Paulo Kliass
Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.
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Serviços públicos ou mercadorias?, por Paulo Kliass

Uma vez privatizado, o serviço passa a responder pela lógica do lucro e da rentabilidade do investimento realizado pelo capital privado.

René Magritte

Serviços públicos ou mercadorias?

por Paulo Kliass

            O atual processo de privatização envolvendo áreas e setores do Estado brasileiro já vem de longa data. Com o início do processo de superação da ditadura militar em nosso País, os setores mais liberais da oposição (e mesmo alguns grupos do governo que se bandearam para uma postura meio oposicionista à época) passaram a criar uma narrativa associando o regime militar e a ditadura à existência de um setor público forte. Com isso, ainda no final da década de 1970, tem início uma campanha pesada contra o Estado na economia, uma vez que para essa parcela das elites isso rimaria com autoritarismo e falta de democracia.

            O diário conservador Jornal da Tarde, da família Mesquita também proprietária de “O Estado de São Paulo”, por exemplo, patrocinou em 1983 uma longa série que recebeu o título de “União da República Soviética do Brasil” (sic). Tratava-se de uma das primeiras tentativas coordenada e bem articulada de desacreditar o potencial e a importância do setor público para o desenvolvimento econômico e social. As matérias traziam uma denúncia da existência de um suposto “gigantismo” do Estado, que tudo dominaria: dos portos às siderúrgicas, passando pelo setor financeiro e pelas telecomunicações, saindo da eletricidade e rodando pelo petróleo etc e tal. Por outro lado, outro expoente do conservadorismo das elites brasileiras era Henry Macksoud, dono da revista semanal “Visão”. Por meio de sua publicação, ele tentava sistematicamente, desde meados da década de 1970, minar as bases de um Estado presente na economia.

            Estes foram os ensaios pioneiros na busca de associar regimes ditatoriais a à existência de um setor público amplo, com o corolário político de que a democratização de nossa sociedade estaria a exigir também uma liberalização das relações econômicas. É importante lembrar que, em meados da década de 1980, tem início o período de consolidação do Consenso de Washington e das proposições de reajustes estruturais nos países do chamado Terceiro Mundo. Daí viriam os paradigmas da privatização, da liberalização generalizada das relações econômicas e a austeridade fiscal pela via do ajuste ortodoxo.

Modalidades de privatização.

            Assim o processo de privatização não se resumiria apenas à venda de empresas estatais ao capital privado. Na verdade, tratava-se de uma proposição mais audaciosa de promover uma mudança estrutural nas formas de organização da produção e da vida em sociedade. A partir de então passou a ser alvo do interesse do setor privado todo e qualquer espaço público que pudesse ser objeto de acumulação de capital. Isso significou desde a venda de empresas públicas ou de economia mista ao setor privado até a ampliação de alternativas de concessão, terceirização ou parceria entre o público e o privado.

            Esse longo processo envolvia também o estrangulamento da capacidade de investimento e de dispêndios públicos em tais áreas, de forma a facilitar a transferência das mesmas para os detentores do capital. Dada deste período o longo e paulatino processo de privatização, em seu sentido mais amplo. Para além da transferência de setores inteiros ao capital, teve início o processo de penetração do setor privado pela borda, de forma marginal, em áreas consideradas, até então, como sendo de exclusividade de ação do setor público. E assim deu-se, inicialmente, a venda de empresas bancárias e financeiras (em sua grande maioria os bancos e caixas econômicas pertencentes aos governos estaduais), as empresas siderúrgicas, as empresas de telefonia e telecomunicações, as empresas petroquímicas e de fertilizantes, as empresas de geração e transmissão de eletricidade, entre tantas outras.

            Na sequência vem a entrada do movimento privatizante em áreas mais estritamente consideradas como sendo de serviços públicos. Esse é o caso da saúde, da educação, da previdência e da assistência. Ao longo das últimas quatro décadas, o capital privado foi se apropriando de franjas significativas de tais ramos de atividade, convertendo-se pouco a pouco em presença relevante na oferta de tais serviços à sociedade. Esse movimento é bem característico na saúde, onde planos privados, operadoras privadas, hospitais privados, laboratórios privados, oligopólios de farmácias privadas e grupos de indústrias farmacêuticas privadas passaram a dominar o setor, apesar da brava, dura e corajosa resistência do Sistema Único de Saúde (SUS).

Saúde, educação, previdência e “mercadorias”.

            Na área da educação superior, assistimos à impressionante explosão das faculdades e universidades privadas por todo o território nacional. Ainda que se tenha observado a ampliação da rede das instituições federais de ensino superior, o domínio do capital privado é absoluto no que se refere ao número de vagas e matrículas. Além disso, os programas governamentais do tipo Prouni promovem uma escandalosa transferência de recursos públicos para os caixas das empresas privadas do ramo, com o discurso de permitir o acesso de parcela importante da população ao ciclo superior do ensino.

            Os planos de previdência complementar aberta e fechada também ampliaram seu espaço no vácuo previdenciário aberto pela redução do teto dos valores dos benefícios do INSS e pelas sucessivas etapas de reformas previdenciárias redutoras de direitos de trabalhadores, aposentados e servidores públicos. O sistema previdenciário privado passou a ocupar espaços crescentes no universo total do recebimento de contribuições e pagamento de benefícios. Até mesmo no âmbito do sistema de assistência deu-se uma expansão da lógica não-pública, uma vez que a generalização dos mecanismos de filantropia reais ou de fachada permitiu que o setor privado passasse a se ocupar também deste tipo de ramo de atividade.

