A lamentável obra de Mariana Callejas

Sugestão de rmoraes, em seu blog

Mariana Callejas: livro oferece sua própria versão das circunstâncias que a levaram ao Patria y Libertad, grupo paramilitaer de ideologia fascista, e a ser recrutada pela polícia secreta de Pinochet

do Opera Mundi

Patricio Pron 
 
Autora chilena, que colaborou com a polícia secreta de Pinochet, queixa-se do fim de sua carreira como escritora

1

Sebastián Urrutia Lacroix (o desgraçado Sebastián Urrutia Lacroix, que prevê uma tempestade de merda) nunca existiu, mas sua história é verdadeira. Roberto Bolaño a narra em “Noturno do Chile”, um romance em que tudo é o que parece, mas também o seu contrário. Ali também está a história de María Canales (Mariana Callejas), escritora que organizava oficinas literárias em sua casa enquanto seu marido, um norte-americano de nome James Thompson (Michael Townley), torturava e assassinava prisioneiros políticos nos andares inferiores da residência. A história (digamos uma vez mais) é verdadeira, e havia sido contada anteriormente por Pedro Lemebel em sua crônica “As orquídeas negras de Mariana Callejas”. Talvez Bolaño a conhecesse dali (em seu artigo “O corredor sem saída aparente”, admitiu ter lido o livro de Lemebel em que a crônica foi publicada, comentando-a), mas ela também aparece em um outro texto, hoje praticamente impossível de ser encontrado. Em “Semeia ventos”, suas “memórias” publicadas em 1995 (isto é, três anos antes da crônica de Lemebel e cinco anos antes do romance de Bolaño), Callejas oferece sua própria versão das circunstâncias que a levaram a ser recrutada pela DINA, a polícia secreta da ditadura de Pinochet, e a acabar se envolvendo no assassinato do político chileno Orlando Letelier. Seu relato (inevitavelmente de defesa) é parcial: quando diz que se uniu ao Patria y Libertad, um grupo paramilitar de ideologia fascista que cometeu assassinatos e sabotagens durante o governo de Salvador Allende, e, mais tarde, à DINA, por seu interesse pelas “grandes causas” [sic], Callejas não menciona que sua própria “grande causa” não foi “a pátria”, mas sim a literatura. Quer dizer, o desejo de conquistar a influência necessária para ser reconhecida como uma escritora importante.

2

“Semeia ventos” foi publicado por uma certa Ediciones ChileAmérica cesoc, que à primeira vista parece ser fruto da fantasia de um autor publicado autonomamente, a não ser pelo fato de que uma simples busca na Internet nos leva até uma página da web (www.cesoc.cl/nuestra-historia) que nos informa da existência da editora e de sua fundação por “um grupo de chilenos exilados”, com a finalidade de oferecer resistência cultural ao regime de Augusto Pinochet. O fato de que as memórias de uma colaboradora da ditadura tenham sido publicadas por uma editora concebida com a finalidade de denunciar e superar o regime parece uma das tantas contradições da história chilena recente; o fato de que o selo em questão tenha sido criado por Bernardo Leighton e outros colaboradores, cujo assassinato contou com a contribuição direta ou indireta de Callejas, parece uma piada cruel – mas não é. Talvez Bolaño estivesse a par do humor oculto nesta tragédia: em seu romance, as motivações das personagens se encontram na pequena distância que separa o patriotismo e o pedantismo da pobreza intelectual. Antes de publicar suas memórias, Callejas havia ganhado, em 1975, o concurso literário do jornal “El Mercurio”, com um conto que Urrutia Lacroix qualifica como “indigno de receber um prêmio até mesmo na Bolívia” (o que, certamente, é falar demais). Aquele relato e outros foram publicados em 1981 em um livro intitulado “Longa noite”, cujo caráter autobiográfico só se tornou evidente quando se soube o que acontecia nos andares inferiores da residência nas noites em que Enrique Lafourcade, Mariana Callejas e os jovens Gonzalo Contreras e Carlos Franz celebravam suas tertúlias. Em um dos contos de “Longa noite”, a narradora perdoa um assassino ao descobrir que este é um leitor de Walt Whitman; em outro, descreve-se a tortura de um detido; em outro (finalmente), uma personagem coloca uma bomba sob um automóvel.

