Por uma direção política unitária, nacional e visível

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
[email protected]

Frente democrático-popular contra o golpe reacionário

Por uma direção política unitária, nacional e visível

Brasília, junho de 2016.

Alciléa Ferreira Bernardes , Esther Bemerguy de Albuquerque, Martha Cassiolato, Ronaldo Coutinho Garcia e Ronaldo Küfner.

A luta contra o golpe revelou a existência de uma significativa parcela da sociedade comprometida com os interesses democrático-populares (todos os que se mobilizaram e se manifestaram defendendo a Constituição, a democracia, o desenvolvimento inclusivo, sustentável e soberano e o combate às desigualdades). Não dá para saber se somos maioria, minoria ou nos encontramos em equilíbrio com as forças contrárias. Tampouco sabemos qual o tamanho do contingente de despolitizados ou indiferentes. E nem dos amedrontados pela intolerância e o ódio de classe às realizações do governo petista que, destilados pela direita fascista e devidamente propagados pela mídia golpista, se abateram sobre a sociedade.

Fato marcante é que foi surpreendente, já nos minutos finais do jogo, a rápida e intensa capacidade de resposta das forças democrático-populares. Surpreendente por se mostrar ativa e aguerrida após quase 25 anos de intensa despolitização da vida social, de sutil ou ostensiva repressão aos movimentos sindical e social durante o tucanato e pela involuntária ou voluntária desmobilização durante os governos petistas.1

Mas jamais tivemos a iniciativa. Nós, os partidos de esquerda, os setores populares organizados e o governo federal (curiosamente, os governos estaduais liderados pela esquerda, à exceção do Maranhão de Flávio Dino do PC do B, deram a entender que a coisa não era com eles e que não lhes engolfariam em uma onda retrógada) sempre reagimos, às vezes tópica e atabalhoadamente. Faltou-nos visão de conjunto, concepção estratégica, coordenação e atualização tática sistemática.2

Os golpistas haviam começado a gestar os seus planos em 20033. A articulação entre partidos de direita (PSDB, PPS, DEM e outros) empresários nacionais, mídia, com personalidades e segmentos importantes do Judiciário, com representantes do império (órgão de seus governos e serviços de inteligência, embaixadas, empresas, partidos e suas fundações, think tanks, etc.), acontecia de forma desembaraçada e, quase sempre, às claras. Em 2004, o juiz Sérgio Moro trouxe a público o artigo no qual ele apresenta a estratégia de destruição dos políticos, dos partidos e do projeto democrático-popular pela via judiciária-policial-midiática. Antecipa até mesmo movimentos táticos que colocaria em prática 11ou12 anos depois. O Governo (será sempre sinônimo de Governo Federal) e os partidos de esquerda (o alvo principal das operações Mãos Limpas4, italiana, e Lava Jato, brasileira) ignoraram por completo o conteúdo do artigo e as ações posteriores. Entre as últimas merecem destaque a Operação CC5, que acabou por livrar tucanos e empresas da grande mídia de pesadas sansões penais e financeiras, a tentativa de impeachment de Lula em 2005, o Manual de Força-Tarefa do MPU, de 2011 (evidencia a antiga articulação de Sérgio Moro com os integrantes da Força-Tarefa Lava Jato), a competente apropriação das “jornadas de junho de 2013” pelos grupos jovens de direita organizados e financiados do exterior. Registre-se aqui a inação e o diversionismo do governo federal no correr e após as “jornadas”.

O acontecido durante a condução da Ação Penal 470 deixou claro a disposição judicial-política-midiática de reinterpretar a Constituição Federal e a legislação brasileira para ajustá-las aos propósitos golpistas.

A nada do pouco acima lembrado foi anteposta uma reação contundente por parte do Governo, dos partidos de esquerda ou pelos setores populares organizados. Os golpistas avançaram aperfeiçoando a articulação (vide Eduardo Cunha/Temer/Janot/Sérgio Moro/ DPF/Gilmar Mendes e cia /as principais lideranças tucanas/mídia/as Federações de Indústria, a SRB e a CNA, a OAB, etc.) e aplicando golpes cada vez mais potentes e audaciosos. Chamou atenção a desfaçatez com que o Império atuou em tal articulação e na preparação do golpe: as gravações de Dilma, na Petrobras e em grandes empresas nacionais pela NSA; a escandalosa cooperação do MPU com o Departamento de Justiça (FBI) dos EUA; o deslocamento para o Brasil de diplomatas e “adidos” que assessoram golpes “constitucionais” e promoveram a desestabilização/inviabilização de governos progressistas na América Latina. Não é coincidência. É estratégia. E direção tático-operacional competente.

Nossa reação continuou atomizada, tímida, de baixa intensidade.

A aproximação do desfecho fatídico pôs as nossas forças em movimento, em alguns casos até com certa rapidez e considerável volume. A militância, ignorada e mantida à distância por mais de uma década, apesar de tudo saiu às ruas com o entusiasmo e a gana que lhes são próprios. Tivemos realizações que estiveram muito além do possibilitado pelos recursos detidos, por conta da generosidade que caracteriza nossa aguerrida militância. Tivemos momentos grandiosos. Tivemos a alegria de voltar a nos encontrarmos. Tivemos que reaprender que a história não é caminho linear e progressivo. Tivemos a oportunidade de mostrar aos nossos filhos e netos que a luta é sempre necessária. Mas também tivemos a certeza de que ainda podemos fazer diferença.

Sem minimizar o extraordinário trabalho e o hercúleo esforço das Frentes (Brasil Popular e Povo sem Medo), das entidades sindicais e dos movimentos sociais e outras organizações lutadoras, é possível constatar, todavia, a ausência de condução estratégica, de um centro de inteligência e de um núcleo coordenador eficaz. Sun Tsu ensina que quem não se conhece e não conhece os seus inimigos irá conhecer muitas derrotas.

O golpe atual está sendo exitoso por não ter as deficiências das quais padecemos. Foi viabilizado mediante a conquista prévia das instituições construídas pela própria democracia brasileira: o Congresso Nacional, a imprensa livre (um oligopólio livre de qualquer controle democrático e dominado por meia dúzia de famílias), o Ministério Público, o sistema judiciário, a Polícia Federal (“republicana”).

Em momentos críticos da história quando o atraso e a reação organizadamente se projetam, o crucial, o decisivo é a organização e a disposição de luta das forças que lhes são contrárias.

A organização das forças democrático-populares exigida pela situação atual supõe a intransigente distância de todos e tudo que possuam qualquer vínculo com o golpismo, a não ser que queiramos ignorar as recentes lições oferecidas pelos próprios golpistas. Não é mais possível se pensar em alianças político-eleitorais com a centro-direita e a direita. A governabilidade que nos interessa é a formada pelas forças populares organizadas pressionando insuportavelmente os parlamentares, é aquela que resulte do enfrentamento sistemático dos interesses que se nos opõem. Não há conciliação possível nem são viáveis pactos interclassistas.

A organização que precisamos haverá de se dar com a criação de um espaço verdadeiramente democrático, no qual não haverá lugar para hegemonismos, para principismos, nem para o personalismo, a egolatria e as expressões carismáticas. Um espaço presidido pelo desejo coletivo de construir uma plataforma de atuação comum. Supõe uma avaliação criteriosa dos erros, falhas e omissões cometidos e dos acertos e avanços conseguidos. Tal avaliação é suposto imperioso para a ação futura exitosa e não meio de produção de acusações ou instrumento de luta fraticida. É um recurso lógico-político para se chegar a um mínimo denominador comum (MDC) que nos unifique e oriente. O MDC é uma base de início, a ser progressivamente alargada pelo aprofundamento de nossa compreensão da realidade e de nós mesmos, pela nossa prática e nossas vitórias.

A contrapartida do MDC é termos as nossas diferenças e dissensos organizados para que possam ser permanentemente reavaliados, sendo superados na própria caminhada.

A história das conquistas democrático-populares confere destaque à organização e à unidade na luta. A guiá-las sempre esteve a direção reconhecida, competente e determinada, a estratégia engenhosa, a informação inteligente e a incessante análise concreta de situações concretas. É o que temos de construir para derrotar o golpe, impedir o rápido retrocesso sócio-político-econômico e fazer o Brasil com que sonhamos.

O momento presente coloca um desafio de grande porte, pois grande e poderosa é a coligação reacionária e autoritária que tomou o governo (os três poderes) da República. Poderosa e reacionária que “pretende fazer girar para trás a roda da história”. Querem nos levar para um estágio pré-Constituição/88, aniquilando todas as conquista igualitárias e civilizatórias construídas desde então. Em se tratando de direitos do trabalhador se propõem a regredir à pré-CLT. Sem qualquer disfarce se preparam para entregar o país ao grande capital, às corporações financeirizadas e globalizadoras e anular o protagonismo internacional competente e meticulosamente por nós engendrado. Têm um lema por detrás do anacrônico (mas revelador) Ordem e Progresso: contra o povo e a Nação.

Não vieram para entregar o poder para um eventual vencedor das eleições de 2018. O projeto é para o tempo longo, pois o Brasil, o seu povo e suas riquezas são grandes, as possibilidades de ganhos elevados têm larga duração, a tessitura da exploração neocolonial não se faz da noite para o dia nem nos próximos dois anos. Pode até haver eleições em 2018 se conseguirem aniquilar (política, criminal ou fisicamente) o potencial eleitoral petista (de Lula a Haddad, passando por todos com alguma viabilidade), de Ciro Gomes, de Flávio Dino ou de quaisquer outros que surjam no campo democrático-nacional-popular.

Além da liquidação de lideranças tentarão nos enfraquecer por todos os meio possíveis: o autoritarismo; o desemprego; a desesperança; a agressividade preconceituosa; a imbecilização midiática e a imprensa parcial e mentirosa; a legislação restritiva de direitos e se necessária a repressão dura (uma nova Lei de Segurança Nacional? A aplicação casuística da vigente Lei do Terrorismo?).

A resistência que até agora conseguimos opor pode prosseguir, porém minguando. As manifestações de rua, os emocionantes atos em auditórios, as vibrantes trocas de mensagens nas redes sociais não continuarão indefinidamente.5 A movimentação não estrategicamente dirigida leva à dispersão de energia que, por sua vez, acaba por drenar a capacidade de luta. O ânimo e a disposição crescentes para o combate político são alimentados por vitórias, sejam grandes ou pequenas conquistas em série, pela adesão progressiva de novos lutadores, pelo entusiasmo proporcionado pelo avanço. Em um espaço geográfico e sociopolítico como o brasileiro isso não se dá por acaso, por que queiramos que assim seja ou por uma imaginária convergência de propósitos dispersos em nossa vastidão.

O curso de ação acima referido, para ser consequente, deve contemplar variadas frentes de luta: os diversos tipos de greve (pipoca, multisetorial, local/regional, geral); ocupações e acampamentos de lugares importantes ou com grande visibilidade; uma atuação parlamentar incessante, mediante pedidos de abertura de CPI’s, convocações de representantes do governo ilegítimo, realização de audiências públicas; pronunciamentos diários denunciando o golpe reacionário, eventos políticos nas bases eleitorais, etc. Desencadear uma avalanche de ações judiciais, nas instâncias apropriadas, contra todos os tipos de arbitrariedades, ilegalidades e de ataques aos direitos humanos, sociais e do trabalho. Encaminhar o pedido de impeachment de partidários e imparciais ministros do STF e medidas correspondentes contra juízes e desembargadores que tenham o mesmo comportamento. Atormentar cotidianamente e por diversos meios os apoiadores do golpe, os governos estaduais e municipais cúmplices. Marcar presença cotidiana com entrevistas, artigos, propostas e denúncias em todos os meios de comunicação Fomentar a desobediência civil às medidas antipopulares e antinacionais. E todos os outros tipos de ação criativos e contundentes que a imaginação militante conceber, mas que não exigem a estratégica direção política, como condição de eficácia.

A luta política que está a exigir o golpe reacionário, antipopular e antinacional, requer uma frente democrático-popular atuante, combativa, confrontadora, cuja organização supere o voluntarismo e a atomização. Requer, portanto a fusão das duas grandes frentes existentes e a atração de todas as organizações lutadoras que têm desempenhado papel decisivo na resistência. Que fique claro que não demandamos aqui a criação de uma nova frente. O que reclamamos é uma direção política visível que dê voz aos nossos anseios e imprima rumo e sinergia às nossas ações. Uma direção que democraticamente legitime, a cada momento significativo, os objetivos buscados. Uma direção capaz de avaliar e orientar (inteligente e estrategicamente) nossas forças e recursos para onde os elos adversários são mais fracos, que indique onde devemos concentrar nossa força e esforços e onde devemos buscar reforços. Uma direção que consiga traçar um curso de ação produtor de viabilidade progressiva até a vitória final.

Uma direção que consiga organizar a captação e a criação de recursos e alocá-los onde mais eficaz politicamente, que consiga organizar e operar a comunicação social requerida, entre outras tantas atividades imprescindíveis.

