Chiyoko, atriz do milênio (“Sennen joyu”, 2001 – Direção de Satoshi Kon)

Filmes que exploram a (in)distinção entre a ficção e a realidade são relativamente comuns – pode-se mesmo dizer que esse é um tema recorrente entre os cineastas. A rosa púrpura do Cairo, O vingador do futuro, Matrix, Solaris e Mais estranho que a ficção – sem contar os diversos filmes de David Lynch – são obras em que o limite do real é levado a extremos, a ponto de – em alguns momentos – o espectador não saber onde termina o mundo real e onde começa o mundo da ficção, dentro do universo do filme.

No Japão, essa ideia foi explorada por dois cineastas diferentes em dois filmes que foram lançados no mesmo ano, em 2001. Mas enquanto que A viagem de Chihiro se tornou o estrondoso sucesso que colocou Hayao Miyazaki em evidência no mundo inteiro, Chiyoko, atriz do milênio (Sennen joyuu), do diretor e animador Satoshi Kon, ficou praticamente desconhecido fora do Japão, exceto pelos apreciadores de animação japonesa. A divulgação do filme foi praticamente zero no ocidente, e a despeito de críticas entusiásticas, foi exibido por duas semanas em exatamente seis (!) cinemas dos Estados Unidos, por conta da inapetência da DreamWorks em promovê-lo. O que foi uma pena, pois a história certamente tem um caráter universal: o que faríamos e até onde iríamos, no tempo e no espaço, para reencontrar nossa alma gêmea?

O filme começa com uma cena insólita para um filme com essa premissa: estamos no espaço sideral, e numa tomada inspirada certamente por 2001: Uma odisseia no espaço, vemos as portas de uma base lunar se abrindo para lançar uma nave espacial. Um homem e uma mulher discutem: o homem alega que se trata de uma viagem sem volta, e a mulher se justifica, dizendo que “havia prometido ir procurá-lo”. E agradece, e se despede dele. O que parece ser um filme de ficção científica logo se revela um filme dentro do filme, pois logo após os créditos é revelado que um homem – o diretor de documentários Genya Tachibana – está revendo um filme de Chiyoko Fujiwara, a atriz do título, pois pretende fazer um documentário sobre ela. Isto porque as instalações do estúdio onde ela trabalhou por 30 anos estão sendo demolidas; coincidentemente, faz também 30 anos que Chiyoko retirou-se misteriosamente de cena, no auge do estrelato. E também após 30 anos de reclusão voluntária, ela enfim concorda em receber o diretor para dar um depoimento sobre sua vida.

Tachibana (dir.) é acompanhado pelo seu cinegrafista Kyoji Ida (esq.), que não se mostra nem um pouco entusiasmado em fazer as tomadas do documentário. Ao referir-se com um certo desprezo (ou um desprezo certo) a Chiyoko (“aquela velha maluca, vivendo como uma eremita”) é inclusive agredido por Tachibana, que nutre um respeito absoluto pela atriz. Nada a temer: essa agressão se dá muito mais no sentido humorístico, e ao longo do filme a dupla provê vários momentos de alívio cômico à trama (mais sobre isso logo abaixo).

Após serem recebidos pela governanta, Chiyoko aparece e é respeitosamente saudada por Tachibana. Ela dispensa maiores cerimônias e pergunta o que ele havia trazido lhe trazido de presente. Neste momento, Tachibana dá uma chave a Chiyoko, que então começa a recontar sua vida e os motivos que a levaram a seguir a carreira de atriz.

 

Neste momento, a magia realmente começa: tal como na cena antes dos créditos – quando um terremoto irrompe no exato momento em que o foguete decola – o diretor e o cinegrafista aparecem numa cena da vida de Chiyoko quando ela adolescente, como se estivessem lá, observando a cena sem serem notados. Vemos que estamos no Japão, no final da década de 1930, quando a mãe de Chiyoko recebe uma proposta de trabalho de um produtor de cinema que deseja fazer um filme na Manchúria ocupada. A mãe se recusa, dizendo que a profissão de atriz “não é uma profissão honrada” e que “seu destino é continuar a gerir a confeitaria que herdaram de seu pai”. Chiyoko sai de casa, e para dissipar sua raiva e sua frustração com a mãe, começa a atirar bolas de neve contra uma parede.

