Chile: o Governo Bachelet e a des-pinochetização do Estado

Violência de Carabineros contra civis

Frederico Füllgraf

Concepción, Chile

Especial para Jornal GGN

Rancagua, fevereiro de 2014.

Jorge Aravena Retamal, 44 anos, comerciante, termina de almoçar em um restaurante e, quando lhe trazem a conta, nega-se pagar o preço escorchante. O proprietário do estabelecimento chama a polícia. Retamal é detido pelos mal afamados Carabineros e jogado em um camburão. Porém, ao invés de levarem o detido à delegacia para registro de ocorrência e sua eventual soltura, remetendo o caso para um tribunal de pequenas causas, os policiais continuam sua ronda em Rancagua, durante sete horas ininterruptas debaixo de sol abrasador. Ao retornarem à sua base, os PMs retiram Retamal do camburão: morto. O comando oficial a Promotoria da Justiça Militar, onde os quatro policiais se “desculpam”, terem “esquecido” o preso no camburão. Os quatro são exonerados de seus serviços e… caso encerrado!

Durante a transição para a democracia, iniciada em 1990 no Chile, pelo menos 60 pessoas perderam a vida nas mãos dos Carabineros, da polícia de investigações PDI e das Forças Armadas. São militantes de partidos de esquerda, líderes indígenas Mapuches, mas sobretudo cidadãos “comuns”, mortos em circunstâncias de esdruxularia criminosa como a do “esquecimento” de Jorge Aravena Retamal no camburão incandescente.

Contudo, o caso Retamal insinua-se apenas como ponta de um assombroso iceberg, cuja base está submersa nos mais altos escalões das esferas política e jurídica do Estado. Lá, o recém-empossado Governo Michelle Bachelet se defronta com o legado pinochetista, nas ruas, com a indignação da cidadania, que cobra uma profunda faxina jurídica e o fim da impunidade.

Como podem um executivo, legislativo e judiciário democráticos manter em seu posto um Comandante das FFAA, cujo irmão é um militar violador de DDHH, e um presidente do Conselho de Segurança do Estado que foi ex-advogado de Pinochet – ambos nomeados sorrateiramente poucos dias antes da posse de Bachelet pelo ex-presidente Sebastián Piñera? – questionam os chilenos. Há também o caso Rosauro Martínez – ex-agente da DINA acusado do fuzilamento de opositores à ditadura – há 12 anos gozando de imunidade parlamentar como deputado do Congresso chileno. Já foi absolvido duas vezes das acusações imputadas, mas alguns deputados apontam para processos viciados, repletos de irregularidades, e cobram a cassação do mandato do ex-capitão do exército.

Degradação dos militares torturadores

Em seus primeiros quarenta dias de gestão, o novo Governo Bachelet trabalha duro. Mostrou sensibilidade social e decisões acertadas no controle das duas catástrofes que recenemente assolaram o país – o terremoto de Iquique e o incêndio em Valparaíso. No Congresso o governo enfrenta a resistência e nos meios de comunicação a feroz campanha difamatória da ultra-direita contra o projeto-de-lei de reforma tributária – alavanca de arrecadação do equivalente a 8,0 bilhões de dólares complementares até 2018 para o financiamento do projeto de ensino gratuito e investimentos sociais – ao mesmo tempo que busca o diálogo com a cidadania sobre a chaga da violação dos Direitos Humanos pela ditadura Pinochet, ferida que apesar dos avanços alcançados não quer cicatrizar.no Chile.

Nos primeiros dias de abril, no entanto, a Associação dos Familiares de Executados Políticos (AFEP), encabeçada por Alicia Lira, deixou o Ministro da Defesa, Jorge Burgos, numa saia justa, cobrando-lhe a degradação dos militares condenados por crimes de lesa-humanidade.

O democrata-cristão Burgos instruiu uma equipe do ministério para avaliar a viabilidade jurídica da petição, e Alicia Lira deixou a reunião, reconhecendo a “boa disposição” do ministro na acolhida da proposta. A medida afetaria aproximadamente 60 altos oficiais das forças armadas e paramilitares condenados e, futuramente, todos os militares que respondem a processo e passíveis de julgamento. Seu objetivo é cortar os privilégios acintosos de assassinos como Manuel Contreras – ex-diretor da sinistra DINA, condenado a mais de 300 anos de reclusão – que gozam de escandalosas pensões superando os 3,0 milhões de pesos chilenos (aprox. 6.000 dólares) mensais, mas o objetivo também visa à regeneração política das FFAA e seu compromisso constitucional quebrado pela insurreição criminosa de 11 de setembro de 1973.

Em duro contraste com os privilégios concedidos aos militares durante a ditadura Pinochet, mais de 60% da população civil deve contentar-se com 173.000 pesos chilenos – média de 350 dólares mensais – pagos pelas Administradoras de Fundos de Pensões (AFP) privadas, instituídas durante a ditadura por José Piñera, ministro da área social de Pinochet e irmão do recém-demitido presidente Sebastián Piñera. Os privilégios da bem nutrida guarda pretoriana não se limitam a valores: enquanto o chileno civil é obrigado a trabalhar até os 60 (mulheres) e 65 anos de idade (homens), com modestos 28 anos de serviços prestados, os militares podem se aposentar aos 45 anos de idade.

As viúvas da Guerra do Pacífico

A lista das benesses militares é um deboche do Estado de Direito.

Como o Brasil, o Chile também tem sua “guerra do Paraguai” e seus auto-nomeados “herdeiros”: a Guerra do Salitre de 1879-1883, também chamada de “guerra do Pacífico” – atiçada, financiada e armada pela Inglaterra, em troca da maioria das concessões de mineração do salitre no Atacama – que tirou o mar da Bolívia e deixou menor o Peru. Foi o grito primevo da burguesia chilena, século e meio depois, ainda essencialmente extrativista.

Cúmulo da estúrdia são os montepios pagos desde então até mesmo às tetranetas não casadas de militares das três armas das FFAA, dos Carabineros e Gendarmeria aposentados. Espertamente bolada à época, a lei estabeleceu o princípío da hereditariedade, de modo que 140 anos após o fim da “guerra de los ingleses” é possível encontrar jovenzinhas nos salões de Tarapacá, Santiago ou Punta Arenas que ainda recebem 70% do valor da pensão dos babaquaras com cara fechada, montados em suas cavalgaduras com espada desembainhada, estampados nos canvas patrióticos que decoram não poucos casarões centenários. Só deveriam receber o presente até os 18, no máximo até os 24 anos de idade, caso sejam estudantes ou portadoras de deficiências. A ênfase está no condicional deveriam, não fossem cavilações e falcatruas como casamentos arranjados, desquites forjados, pensões indevidas para pessoas economicamente ativas, ou filhas de militares que evitam o casamento – tudo com o propósito de defraudar o Estado e preservar um rombo mensal equivalente a 2,4 bilhões de dólares! Para o deputado Patricio Hales, do PPD (Partido Para la Democracia), da base governista de Michelle Bachelet, um escândalo que tem seus dias contados.

Nas ruas, o Chile paga para ver as mudanças prometidas.

Royalties do cobre financiam FFAA

Uma das mudanças mais esperadas é o fim do financiamento das FFAA e da polícia através da Lei Reservada do Cobre – outra mirabolância concebida pelos patriarcas fundacionais, devidamente explorada pela ditadura Pinochet.

A controvertida Lei 13.196 foi promulgada em 1958 pelo governo Carlos Ibáñez del Campo, e estabelecia um imposto de 15% sobre os benefícios derivados da mineração do cobre para financiar as FFAA, e assim contornar o expediente constitucional da previsão orçamentária.

No início da década de 1970, o faustoso percentual foi reduzido para 3%, porém, sob a ditadura Pinochet o valor foi mais que triplicado para 10%, estipulando 90,0 milhões de dólares como reserva mínima anual. Deste modo, até 2003, as despesas militares foram segredo de Estado no Chile.

En 2009, durante seu primeiro governo, Michelle Bachelet enviou à Câmara dos Deputados um projeto de lei que acabaria com a Lei reservada do cobre. Com algumas modificações, seu sucessor, Sebastián Piñera, conseguiu aprovar o projeto em 2012, mas os efeitos da famigerada lei não foram totalmente extirpados, permitindo aos militares um verdadeiro porre de despesas, que em 2013 alcançaram 8,84 bilhões de dólares. Com o equivalente a 4,3% do PIB, foi o maior gasto militar proporcional da América Latina.

Justiça Militar

Em 2005, no processo do ex-oficial de inteligência da Marinha, aposentado, Humberto Palamara Iribarne, contra o Estado chileno, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Chile devido à sobrevivência de sua justicia militar obsoleta e anti-democrática, determinando sua imperiosa reforma em prazo hábil. Nove anos e dois governos mais tarde, o Chile continua descumprindo a determinação judicial. Desde sua promulgação em 1925, o Código de Justiça Militar chileno se mantém virtualmente intacto.

O primeiro governo de Michelle Bachelet reagiu apenas dois anos depois da sentença, com quatro projetos de lei, na sequência engavetados por mais dois anos pelo Congresso. O Executivo criou então a Comissão de Estudos para a Reforma da Justiça Militar, que produziu o documento “Princípios normativos para a reforma da justiça militar” e submeteu ao Congreso dois novos projetos de lei – tudo em vão, a matéria foi mais uma vez esvaziada pelo Congresso. Durante a administração Sebastián Piñera apenas alardeou-se a possibilidade de aumentar as penas de policiais responsáveis por maus tratos a civis, mas o governo deixou intocado a essência do código, que há quase 100 anos garante a intocabilidade dos militares.

A sociedade chilena depara-se, portanto, com uma cultura de militarização da esfera judicial, pois, se bem não criados por Pinochet, durante sua ditadura os tribunais militares foram notavelmente expandidos, o que explica por que a maioria dos supostos “réus” condenados pela justiça militar eram civis, expediente agravado com a instituição e tipificação de “crimes políticos” e “terrorismo”, mas amplamente utilizados em plena democracia como base de acusação contra dezenas de militantes da etnia Mapuche, que na Araucânia lutam por sua auto-determinação.

Contudo, os parlamentares da base partidária de Bachelet, Felipe Harboe (PPD) e Juan Pablo Letelier (PS), advertem que, se os projetos-de-lei pela reforma da justiça militar não foram aprovados, ou sequer examinados durante as últimas três gestões, é porque sofreram o boicote da direita, agora minoritária em ambas as câmaras do Congresso, que exije quorum de 4/7 das cadeiras, obstáculo que também precisa ser removido.

Que a justiça militar sofra restrições para atuação exclusiva em caso de guerra, é também o novo entendimento da Corte Suprema. Em relatório enviado ao Senado chileno no início de abril, os cinco ministros do Supremo qualificaram a justiça militar como “altamente parcial, com falta de independência e tardía”.

Redação

6 Comentários

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    1. PMRJ

      Antonio Carlos,

      Temos a polícia militar que mais mata neste mundo, com índices de morte/per capita de polícia oficial superiores aos de Bagdá, Trípoli, Cabul, etc… , um motivo de “orgulho” para os do RJ.

      Ontem foi a lambança no Pavão Pavãozinho, daqui a pouco ocorre outra e nada se faz porque 3p não é gente, nenhuma providência a partir das ditas “autoridades” enquanto o Secretário de Segurança passeia à vontade no exterior.

      Sei que existe muita gente consciente dentro da PM, mas tem uma turma por lá que vou te contar…

      1.  
        Alfredo, é verdade, a

         

        Alfredo, é verdade, a violência policial aos 3p é ainda mais violenta em comunidades pobres da Zona Oeste e Baixada Fluminense .

        Desde a visita do Papa Francisco que comunidades de Santa Cruz vivem aterrorizadas tanto com a violencia dos delinquentes quanto com a ação repressora da PM .

        E a “operação Papa” ainda não acabou . A população dessas regiões é que sofrem .

                                 

          Abraço !

         

  1. policia violenta

    Desde  68 o Rio de Janeiro não vive um momento tão autoritário quanto esse de agora. Temos, além disso, uma imprensa fascista que acoberta os crimes do estado e da polícia. No triplo assassinato ocorrido aqui em Copacabana ontem, como também na morte da mulher arrastada pela viatura policial é claro o apoio dado pela imprensa local à versão da PM, ou seja, de que os verdadeiros culpados são as vítimas mortas. Têm sido estarrecedoras as coberturas feitas, por exemplo, pela rádio CBN-RIO a esses crimes de Estado. Na maioria delas é dada a palavra ao comandante da corporação que,  com fala mansa e pausada,  atribui esses conflitos a atuação de traficantes que tentam a todo custo desestabiizar o projeto das UPPs. É um absurdo. Nessas 04 mortes ocoriddas nenhuma das vítimas pertencia a grupos de traficantes. Não fosse a presença de jornalistas independentes, estariamos todos perdidos. Nosso estado está entregue aos interesses do grande capital e é por ele governado. Prefeito da capital e governador sequer aparecem na mídia para darem satisfação de suas ações. O RJ é hoje um lugar hostil, muito mais amedrontado pelos crimes de Estado do que aqueles praticados por  traficantes ou ladrões. As chagas deixadas abertas nos períodos autoritários (República Velha, Lacerdismo, 1968) parecem  agora recrudescer  aqui no RJ, ironicamente quando uma ex-militante de esquerda governa o nosso país.

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