Reprodução

Os livros de Roberto Bolaño e Mariana Callejas: para ela o autor chileno “escreve bem, escrevia bem, mas isso não tem nada a ver comigo”

3

Callejas publicou um romance em 1983, mas (afirma) “estranhamente, com a chegada da democracia, minha promissora carreira literária chegou a seu fim”. Contudo, não há muitos motivos para se acreditar que ela poderia, de fato, ter sido uma escritora: suas “memórias” se caracterizam pela total incapacidade da autora em compreender o uso normativo dos sinais de pontuação, geralmente colocados nos lugares errados. Seu estilo é uma catástrofe: os olhos refletem “a esperança”, o general sorri “docemente”, alguém possui um “rosto inocente e bonito [que] ficaria muito bem na capa de uma revista de moda”, as crianças são “belas”, uma toalha é “linda”, uma pessoa é caracterizada por seus “charutos e suas camisas de seda Pierre Cardin”, Michael Townley é “terrivelmente bonito, doce e romântico”, “todos os acontecimentos” da vida atravessam a mente em uma “longa noite”. “Em que momento subimos nessa montanha russa da qual não se pode escapar até o golpe final?”, pergunta-se Callejas. Na “hora da desgraça” de seu marido, decide ficar ao seu lado, “contra o vento e a maré”, pedindo: “Vem comigo para o último lugar onde te procurariam, sua própria casa”.

4

Depois da publicação de “Noturno do Chile”, Mariana Callejas deu algumas entrevistas nas quais afirmou não se arrepender de nada. O escritor chileno Carlos Iturra dedicou a ela o conto “Caída em desgraça”, e Nona Fernández estreiou em 2012 uma obra teatral sobre suas noitadas literárias, intitulada “A oficina”. Callejas leu o romance de Bolaño na cadeia e se perguntou por que o autor “me considerava tão má. Eu não me tornei por fim uma pessoa triste, e nem penso em me tornar. De modo que ele não tinha o direito de me apresentar como uma velha pobre, triste e solitária”, disse, complementando: “Bolaño escreve bem, escrevia bem, mas isso não tem nada a ver comigo”.

5

Mariana Callejas não se arrepende dos assassinatos e das torturas com os quais colaborou, mas sim do fato de que o reconhecimento público deles tenha interrompido sua carreira como escritora, na qual continua acreditando. “É que é tão triste escrever, acreditar ter escrito bem e tentar publicar, sem que ninguém te publique. E por motivos alheios à literatura”, lamenta. O desgraçado Sebastián Urrutia Lacroix (que conhece Pablo Neruda, que conhece o medo e o ódio encarnados em dois sujeitos que o contratam para que percorra a Europa, que conhece Augusto Pinochet e lhe dá aulas de marxismo, que se transforma em um crítico literário, que é padre e escreve poemas não publicados) acaba compreendendo, em “Noturno do Chile” que os grandes crimes são cometidos por pessoas insignificantes e que, frequentemente, têm como propósito a reivindicação de um talento inexistente. Diferentemente de Ernst Jünger, de Louis-Ferdinand Céline, de Jorge Luis Borges (cujas convicções políticas são alheias à produção literária, ou não as desvirtuam), Mariana Callejas interveio na política a fim de ser uma escritora: ficou na política e no crime e, no entanto, esta tragédia pessoal lhe custou a vida de centenas de pessoas. “Assim se faz a literatura”, diz Bolaño. “Não apenas no Chile, mas também na Argentina e no México, na Guatemala e no Uruguai, na Espanha e na França e na Alemanha e na verde Inglaterra e na alegre Itália. Assim se faz a literatura. Ou o que nós, para não caírmos em um aterro sanitário, chamamos de literatura”. Em sua afirmação há uma constatação, e também algo que parece uma advertência.

Redação

2 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Pós-graduação.

    Me parace que ela ministrou aula para alguns colunistas políticos da nossa impoluta mídia.

    Foram aprovados com menção honrosa.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador