O que fazer com o que fizeram de nós?, por Matê da Luz

O que fazer com o que fizeram de nós?

por Matê da Luz

Que a vida não é perfeita, a essa altura da vida, a gente já devia ter percebido. Não “só” a vida em contextos maiores, já que viver no país do golpe atravanca um tanto de sonho e esperança, é verdade e jamais vou cansar de frisar que o meio interfere sim, e muito, no que a gente vive intimamente mas, especialmente, a perfeição em termos de expectativas e retornos das relações mais próximas daqui e de acolá.

Batalhamos, alguns de nós, com os monstros internos daquilo que nos foi apresentado como fundamental e, vez ou outra, sagrado: as relações com nossos pais, quando não satisfatórias em termos de troca, promovem os maiores fantasmas dessa existência, é só checar os prontuários que passeiam por Freud e Jung, passando pelas constelações e terapias holísticas – é enorme e urgente o “resolver” que estas relações solicitam.

Acontece que de certa forma fomos ensinados que o amor dos pais pra nós (e o de nós pra eles) deve ser incondicional e, além do amor ser por si só algo de definição abstrata, nenhuma relação, por mais profunda, interdependente ou verdadeira que seja, nenhuminha, juro por Deus, é incondicional. Não sei de onde tiraram essa história que, aos meus olhos e pelos meus estudos, é a premissa para acabarmos, todos nós, nos divãs que a vida oferece. Se quisermos, é claro.

“Partindo da decisão de compreender que nenhum pai ou mãe tem o incondicional como premissa, no que estaríamos embasando as frustrações que temos em relação a estas figuras?” – fiz esta pergunta em meu curso de terapeuta e o que se seguiu foi um novo e amplo leque de interpretações e ressignificados.

O primeiro e talvez mais importante de todos eles dá conta de que manter o coração aquecido e a mente ativa são vitais no processo de cura quando a gente se propõe a. Algo que eu só seu sentir e ainda não sei explicar diz que dar um passo pra trás e perceber o contexto como se fosse uma terceira pessoa ajuda a enxergar a relação para, então, transformá-la. Daí, vale também sair daquele looping de culpabilização que tantos de nós nos metemos ao achar que temos que dar um jeito de perdoar nossos pais por todo e qualquer erro porque 1-são nossos pais e sem eles não teríamos a vida; 2- eles são humanos e estão naturalmente propensos ao erro e (não menos importante) 3- nós simplesmente não somos obrigados a sermos superiores aos traumas e dores e atrasos e mágoas que experimentamos nestas relações. Talvez seja, sim, mais saudável que trabalhemos estas questões, mas sem a pretensão exaustiva do perdão completo, até porque nossa definição de perdão é também um tanto distorcida e abstrata.

A minha, pelo menos, é: no meu perdão só cabe aquela cena onde todo mundo vive e convive bem, conhecendo uns aos outros e incentivando as potencialidades positivas ao mesmo tempo em que ampara o desenvolvimento das potencialidades negativas. Nunca havia passado pela minha cabeça que é possível que eu perdoe alguém e que siga sem essa pessoa na minha vida- este é um contexto que eu questionava como “falso perdão” porque, aos meus olhos, se a gente perdoa, a pessoa não é mais insuportável pra gente.

Acontece que existem as características e tempos de cada um e, não necessariamente, quando perdoamos alguém esta pessoa simplesmente e como que por milagre deixa de nos importunar/machucar/magoar/desrespeitar.

Durante este curso tenho me deparado com outras possibilidades reais, dentre elas a existência de psicopatias e sociopatias, além de distúrbios emocionais e psíquicos que as vezes passam tão desapercebidos nesta sociedade doente; o fato de que aos pais realmente também é reservado o direito de não gostar dos filhos, por quaisquer motivos que sejam; e pelo simples fato de que perdoar é um exercício profundo e ao mesmo tempo rotineiro, que visa tão somente a paz interna e individual, muito mais do que a cura de um coletivo.

Perfeição, amigos, é manter a cabeça tranquila e o coração quentinho, além dos sonhos em ação, realizando a manutenção de si mesmo para não reproduzir aquilo que julgamos ser os equívocos que cometeram contra nós e, tranquila e serenamente, honrarmos o lugar de morte e pesar destas sensações para seguirmos verdadeiramente libertos.

Afinal, já disse e repito: o que a gente anda fazendo com o que fizeram da gente? É só isso o que importa. 

Mariana A. Nassif

2 Comentários

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  1. Só nos resta desfazermos o que fizeram de nós

    Não dá prá fazer desse limão uma limonada. Não tem mel, a não ser para os golpistas. Para os golpeados, só tem fel.

  2. …”o que a gente anda

    …”o que a gente anda fazendo com o que fizeram da gente?”

    No meu entendimento devemos cuidar de identificar com clareza, quem. Ou, se for o caso, quais os grandes encantadores de Jumentos*, aqueles que mais contribuem na formatação do que, e como devemos nos submeter a organizar o reflexo condicionado, nos tornando aptos para participar da brincadeira. Formulo 3 singelas pergundas, inspirado num comentário lido por aqui, noutro post. Salvo engano, feito por um padre católico

    01) O que diferencia um Cidadão de um Consumidor?

    02) O que diferencia um Eleitor de um Contribuinte?

    03) O que diferencia um Ser Humano pleno, de um Bovino? Independente de se locomoverem sobre duas ou quatro patas.

    Orlando

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