Urariano Mota
Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".
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O filme Vazante e a escravidão, por Urariano Mota

O filme Vazante e a escravidão

por Urariano Mota

Sobre Vazante, o crítico Inácio Araujo, da Folha de São Paulo,  escreveu no  texto, que a partir do título “Submersa em esteticismo, obra aplaina horror da escravidão” é um achado:

“O filme de Daniela Thomas buscou reconstituição esmerada de 1821, atores estrangeiros, referências iconográficas precisas, locações cuidadosamente escolhidas. E, no entanto… deixa escapar qualquer possibilidade de retratar com força o tráfico e a sociedade escravocrata, a opressão étnica e patriarcal.

‘Vazante’ lança contradições de nossa formação e produz delas uma versão acomodatícia. Fosse esse ou não o desejo da diretora, os horrores do escravismo aplainam-se. Afogado em esteticismo, termina por ser um filme tão frouxo quanto estéril”   

Da reportagem da Folha destacamos:

“Em Brasília, Daniela Thomas disse não ter feito um filme militante e nem ter tido intenção de fazer um retrato definitivo sobre a questão racial.

O crítico de cinema Juliano Gomes, da revista ‘Cinética’, argumentou que invocar essa posição de neutralidade em 2017 é impossível. ‘Seu filme é político, sim, e está profundamente a serviço do status quo’….

A cineasta paulistana Jéssica Queiroz também se sentiu incomodada com o retrato pintado em ‘Vazante’.

‘Os personagens negros não são individualizados. São um objeto em cena, uma grande massa negra escravizada’. Não acredito que a arte possa ser separada da visão política. Principalmente no momento em que vivemos’, avalia. ‘A arte precisa dizer alguma coisa, ter a ambição de mudar a realidade. Como produtora negra, da periferia, não posso fugir disso’

Para  o cineasta Chico Santos:

‘Houve uma tensão que considero extremamente saudável. Seria estranho se a população negra continuasse muda. Muitas vezes não estamos acostumados a ouvir vozes que sempre estiveram historicamente caladas. Ninguém está totalmente isento disso. Para nós do Coletivo Bodoque, esse foi o susto de Daniela’ “

A coisa boa desse filme tem sido provocar a expressão que protesta. Mas  “isso não pode”, os conservadores reclamam. Mais de um cínico de direita já declarou que a esquerda rebelde quer censurar o cinema. Esse tipo de argumento é conhecido, sabemos. A direita, para sua pregação das trevas, sempre reivindica a sua, própria, liberdade de opinião. Se querem falar, que falem, mas aguentem a viva resposta. Para nós, democratas, o caso é dar livre curso à fala que critica o velho mundo.

Quando conheci “12 anos de escravidão”, pude notar que  a realidade brasileira era ainda mais cruel que a mostrada no filme dos Estados Unidos. Mas os corações mais delicados, e hipócritas do Brasil por extensão, se recusavam a ver que os negros escravos aqui eram passados em moendas de cana, que lhes expulsavam as vísceras como bagaço. Que outros escravos, após o chicote, condenados à morte tinham as feridas abertas lambidos por bois. E nem era preciso falar o quanto é áspera e cruel a língua de um boi. As peles negras eram arrancadas no sangue e mel.

Dos anúncios passados do Diário de Pernambuco, copio alguns registros históricos como os seguintes:

“Terça-feira, 6 de novembro de 1866

Fugio – Fugio no dia 4 do corrente mez de novembro, o escravo Semião, de nação Moçambique, idade 36 annos, tem falta de dentes na frente, tem talhos no rosto, estatura alta…

Segunda-feira, 20 de dezembro de 1841

Escravos Fugidos – No dia 5 do corrente fugio da Vila do Limoeiro um negro de nome Joaquim Angico, de idade de 35 annos, alto, seco, com uma marca de ferida nos peitos…

Sexta-feira, 1º de fevereiro de 1867

Escravos Fugidos – Acha-se fugido nesta cidade um escravo com o braço direito cortado, preto, crioulo, de nome Manoel, 45 annos de idade”

Será preciso pôr negritos nas marcas da crueldade contra a mercadoria humana? O sentimento que nos toma é semelhante ao do fundamental cientista Charles Darwin, que anotou da sua passagem pelo estado escravocrata de Pernambuco:

“Até hoje, se eu ouço um grito ao longe, lembro-me, com dolorosa e clara memória, de quando passei numa casa em Pernambuco e ouvi os urros mais terríveis. Logo entendi que era algum pobre escravo que estava sendo torturado. Eu me senti impotente como uma criança diante daquilo, incapaz de fazer a mínima objeção”.