Nisso, um estranho ferido vai a seu encontro e lhe pede ajuda, pois está fugindo da polícia secreta. Ela despista os guardas e depois se encontra novamente com o homem misterioso, que então lhe entrega a chave – “a chave para a coisa mais importante do mundo”. Ele carrega também um quadro, que se recusa a mostrar para Chiyoko pois, segundo ele, “ainda não está pronto”. No dia seguinte, ao voltar para sua casa, Chiyoko vê uma grande aglomeração próxima à sua casa. Ela então descobre que o homem misterioso tinha conseguido escapar e se dirigia à Manchúria. Com isso, lembrando-se do convite do produtor, ela  finalmente consegue convencer a mãe a deixá-la partir, e inicia sua carreira cinematográfica.

A partir daí, o filme vai e volta no tempo – sempre usando do recurso de colocar Tachibana e o cinegrafista não só como espectadores da ação, mas também tomando parte dela. São essas intervenções que provêem os momentos de humor do filme, mas que também estabelecem Tachibana como o “protetor” de Chiyoko. Enquanto isso, as diversas eras da história do Japão nos são apresentadas conforme a vida de Chiyoko vai passando.

Não saberemos até o final do filme se o que vemos é a representação dos vários papeis nos filmes em que ela atuou, se se são suas memórias rpresentadas de uma maneira extremamente vívida ou se ainda ela expressa seus próprios sentimentos e sua esperança de reencontrar seu grande amor da juventude. Com isso, Satoshi Kon não faz um filme dentro do filme mas vários, colocando-os às vezes numa sequência vertiginosa, ao mesmo tempo que os entrelaça com a vida de Chiyoko de maneira magistral.

Outra coisa que chama a atenção é a música, composta por Susumu Hirasawa. A trilha sonora do filme é toda de música eletrônica, com temas que poderiam inclusive ser tocados em qualquer rave ou pista de dança. Isso provê um contraste interessantíssimo com o que se mostra na tela e ajuda a dar um grande dinamismo ao filme, pois sugere que a História (enquanto relato de eventos do passado) é uma coisa dinâmica que é modificada a todo momento pela ação dos indivíduos que são parte dela – ou seja, no limite, todos nós. A letra do tema final, cantada pelo compositor, é uma celebração da vida que casa muitíssimo bem com o encerramento da história – além de ser irresistível para dançar.

Em resumo, o filme é interessantíssimo em vários níveis. Primeiro, porque conta uma história que seria dificílima de ser produzida com meios tradicionais; hoje em dia, talvez fosse possível criar os cenários – tão diversos que vão desde o século XV até bem além do século XXI – com recursos digitais. Porém, isso deixaria os atores na frente de telas verdes ou azuis, o que decerto reduziria sua naturalidade. Já com o recurso da animação, o diretor e os animadores têm total controle do que querem mostrar e podem deixar a imaginação correr solta, ao mesmo tempo que deixam seus personagens completamente à vontade num contexto de tantas mudanças.

Além disso, mesmo que conte com referenciais japoneses, ele conta uma história universal – a do amor que insiste em ser mais forte do que as circunstâncias adversas que podem cercá-lo. E, finalmente, o filme é uma homenagem ao poder e à magia do cinema com a reapresentação de diversos temas recorrentes que os espectadores assíduos das salas certamente reconhecerão – tudo isso em estonteantes 86 minutos.

Infelizmente, não existe uma versão em DVD ou Blu-Ray do filme no Brasil. Por outro lado, ele pode ser assistido online em em http://anitube.xpg.uol.com.br/video/42986/Millennium-Actress-Filme, com legendas em português.

Da Wikipedia: Satoshi Kon (今敏), Kushiro, 12 de outubro de 196324 de agosto de 2010). Foi diretor e roteirista dos filmes de animação Perfect Blue (1997), Millenium Actress (2001), Tokyo Godfathers (2003), e Paprika (2006). A maioria de suas obras era animada pelo estúdio Madhouse, no qual ele fazia oficialmente parte da equipe como diretor, junto de Rintaro e Yoshiaki Kawajiri. Mas diferente dos outros diretores, ele apenas dirigia filmes dos quais ele mesmo criou. Seus filmes se destacam pela complexidade psicológica, personagens e planos de fundo realísticos, e a distorção do sonho e da realidade.

Deixou uma belíssima carta de despedida pouco antes de sua morte, vítima de um câncer pancreático.

Redação

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