Os demônios que nos espreitam e o inferno em compasso de espera

Um país gravemente enfermo que estranhamente não está sendo diagnosticado pelos nossos jornais e revistas. Uma doentia placidez tomou conta do nosso jornalismo.

outono

Meu coração tropical está coberto de neve, mas ferve em seu cofre gelado.

O inferno em compasso de espera

por Sérgio Saraiva

Há uma semana, uma revelação surge com potencial de abalar a República: uma conversa do Ministro do Planejamento revela uma conspiração que envolveria a oposição e o partido do vice-presidente da República, mais chefes militares e integrantes da Suprema Corte para derrubar a presidente democraticamente eleita. Um acordão que, a custa da ruptura democrática, traria o fim da operação que investiga a corrupção endêmica no nosso sistema político. Sem o resgate da impunidade pago com a deposição da presidente, o senador presidente do principal partido da oposição e líder de primeira hora dos movimentos de insubmissão aos resultados das urnas seria o primeiro a “ser comido”, dado o seu “esquema” ser do conhecimento de todos.

Não produziu brisa capaz de mover as folhas secas da grama da Praça dos Três Poderes.

Como não causa espécie um mesmo ministro do STF ter sob seu controle o julgamento das contas da campanha da presidente da República e de seu partido, a decisão sobre quem a presidente não pode nomear para o ministério, o julgamento do pedido de cassação da chapa vencedora das eleições e ao mesmo tempo as denúncias envolvendo o candidato da chapa perdedora. Denúncias essas prontamente devolvidas à origem, apesar de ser tratar do senador que primeiramente seria comido pela Operação Lava Jato. Ministro que a um só momento é presidente do TSE e da Turma que julgará as ações oriundas da Operação Lava Jato e umbilicalmente envolvido com o partido de oposição presidido pelo senador que seria o primeiro a ser comido.

Estranhamento os jornais não ligaram o nome à pessoa, nem um fato a outro.

Em plena ponte de feriado, com uma Brasília ainda mais deserta, em uma noite de sábado, o ministro do STF se reúne furtivamente com o vice-presidente a quem julga a cassação. O vice-presidente é do partido que liderou a conspirata denunciada pelo ministro, que, aliás, é também do mesmo partido. Escandaloso. O que faziam esse dois senhores à noite que não poderiam fazê-lo á luz do dia? O que faziam, em um fim de semana que não poderiam fazer em dia de expediente normal?

Discutiam o orçamento do TSE. É difícil saber o que espanta mais. Se o furtivo encontro – como se amantes fossem, se o insólito da justificativa para o encontro ou se o desinteresse da mídia em tal caso.

Segue o feriado sem maiores cuidados. Sem que mais uma vez a imprensa se dê ao trabalho de ligar três fatos envolvendo as mesmas pessoas.

Uma estranhíssima tranquilidade reina entre nós.

Os “movimentos sociais de internet”, que teriam levado com um discurso apartidário centenas de milhares de pessoas às ruas pedindo a saída da presidente e a volta da moralidade pública, foram financiados pelos mesmos partidos que assumiram o governo com o golpe parlamentar.

A imprensa o noticia tal qual noticiaria uma peruada estudantil. Ah, essa juventude.

O governo interino, em plena interinidade, anuncia o desmonte da estrutura social do país. Mas não para já. Para o ano que vem, quando não haverá eleições. Tem como justificativa a necessidade de austeridade. Ao mesmo tempo propõe ao Congresso e obtém deste um rebaixamento da meta fiscal aumentando em quase 80% a previsão do déficit público. A incoerência das duas medidas é saudada pela imprensa como prova de transparência.

Pesquisas demonstram que em um ano quase um milhão de pessoas sofreram os efeitos perversos de uma mobilidade social regressiva. Rebaixaram sua classe social.

A imprensa noticia com a ênfase de mais uma seca na Somália.

Nada indigna mais as primeiras páginas dos jornais ou as capas das revistas semanais até há pouco tão escandalizadas. Anestesiariam-se. Sequer há mais uma tripla epidemia assolando país.

Todos aguardando agosto chegar, trazendo do fim do inverno, as Olimpíadas e o julgamento definitivo do impeachment.

A ano começará em setembro.

Até lá, o presidente interino é ovacionado por onde passa, apesar do preço elevado dos ovos. O tal senador a ser comido em primeiro lugar deixará de frequentar as praias do Leblon – o que corresponde a ser desterrado, e nosso principal intelectual cancela a participação em palestras internacionais para evitar ser alvo de protestos.

A presidente afastada é recebida calorosamente por onde passa e sua popularidade cresce – apontam as pesquisas. Assim como as medidas econômicas tomadas por seu governo começam a dar resultados mesmo estando ela afasta do governo.

Alguns senadores começam a se questionar sobre onde amarraram seus burros.

E quem sabe?

Bendita lâmina grave que fere a parede e traz as febres loucas e breves que mancham o silêncio e o cais.

O ano pode até recomeçar em setembro.

Isso se o tal ministro do STF, que também é o senhor do tempo e guardião das portas do inferno, não proibir monocraticamente a primavera de assumir seu posto.

Os demônios que nos espreitam

Creio que, como pai, como marido e como homem, tenho a obrigação de me posicionar sobre a bestialidade sofrida pela menina estuprada no Rio por trinta animais, por quanto isso me seja dolorido e impactante.

Há tempos estamos doentes. O estupro frequenta, como se fosse normal, piadas grosseiras e grosserias simplesmente de supostos humoristas e supostos deputados. Nada lhes acontecendo em seus estupros metafóricos, autorizam os estupradores reais a agirem.

Doentes igualmente estão todos os pais, homens e mulheres, que em busca de uma estúpida proteção psicológica, julgam suas filhas a salvo por estas não usarem drogas, não frequentar bailes funks ou não namorar traficantes. Buscam diferenças entre as vítimas consumadas e as vítimas potenciais, como se tais diferenças reduzissem a potencialidade do risco a que todas estão expostas.

Não existe comportamento que exponha uma mulher a maior ou menor risco de estupro. Fora assim, mulheres não seriam estupradas em casa, por pessoas próximas, em escolas e locais de trabalho por professores, colegas e chefes. Em igrejas, por padres e pastores.

Os estupradores estão em condomínios, igrejas, escolas e empresas. Nas ruas e em qualquer lugar onde masculinidades mal resolvidas estiverem presentes. São oportunistas e ardilosos, se vítimazam, responsabilizando suas vítimas por insinuações inexistentes ou por seduções irrefreáveis e perversos na sua ânsia do exercício do poder depravado. Tudo que esperam é uma justificação.

Justificação que lhes damos ao relativizarmos seus atos culpabilizando suas vítimas.

Não defendemos nossas mulheres ao buscar que elas sejam “belas, recatadas e do lar”. As protegemos ao fazer saber ao estuprador potencial que, desde sempre, nos ensejam horror e asco, mas não temor – que não terão indulgência, sossego ou perdão.

Por você, eu, teu corsário preso, vou partir a geleira azul da solidão e buscar a mão do mar, me arrastar até o mar, procurar o mar. E as rosas partindo o ar.

PS1.: versos de ”Corsário” de João Bosco e Aldir Blanc, que, por algum motivo, musas me chegaram aos ouvidos como carinho e salvo-conduto para esses dias infernais.

PS2: quando a tempestade da insanidade ameaça inundar o outono, minha razão se abriga na Oficina de Concertos Gerais e Poesia

Redação

6 Comentários

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  1. república?
    “Há uma semana, uma revelação surge com potencial de abalar a República”
    Se a república (pouca) foi abolida, como abalá-la?

  2. Suspeitas….

    Dado o dia e horário, é possível suspeitar que os dois tenham se encontrado para atos que fariam o pastorzinho feliciano e deputadinho pai bolsonaro ficarem de cabelo em pé…. 

  3. demonios que nos

    demonios que nos espreitam,

    bendita lamina…

    febres loucas e breves que mancham o silencio e o cais…

    as sonoras  e belas palavras que nos fazem resistir

    ao inaudito inferno…

  4. Cada um lutando com suas

    Cada um lutando com suas armas : as suas palavras de indignação e a companhia de poetas,  como conforto.

    As armas de todos : na rua dia 10 de junho com a indignação a sair pela garganta.

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