Diante de filmes nacionais que tomam poses de cultos e falam na maior leviandade que o mal é banal, e apenas adaptam uma citação à sua conveniência banal. Diante de obras que deveriam tornar inescapável a denúncia do mal, mas em lugar disso obscurecem a consciência, penso que já passou da hora da periferia levantar a sua voz. Que os nossos periféricos recebam cursos de roteiro e de cinema, que comam e bebam a melhor literatura e arte, para que nos devolvam  o Brasil que buscamos. Chega de banalidade.

*Vermelho http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=8696&id_coluna=93

 

Urariano Mota

Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".

1 Comentário

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  1. Escravidão: o maior e mais intenso crime de lesa-humanidade

    Excelente a crítica ao filme que não denuncia a intensidade do que foi no Brasil o mais duradouro crime de lesa-humanidade da história humana. O Brasil é fruto desse crime em 300 anos que edificou além das riquezas a própria natureza impregnada na nacionalidade estéril, insensível e acolhedora da desigualdade, como se algo natural.

    Grande parte, senão a própria razão do ódio que dedicam ao ex-Presidente LULA foi ter tido a ousadia de políticas públicas que beneficiaram os descendentes de escravizados.

    O filme não cumpre o papel primordial das artes. Denunciar ou não esconder a mazela da época que lhe serviu de inspiração. A crueldade não era um fenômeno privado. Era prática costumeira e diária.

    No Brasil tivemos a mais intesiva, maior e mais duradouro sistema escravista. Estima-se que 10 milhões de africanos foram sequestrados e traficados pelo Atlântico. Mais da metade para a costa brasileira, o restante para as Antilhas e América Central. Para os EUA foram menos de 500 mil. O sociólogo Jessé de Souza acaba de publicar tratar-se a escravidão a verdadeira natureza dos brasileiros e não a corrupção conforme afirmam os conservadores.

    Charles Darwin, na histórica viagem em que escreveu sua teoria da ´Evolução das Espécies”, em sua passagem pela Bahia, desembarcou de seu ´Beagle´ por alguns dias. Conforme Joaquim Nabuco (O Abolicioniso, 1883) o biólogo inglês ficou horrorizado com o que viu. Ao sair da costa baiana, registrou em seu diário: “nunca mais pisarei numa terra como esta em que tanto se degradam e violam a seres humanos.”. Seguindo para o Rio de Janeiro, onde ficou residindo alguns meses. Preferiu hospedar-se em pensões, sem o conforto do ´Beagle´, do que retornar à Bahia.

    Joaquim Nabuco no prefácio do ´O Abolicionismo´, ciente que documentava para a história, diz o que espera de sua obra: “Quanto a mim, julgar-me-ei mais do que recompensado, se as sementes de liberdade, direito e justiça, que estas páginas contêm, derem uma boa colheita no solo ainda virgem da nova geração” (p.2; abril de 1.863)

    ARISTÓTELES, em a Política, afirma: “somente o humano é um ´animal político´, isto é, social e cívico, porque somente ele é dotado de linguagem. Os outros animais possuem voz e com ela exprimem dor e prazer, mas o humano possui a palavra (logos) e, com ela, exprime o bom e o mau, o justo e o injusto. Exprimir e possuir em comum esses valores é o que torna possível a vida social e política e, dela, somente os humanos são capazes.”

    É isso, a cineasta que se quer moderna se esqueceu: a linguagem capacita o homem, para o bem ou para o mau. Não há imparcialidade possível, diz a crítica de cinema: ou a arte se alia ao bem, exigindo a ciência do que retrata ou servirá para o mau, silenciando, a favor da manutenção do status quo.

     

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