            De forma ampla e geral, deu-se um processo lento e paulatino de transformação dos serviços públicos em mercadorias. Aquilo que antes era encarado pela sociedade e que havia sido estabelecido pela Constituição a partir de 1988 como um dever do Estado e um direito de cidadania pouco a pouco sofre um processo profundo de mudança estrutural. Saúde, educação, previdência e assistência, dentre outros, deixam de operar segundo a lógica de serviços públicos e passam por uma metamorfose rumo à sua mercantilização. Os parâmetros para o oferecimento de serviços deixam de ser da esfera da qualidade do atendimento e da universalização do acesso para introduzir critérios como preço, oferta, demanda, capacidade de pagamento, etc.

Mercantilização e lógica do lucro.

            Uma vez privatizado – seja pela modalidade da venda da empresa, pela terceirização, pela concessão ou por meio de parceria público privado (PPP) – o serviço passa a responder exclusivamente pela lógica do lucro e da rentabilidade do investimento realizado pelo capital privado. Ao investidor pouco importa em que tipo de setor o seu recurso esteja aplicado. A ele interessa tão somente que seja assegurado e maximizado o retorno esperado do valor investido. E ponto final. Aliás, essa é uma das principais razões pelas quais determinados ramos de atividade e determinados serviços públicos não podem ser privatizados. A natureza intrínseca dos mesmos não permite que eles sejam transformados em simples mercadorias.

            Os casos da saúde e da educação são bem evidentes a esse respeito. A partir do momento em que esses direitos constitucionais passam a ser operados segundo a lógica de sua mercantilização, ocorre uma subversão completa no atendimento das necessidades fundamentais dos indivíduos e da sociedade no seu conjunto. Vejamos o que dizem os dispositivos da Constituição a esse respeito:

(…) Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (…)

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. (…) (GN)

Ora, o comportamento segundo as planilhas que buscam reduzir despesas e elevar receitas de qualquer tipo de empreendimento na maioria das vezes se coloca em contradição com as determinações do texto constitucional. O direito à educação passa ser intermediado por variáveis como valor da mensalidade escolar, valor da matrícula, nível de renda da família do estudante, salários dos professores, investimentos nos equipamentos de ensino, etc. O direito à saúde se desvirtua quando aspectos como mensalidade dos planos privados, nível de renda das famílias, período de carências, tratamentos não cobertos pelos planos, custo dos procedimentos, honorários dos profissionais envolvidos, investimentos em equipamentos de ponta, despesas com prevenção e saúde pública, etc passam a  determinar a operação do sistema de atendimento à população.

Privatização dos presídios: barrar o extremismo liberaloide

No caso mais recente do sistema prisional corremos o risco de acontecer algo semelhante a partir de agora. Ainda que o assunto não seja tratado diretamente pela Constituição, a Lei nº 7.210/84 estabelece as definições gerais da questão prisional. Dentre outros aspectos, percebe-se que:

(…) Art. 10. A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade.

Parágrafo único. A assistência estende-se ao egresso.

Art. 11. A assistência será:

I – material;

II – à saúde;

III -jurídica;

IV – educacional;

V – social;

VI – religiosa. (…)

            É mais do que sabido que nem mesmo sob a responsabilidade do poder público tais direitos estão assegurados. Imaginemos como será a situação dos presídios e das penitenciárias pelo Brasil afora caso elas passem a ser objeto de responsabilidade e gestão do capital privado. O edital da PPP para o presídio de Erechim e o resultado do leilão realizado na simbólica B3 (antiga Bolsa de Valores de São Paulo) já oferece a linha norteadora. Tudo a partir de agora deverá se orientar por variáveis como benefícios tributários para os novos empreendedores, recursos financeiros e garantias jurídicas do BNDES, além de determinantes como “custo diário por presidiário”.

            Nestas condições, os elementos centrais deste problema complexo como a qualidade do serviço público, os direitos da população do entorno da unidade prisional, a segurança da sociedade como um todo, os direitos e a qualidade de vida dos presidiários, as condições do trabalho dos detentos e muitos outros passam a ser regidas pela lógica restrita e obtusa do lucro do capital e do retorno financeiro dos investidores privados.

            A maior parte dos setores das classes dominantes brasileiras adoram usar o exemplo liberal das políticas públicas e do modo de vida dos Estados Unidos. Assim, a tendência verificada ao longo das décadas de 1970/80 naquele país de se promover a privatização do sistema prisional também é apresentada como uma verdadeira panaceia para os problemas de nosso presídios e penitenciárias. Ocorre que até mesmo nos Estados Unidos a fúria neoliberal extremada foi sendo flexibilizada. Isso ocorreu, por exemplo, na crise econômico-financeira de 2008/9, na crise mais recente da COVID e nas idas e vindas da estruturação do sistema de saúde.

            No entanto, pouco se fala nos grandes meios de comunicação por aqui a respeito da reviravolta que também o sistema prisional norte-americano tem sofrido ao longo dos últimos anos. A privatização dos presídios passou a ser questionada e seus resultados negativos foram expostos à crítica de forma ampla. Com isso, os governos promoveram um fechamento das unidades privadas e a solução por prisões públicas retornou à agenda política como prioridade. Esse processo foi aprofundado recentemente pelo Presidente Joe Biden.

            O Brasil precisa escapar de mais esta armadilha de natureza neoliberal e ideologicamente conservadora no que se refere à natureza mesma da política pública da segurança e do encarceramento. Cabe ao Presidente Lula dar a linha também neste quesito, evitando que mais um grave equívoco de seu terceiro mandato seja levado em frente sem controle.

Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.

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