uma eventual despenalização é maior (ainda que não muito mais que 30%). Não importa que LGBTs existam na mesma proporção em todos os segmentos da população e que sofram mais com o preconceito nas camadas mais pobres, é nas faixas mais ricas e instruídas que o apoio a casamento gay e criminalização da homofobia é maior.

E nada disso é por acaso: é nas camadas de renda mais alta que a presença de ateus/agnósticos ou praticantes de doutrinas interessadas no secularismo (como o espiritismo ou religiões orientais) é muito maior.

Se tais mudanças provocam alguma confusão nos analistas políticos, isso não é só no Brasil. A recente tentativa de manipulação política do casamento gay (CG) na França nos traz dois exemplos (por leitura de pesquisas): a minoria muçulmana com direito a voto apoiou fortemente Hollande na eleição presidencial, mesmo com a promessa do CG, pois este prometera também diminuir a intensidade de políticas anti-imigratórias. Por outro lado, agora durante os eventos em torno da apreciação do CG no Senado, notou-se que a classe média, apesar de eleitora de programas econômicos mais conservadores, e que dá baixos índices de popularidade a Hollande, manteve-se no geral apoiando o CG. Isto é: embora o CG fosse parte do programa socialista, o que parece condizente com aquele modo tradicional de ver esquerda/direita, o apoio foi relativamente maior nos segmentos de classe que menos apoiam o Partido Socialista.

Que não cause surpresa, portanto, nestes tempos pós-democratização, pós-globalização, pós-neoliberalismo, que no mundo todo surja e/ou cresça a seguinte configuração: mídia-classe média-conservadorismo econômico-secularismo por um lado e partidos trabalhistas-reformismo econômico-conservadorismo religioso por outro.

Isto nos traz ao seguinte ponto da realidade atual brasileira: por um lado, o PT parece ter abandonado o apoio explícito a muitas e várias causas de interesse LGBT, apesar da história desse partido até 2009 e da óbvia justiça de tais causas, em troca de apoio de igrejas muito presentes nas porções mais carentes da sociedade. E isto inclui outras questões ligadas ao secularismo, não apenas sobre o aborto (declarado como fora dos limites em 2010, o que pode ter sido de algum modo reforçado com a MP 577/2011), como o apoio este ano, via CCJC, a PECs de natureza claramente anti-secularista (como a PEC 99/2011 e PEC 33/2011), as articulações em torno da transferência do controle da CDHM do PT para o PSC, as negociadas participações, já com vistas a 2014, de partidos como PP, PR, PRB e PSC na composição do governo.  Sem exaurir ainda uma longa lista, podemos mencionar as movimentações para coibir a atualização do Código Penal.

O apoio midiático a tudo isso não passa apenas pela TV Record, que todos percebem como ligada ao PRB e Igreja Universal, mas também pelos discursos em púlpitos no cotidiano das igrejas nas periferias e também na blogosfera (em sua porção mais governista) que parece omitir com frequência qualquer crítica que se possa fazer às iniciativas anti-secularistas do Congresso e Ministério atuais. Quando alguma crítica aparece, como em dez./2011 à MP 577, é exceção.

Por outro lado, a grande mídia (que no geral muitas vezes parece simpatizante ao discurso do PSDB, possivelmente o partido ainda preferido na classe média mais tradicional) encaixa o reconhecimento à homossexualidade e a questão da homofobia com frequência crescente em suas TVs, jornais e revistas. É por essa mídia que vemos críticas, também, à recente condescendência em relação ao ensino religioso em escolas públicas. Se um dia aborto voltar a ser discutido no Brasil, provavelmente também o será por essa mídia.

E a defesa a causas como o meio-ambiente (que não é propriamente cara ao fundamentalismo religioso, apesar de Marina Silva, pela dependência política de seus representantes, na prática atual do Congresso, dos ruralistas) e descriminalização da maconha (como modo de minimizar perdas em segurança pública), ainda que incipientes, se faz presente também, uma vez que isso, novamente, coincide com interesses da classe média e/ou pessoas com formação escolar superior. Se políticos do PSoL, por exemplo, aparecerem em programas de TV, que não se veja isso como algo esdrúxulo, pois no recorte acima de 5 S.M. esse partido chega a 5% da preferência do eleitorado paulistano, e abaixo de 2 S.M. mal chega a 1%… (o que pode fazer pensar se o ‘s’ não seria mais de secularismo que de socialismo propriamente dito.)

Do grande conjunto de variadas causas minoritárias ou ligadas a grupos vulneráveis, provavelmente apenas as de cotas raciais e defensa da juventude, com recorte sócio-econômico claramente definido como de maior interesse para o eleitorado de menor renda, são ainda defendidas com maior vigor pela centro-esquerda política que pela direita midiática.

Não há como dizer que o PT e/ou o Poder Executivo sejam grandes defensores do secularismo hoje em dia, pois experimentamos muitas concessões na prática dos últimos três anos. Também não há mais como dizer que a mídia seja reacionária do ponto de vista comportamental, até porque por aí há um flanco de possível uso para as oposições.

Ambas as posições, mesmo que alguns não tenham se acostumado ainda com isso, são politicamente coerentes com a evolução das últimas décadas. A esquerda agora tem seus conservadores, a direita tem seus libertários. Os mais variados discursos serão utilizados em 2014, inclusive para a parcela ainda muito minoritária da sociedade, para a qual a defesa do secularismo começa a se revelar como algo mais significativo que a discussão tradicional “esquerda-direita”. Assim seja.

Luis Nassif

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