O jornalismo que não vê e se omite, por Luiz Cláudio Cunha

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Do Observatório da Imprensa

O jornalismo que não vê e se omite, por Luiz Cláudio Cunha

O Brasil ficou chocado com os 84 segundos de imagens em preto e branco que assistiu nos principais telejornais do país na sexta-feira, 28 de agosto. Mostravam as cenas violentas de um assalto à luz do dia numa avenida movimentada de São Bernardo do Campo, SP, quando o ladrão esmurra o vidro de um carro, arranca a motorista que o dirigia, joga a mulher no chão e arranca com o veículo.

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O ataque: aos 15 seg, o homem começa a esmurrar a porta da motorista.

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O recuo: aos 21 segundos, o carro branco atrás dá marcha a ré para se afastar do ataque.

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A fuga: aos 25 segundos, o carro de trás manobra pela direita e foge dali contornando a van.

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A omissão: aos 59 segundos surge alguém para ajudar, enquanto os carros passam sem parar.
(Reprodução de fotos ABCD Maior)

Foram cenas captadas às 8h da manhã do sábado anterior, 22, pelo sistema de segurança da prefeitura, num trecho da avenida José Fornari, no bairro Ferrazópolis, e divulgadas pelo jornalABCD Maior. Repetida exaustivamente, a sequência impressiona pela brutalidade, que todo mundo vê. Os telejornais viram e reprisaram. Mas, o jornalismo fracassou em sua missão básica ao não ver, ali, o que devia ter visto, registrado e denunciado.

Vamos rever a cena captada com neutralidade pela câmera da avenida e ecoada com insensibilidade pela imprensa brasileira – acessível no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=sQLZ6xyykNw.

Um homem de menos de 30 anos aproveita o trânsito parado, circunda por trás de um Honda Fit, como se fosse cruzar a avenida, e aos 10 segundos da gravação se volta de repente em direção à porta da motorista. Com inesperada violência, começa a esmurrar o vidro. O carro tenta arrancar. O primeiro murro acontece aos 15 seg. Aos 16 seg, um segundo murro. Aos 17, o terceiro. Ele força a abertura da porta aos 18, que se abre no segundo seguinte.

Com violência, puxa para fora a motorista, uma senhora de 64 anos, e a joga sobre o canteiro central da avenida, aos 25 segundos. Ele toma o lugar da motorista e arranca com o carro. Outra mulher, que estava no banco de passageiro, consegue sair pela porta direita, pega uma bolsa caída na avenida e vai ao encontro da amiga, caída sobre o canteiro central. Aos 59 seg, enfim, um homem cruza a avenida ao encontro das duas mulheres, para prestar algum socorro.

Na câmera e na consciência

A motorista de 64 anos, a psicopedagoga Rosa Maria Costa, deslocou o tornozelo e sofreu quatro fraturas na perna direita. O ladrão acabou capotando o carro na Via Anchieta e, no acidente, ainda atropelou um homem de 65 anos. Um carro parou para socorrer, o motorista desceu e o ladrão roubou o outro carro, desaparecendo. Um fato nada estranho na Grande São Paulo, onde acontece um roubo ou furto de carro a cada quatro minutos. Entre janeiro e julho, na maior região metropolitana do país, 74.129 veículos foram surrupiados por bandidos.

O que mais espantou na cena de violência em São Bernardo, que todo mundo viu, foi a cena que a imprensa não viu, não comentou ou desprezou. Ninguém da TV, rádio ou jornal, nenhum colunista, nenhum blogueiro, nenhum militante das ubíquas redes sociais destacou o vergonhoso espetáculo coletivo de acovardamento, omissão, negligência e falta de solidariedade que marcou o entorno da agressão na avenida.

Está tudo lá, gravado para sempre na câmera da TV e na consciência envergonhada de quem tudo viu e nada fez. Ou fez errado. Como o motorista do carro branco, provavelmente um Corolla, parado imediatamente atrás do carro atacado pelo assaltante.

Quando o agressor desferiu seu terceiro murro na porta, aos 17 seg, o motorista do Corolla começa a dar ré no carro. Se tivesse feito o contrário, acelerando em direção ao atacante, que não estava armada, ele teria frustrado a agressão e afugentado o agressor. Em vez disso, o carro branco recua uns dois ou três metros, lentamente. No momento em que Rosa Maria é jogada na avenida, o Corolla vira à sua direita e desaparece de cena atrás de uma van parada ao lado, com um motorista, também inerte, à direção. O carro roubado, o Corolla e a van arrancam quase ao mesmo tempo, enquanto a vítima rolava na avenida.

No canto inferior direito da tela, três homens passam pela calçada, indiferentes ao drama das duas mulheres no canteiro central. Só aos 59 seg aparece um homem de jaqueta preta, que atravessa a avenida para socorrer as duas mulheres. Durante os 84 segundos que dura a cena gravada, o que se vê e ninguém comenta é um desfile pusilânime de indiferença, de gente que não se importa, que não vê, não olha, não para e não comete nenhum gesto de solidariedade. Além da van e do Corolla que fugiram da cena do crime, outros quatro carros, dois ônibus e um caminhão passaram pelo local, no sentido do carro assaltado. Do outro lado da avenida, no sentido inverso, passaram 21 carros neste curto espaço de tempo — e ninguém parou, nem por curiosidade.

Nesta sociedade cada vez mais integrada por redes sociais, cada mais conectada por ferramentas como Facebook, Twitter e WhatsApp, cada vez mais interligada por geringonças eletrônicas que deixam todo mundo plugado em todos a todo momento, a cena brutal de São Bernardo escancara o chocante estágio de uma civilização cada vez mais desintegrada, mais desconectada, mais desintegrada. É uma humanidade apenas virtual, falsa, narcisista, cibernética, egoísta, que se decompõe em pixels e se desfaz na tela fria da vida cada vez mais distante e desimportante.

Ninho da omissão

A polícia, sempre fria e técnica, recomenda não reagir em casos de assalto, para evitar danos maiores. No episódio deprimente de Rosa Maria, tratava-se não de reagir, mas de defender uma vida, de proteger um ser humano, de cessar uma agressão, de impedir um abuso, obrigação que cabe a todos e a cada um de nós. A reação de um, um apenas, motivaria o auxílio de outro, e mais outro, numa sucessão de atos reflexivos de autodefesa em grupo que explicam a evolução do homem da caverna para o abrigo solidário da civilização.

Ninguém fez isso — na hora certa, com a firmeza necessária, com a generosidade devida, com a presteza impreterível. Esse espetáculo coletivo de insensibilidade e de crua indiferença atropelou toda a imprensa, em suas várias plataformas. Naufragaram até mesmo os programas e apresentadores que vivem da violência explícita e cotidiana de nossas cidades, grandes ou pequenas, com seu festival interminável de ‘mundo cão’.

Os programas das grandes redes de TV, que cruzam as manhãs e tardes do País com a tediosa banalidade de sangue, morte e violência do cotidiano, se refestelaram com a caso de São Bernardo, reprisando várias vezes a cena da avenida. Como sempre, no estilo furioso e mesmerizado de todos, despontou a tropa de elite da truculência na TV, sob o comando de José Luiz Datena (Band), Marcelo Rezende (Record) e Ratinho (SBT). Aos gritos, aos berros, no jeito gritado de um e de todos, ecoaram como de hábito a visão policial e teratológica da realidade, deixando de lado a preocupação social de uma segurança pública falida e desarvorada pelas balas perdidas da incompetência dos governantes.

Só esqueceram do entorno, da cena explícita de covardia e indiferença das pessoas que testemunham, assistem, presenciam, mas não interferem, não intervêm, não reagem. Ninguém lembrou do exemplo de São Bernardo para denunciar esta falsa sociedade compartilhada, mais preocupada em seus interesses compartimentados, que nenhuma rede social humaniza ou aproxima, a não ser virtualmente.

Um jornalismo que não vê o que é necessário, que não percebe o contexto além do texto, descumpre a sua missão. Esconde a realidade, ao invés de revelá-la. O repórter fiel ao seu ofício deve estar atento ao murro do assaltante no vidro do carro. Mas deve prestar atenção maior ao Corolla branco e aos carros que passam por ali, indiferentes ao que se vê e ao que acontece.

O bom jornalismo sabe que é nesse ninho da omissão que cresce a violência e prospera o fascismo.

***

Luiz Cláudio Cunha, jornalistaé autor de Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios (L&PM, 2008)

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

17 Comentários

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  1. Inacreditável

    O autor está sugerindo que quem estiver por perto durante a ocorrência de um assalto tem a obrigação de vestir uma capa, uma máscara e atacar os meliantes. É claro que  como todo bom super-herói desviar de balas, armas brancas não é problema. 

  2. Discordo 100% do autor do

    Discordo 100% do autor do texto. Ressalte-se que ele presta um desserviço social, pois a orientação de todas as polícias é que não haja reação. Impressiona-me que o Nassif tenha dado destaque a um texto tão irresponsável.

    Nao havia como o dono do Corolla, ou qualquer outra pessoa, saber se o ladrão estava armado ou não. Aliás, em ações deste tipo, é comum haver o apoio de outro bandido, em uma moto, por exemplo. E armado. É fácil analisar um evento por meio de um vídeo e dizer o que poderia ser feito. Ali era realidade, inesperada, e tudo em segundos.

    Qualquer ação que fosse tomada ali poderia ter resultado não só na morte do “defensor”, mas também das senhoras que eram assaltadas. É necessário que fique claro: se vc não é treinado para tal fim, não banque o herói!!!! O resultado da ação pode ser desastroso.

    1. Abatido e discordo 50% do verme!

      Não se trata de levar ao pé da letra! Assim fica fácil e imaturo.

       Ser humano e direito do cidadão nos diferenciam. E nos animais também há esta diferenciação.

      Para onde vamos, cada um por si e a individualidade acima da razão? Cidadão é participar e ver seus direitos perante os órgãos públicos e a sociedade. Somos responsáveis pela sociedade! Por cada um em nosso meio.

      Não se trata de ser herói ou não, não por ser em outra pessoa e não por serem regras, tratados e instruções. É certamente que amanha será com você ou com seus, seu vizinho, no mesma comunidade, na mesma cidade e no país!

      Sempre se coloca que os autores destes atos sempre tem mais medo.  Não podemos inverter os papeis. E ter mais medos do que os ladroes, assassinos, meliantes e etc. passaremos a ser o que?

      Vermes!

      Descreveu uma ficção e além da imaginação!

      Triste!

  3. Uma coisa é covardia, outra é

    Uma coisa é covardia, outra é medo. Como a pessoa do Corolla poderia saber que o cara não estava armado? E se estivesse? Com a reação este poderia matar alguém.

    O que mais me chateia nesse tipo de coisa é não haver um chip eletrônico obrigatório nos veículos, tipo aqueles que passamos nos pedágios. Se existisse, bastaria que as lombadas eletrônicas espalhadas pela cidade registrassem esses chips – aí seria fácil achar o veículo e consequentemente o criminoso. Se o criminoso retirasse o chip, dispararia alarmes nas lombadas eletrônicas toda vez que ele passasse. Não daria pra ir muito longe com um veículo roubado. Isso evitaria não só o roubo de carros, mas diversos outros crimes em que se utiliza veículos roubados ou com obsoletas placas adulteradas. 

    Seria tão simples…

  4. Violência
    Um dos melhores jornalistas,Luiz Claudio Cunha,falha ao comentar entre o medo e covardia.Aí outra análise a ser feita e debatida.
    Meu respeito e admiração aos jornalistas Luiz Cláudio Cunha e Nassif

  5. Que texto

    Que texto ridículo.

    Assaltantes costumeiramente andam armados, e com algum comparsa dando cobertura.

    Exigir que qualquer cidadão reaja é de uma estupidez atroz. Ontem mesmo um coitado tentou intervir no caso da Sé e se deu mal, foi morto a queima roupa. 

    Apesar disso, houve sim outros casos em que populares reagiram e prenderam o assaltante. Ou lincharam, como no caso do cara amarrado ao poste em São Luís. O autor generaliza e tece toda uma teoria furada acerca de falta de solidariedade e blablablá com base em um único acontecimento.

     

      1. Vc que não entendeu. Ele

        Vc que não entendeu. Ele sugere que o motorista do carro de trás deveria ter avançado pra cima do ladrão para evitar o assalto.

  6. Tanto faz, cada um por si

    Cada um por si, o importante é ter. Comprado ou roubado, tanto faz… E violência, ora… a gente adora ver violência pela TV. Pode ser filme, pode ser documentário, tanto faz… contra bandido, contra quem não é bandido, tanto faz… o datena e o PIG que o digam. Violência vende jornal. Só que tem que ser pela TV. Se for contra a gente, aí não tanto faz. Cada um por si.

  7. Riscos da Concepção Weberiana Tabajara e do Operador Fuckiano!

    A segurança pública é responsabilidade de todos, contudo ela é dever do estado. Faltou estado, mas faltou também cidadania por parte dos comentaristas midiáticos, que sequer ouviram especialistas em segurança pública, ou da vida como ela é. Pelo descrito, não foi devidamente relevado que o bom senso dos figurantes alertou-os que a responsabilização pela reação que, ante a falta de investimento do estado, poderia levá-los a tragédia judicial atual que está aí, a vista de todos, pois a judicialização da sociedade expõe qualquer protagonismo a despesas com honorários advocatícios caríssimos; morosidade da justiça; facilidade com que a corrupção e a falta de investimentos no sistema de persecução criminal expõe as famílias; a irresponsabilidade com que o MP pode, levianamente, acusar alguém de uso imoderado de força; o que, na prática, tem o potencial de gerador de indenizações eternas, pois, “rosa webberianamente” falando alega-se que “a literatura assim o permite”, ou pelo operador “fuckiano antissemita” registrado na AP 470 e desenhado por Kafka no livro O Processo: não provou que é inocente, então culpado é! Tudo isso no calor de um embate de vida ou morte e que depois poderia servir de base para alguma ação indenizatória contra o herói (com o risco de ser transformado pela Justiça(?) em previdência social particular do bandido), caso ousasse praticar a legítima defesa putativa de uma vítima, vítima essa que, futuramente, temeria pelos seus em testemunhar a ponto de deixar o suposto herói e os seus, expostos ao assédio do MP, Justiça(?) e quadrilha. Trabalhei na área urbanitária ambiental com um coronel que testemunhou o Erasmo Dias estimulando, acrítica e demagogicamente, as equipes da ROTA da PM paulista a serem ousadas no enfrentamento da criminalidade e, depois, seus integrantes virem a ser expulsos, porque muitas situações dramáticas não foram, por falta de recursos, adequada e suficientemente bem avaliadas pelo MP e Justiça(?). Vejam como agem contra o PT e demais cidadãos da “Vaza” a Jato: não são nenhuma “Brastemp”. Todos sabemos, mas às vezes esquecemos como o articulista acima, que vivemos numa imensa moenda de cana aonde as instituições burguesas do estado extraem nossa existência (e daqueles que de nós dependem) como garapa, a fim de adoçar o ócio da Casa Grande

  8. o jornalismo não é uma atividade intelectual no sentido estrito

    mas pretende. é feito por quem também se pretende. não que não tenha seus valores, suas utilidades, assim como o artesanato não é arte, porque é útil, enquanto a arte é inútil, quer dizer, permite vôos, não dá receitas. Cada um, cada qual.

  9. A imprensa deveria fazer

    A imprensa deveria fazer refletir a invisível, tornar opaca, a máscara que está em primeiro plano.

    Não é o que acontece. São limitdos a focar na violência, e se esquecem de abordar como estamos sendo bovinos, quer dizer, humanos quando, como e onde querem. E desumanos assim por diante.

     

  10. Pera aí, quem é que…

    Pera aí meu, quem é mesmo que não vê e se omite?

    O jornalismo?!

    E desde quando o jornalismo daqui é o responsábel pela ascensão e prevalência plena, geral e irrestrita da criminalidade que tem as leis e a justiça a seu serviço?!

    1. Pera aí meu, quem é mesmo que

      Pera aí meu, quem é mesmo que não vê e se omite?

      O jornalismo?!

      O jornal nao viu a falta de cuidados para com o outro

  11. Cena de GTA SanAndreas
    Pareceu cena inspirada do jogo GTA SANA NDREAS, onde o personagem esmurra o motorista e rouba o carro.
    Outra coisa, o cara que atravessa a rua aos 59s é o mesmo que sai de posição de observação aos 32s na parte de baixo da tela, dá a impressão de ser o comparsa q ficou pra trás.

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