Que os principais líderes da resistência ao golpe reacionário se juntem e apresentem ao país a direção da frente democrático-popular. Precisamos dar visibilidade e projeção aos que tanto se esforçam na mobilização/organização da resistência antigolpista. Essa é uma condição para dar máxima potência combativa às nossas forças e passarmos à ofensiva.

A direção há de sair do seio dos atores coletivos indubitavelmente compromissados com os interesses democrático-populares. Das duas Frentes, dos partidos de esquerda que em um esclarecedor debate haverão de se ombrear, da expressiva base de organizações e entidades sociais, sindicais, profissionais, religiosas comprometidas com a causa democrático-popular e nacional, das dedicadas lideranças surgidas entre os combativos militantes (cuja quantidade e identidade talvez sejam desconhecidas, mas que com a segurança de que não são poucos). A liderança há de chamar os parlamentares, dirigentes de organizações e entidades, intelectuais, artistas, técnicos, gestores públicos, profissionais diversos, religiosos, personalidades em inúmeras áreas, todos com grande capacidade de pensar a nossa realidade e o nosso futuro, para produzir propostas de transformação, um Projeto para o Brasil a ser submetido ao debate de base. Não podemos nos esquecer de que uma direção nacional deve se desdobrar por todo o nosso enorme território, mediante sofisticados arranjos de centralização-descentralização-centralização.

A derrota recém-sofrida deve se transformar no cimento que vai dar liga a nova unidade. Os partidos, os movimentos sociais e sindicais, as entidades de defesa de direitos, as associações populares de todos os tipos têm uma enorme experiência organizativa e mobilizatória que precisa ser atualizada mediante uma nova pedagogia política, construtora da unidade da diversidade (essa é uma riqueza), sem as imposições e sectarismos que nos marcaram, como o exige a constituição de uma frente democrático-popular. Trata-se, agora, definir o arco de alianças, elaborar o MDC, formar a direção (central/descentralizada) e as instâncias de assessoramento, conceber a estratégia e dar a partida, de maneira criativa e apaixonada como sabemos fazer.

1 Vale lembrar que mobilização assemelhada ocorreu nas últimas semanas da campanha eleitoral de 2014, quando a possibilidade de vitória da direita se fez mais evidente. A aglutinação das forças progressistas deu folego para a reta final e resultou na vitória de Dilma. Todavia, disso não resultou a constituição de uma nova base social para o governo, o que, de alguma forma, permitiu a ofensiva que conduziu ao processo do impeachment.

2 A Executiva do PT realizou apenas em 16.05.2016 a primeira reunião depois da aprovação do processo de impeachment no Senado.

3 Não cabe aqui arrolar todas as evidências, mas há farto material na imprensa alternativa, nos sítios críticos, nos blogs de militantes das boas causas e até na mídia golpista.

4 Ver revista PIAUÍ, maio de 2016, matéria sobre a Operação Mãos Limpas, em especial a declaração do professor universitário Luigi Zingales, perguntado pela revista o porquê de algo parecido com a Mãos Limpas não ter acontecido antes: “… a situação política não era propícia para investigar a Democracia Cristã”, pois implicaria em fortalecer o PCI (pág. 26).

5 Ver Paulo Moreira Leite, Democracia e o golpe em dois turnos, www.brasil247.com.br 20.05.2016

 

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

2 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. por uma…

    Por uma direção “democrática”, nacional e visível. Reacionária e ditatorial, a esquerda sempre foi. E caiu sozinha de podre. Todos seus supostos inimigos de hoje foram seus cúmplices de ontem. Este circo de horrores do qual a sociedade nunca fez parte, estes grupelhos, quadrilhas organizadas com trânsito no poder público e politico, nunca representaram plenamente a sociedade brasileira. Democracia é o povo se representar, sem intermediários. E quando houverem, com mecanismos muito ágeis e práticos para o controle de suas ações. E a voz do povo, das urnas, das suas convicções e defeitos nem sempre agrada quem quer se perpetuar no poder, herdeiros do politicamente correto, senhores da verdade absoluta. Estamos todos, como nação, errando novamente como já fizemos há poucas décadas no final dos anos de 1960. Cabe agora não seguirmos o caminho que já trilhamos, e sabemos, cheio de tropeços e erros.

  2. Muito bom, é estratégio que

    Muito bom, é estratégio que agimos com direção, ou nosso país retroagirá em todos os direitos sociais, políticos e economicos.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador