Breve crônica de uma democracia e seu drama

por Claudio Santana Pimentel

 

Virada de século. Os portugas tomam posse de terras além-Atlântico. Terras essas habitadas por gentes que, devido ao equívoco de um navegador, foram apelidados “índios”. Portugas e índios conviviam bem, os índios ajudando os portugas a levarem para suas embarcações, a princípio madeira, que deu nome à terra, e, com o passar do tempo, pedras preciosas.

As pedras preciosas fazem com que os portugas se aventurem mais ao interior das terras. Um historiador os chamaria “caranguejos”, por viverem aferrados ao litoral. Os portugas começam também a plantar: cana-de-açúcar. Mais tarde, viria o café. Ainda mais tarde, a soja, o gado. Tudo para o estrangeiro. Apenas o necessário à subsistência permanecia para os locais.

A riqueza produzida por essas commodities também se destinava ao estrangeiro: primeiro, Portugal e Espanha; mais tarde, por meio de Portugal, Inglaterra. Quando um príncipe portuga, aconselhado por seu pai, dá um golpe para que tudo permaneça igual, a riqueza segue para Inglaterra, sem mais passar por Portugal. Duas guerras mundiais. A riqueza dessas terras muda de dono, a riqueza do mundo muda de dono. Não mais Inglaterra, mas as terras também novas do Norte, que havia menos de dois séculos se reunido numa federação e se chamado Estados Unidos.

Mas, antes de tudo isso, à medida em que os portugas exploravam a riqueza da terra, os índios já não eram suficientes. Alguns morriam, devido a doenças trazidas pelos portugas. Outros morriam, lutando contra os portugas. O desejo de riqueza era tamanho, que o braço índigena já não era suficiente: os portugas passaram a trazer, do outro lado do Atlântico, pessoas de pele escura, a quem antes haviam oferecido uma nova magia, chamada cristianismo. Eram os africanos. Estes vinham, dizem até que cantando – de tristeza, saudade. Trabalhavam, nas lavouras, na mineração. Nas vilas. Em tudo. Os portugas fizeram da vinda dessas pessoas mais um lucrativo negócio, chamado tráfico.

Um dia, a neta daquele príncipe golpista deu também o seu golpe: desobrigou africanos e seus descendentes de trabalharem de graça. Estes muito haviam lutado por sua liberdade, mas era preciso que o povo a tivesse como um favor da princesa, e não como luta do povo, que era na sua maior parte fillho das vítimas do tráfico. Estes passaram de escravizados a desempregados. Rapidamente, as elites reagiram. Exigiram reparação dos prejuízos trazidos pela novidade a que se chamou “abolição”. Não sendo atendidos, deram estes o seu golpe. Tiraram um velho marechal, veterano do massacre do Paraguai, da cama, para despachar a princesa, seu consorte francês e o imperador, pai dela e filho daquele outro príncipe, de volta à Europa.

As elites rapidamente se organizaram, criando uma república, inspirada naquela das terras do Norte. Trouxeram europeus de diversos países, em crise devido à fome e às guerras, para substituírem os descendentes das vítimas do tráfico: estes eram chamados de cachaceiros, maconheiros, preguiçosos, bandidos, malandros. Dizia-se que não trabalhavam porquê de trabalho não gostavam, e que eram culpados da miséria em que viviam. Ninguém se perguntava se o trabalho trazia consigo a memória da tortura, seu único incentivo.

Um caudilho gaúcho deu seu golpe. Flertou com o fascismo que andava em alta na Europa. Convencido pela força militar do país do Norte, abandonou tais ideias, para decepção dos simpatizantes locais. Reconheceu, depois de muita luta, direitos aos trabalhadores urbanos. Os rurais continuavam submetidos à livre negociação com o patrão. Frequentemente, deixavam seus locais de origem, e tentavam a sorte nas capitais. Chamavam-se retirantes.

Tendo deixado o poder, o caudilho voltou. Agora, eleito pelo povo. Depois de longa crise, suicidou-se. Crise resolvida. Não.

Passado algum tempo, um médico mineiro elege-se, prometendo modernizar o país. Cinquenta anos em cinco. Tentaram impedi-lo de governar, não conseguiram. Seu sucessor colocava em pauta os riscos da corrupção, prometendo varre-la, e governava por meio de bilhetes. Dominava não só as mesóclises, mas outros mistérios da língua herdada dos portugas, inacessíveis às grandes massas mantidas sem escola. Isso não foi suficiente para impedir seu fracasso. Sua renúncia-tentativa-de-golpe, enquanto o vice representava o país na distante China.

Tentaram impedir a posse do vice. Não conseguindo, retiraram-lhe os poderes de presidente, introduzindo o parlamentarismo, muito em voga na velha Europa. Temiam, afinal, era do grupo do presidente-suicida, ocupara a pasta que era responsável pelos direitos dos trabalhadores. Aqueles que por mais de três séculos trabalharam de graça, e que agora trabalhavam por um pouco mais do que isso.

Este recuperou seus poderes, em consulta feita ao povo. Será uma das razões por que se odeiam eleições? Num primeiro de abril, dia-da-mentira, caiu diante de um golpe.

Muitos golpistas de primeira hora perceberam-se enganados. Acreditavam que dali a dois anos seria deles a presidência. Sem ter de concorrer com o médico, o fazendeiro ou o da vassoura. A presidência não foi deles. Escolhia-se um general que deixava a farda e passava a usar paletó. Referendado pelo Congresso, mantinha-se assim a “democracia”.

Décadas passaram-se. Empregos diminuiam, inflação explodia. O povo reclamava o direito de eleger seus governantes. Na tv, protestos populares eram exibidos como comemoração do aniversário da maior cidade do país.

Acordão. Eleição indireta. E o poder cai nas mãos de um líder das forças reacionárias que desde o último golpe reassumira o controle do país. Pouco mudou.

Uma nova constituição. Direitos para os trabalhadores, da cidade e do campo. Direito do índio às terras que lhes foram tomadas. Direito à educação, à saúde. Direitos mais no papel que na prática, é verdade.

Mais tarde, no espírito dessa constituição, garantiram-se direitos às crianças e jovens, aos deficientes físicos, às mulheres vítimas de violência doméstica, aos grupos étnicos historicamente desprestigiados e humilhados. Tentou-se até garantir igualdade de direitos a casais homossexuais. A verdade é que, para as elites conservadoras, qualquer direito que não o deles mesmos soa como ofensa. Voltarei a isto.

Quando se levanta a possibilidade da eleição – pela primeira vez – de alguém vindo das classes populares, de um retirante, as forças reacionárias, por meio da propaganda, criam um candidato: jovem, belo, bem-nutrido. Completamente diferente do povo comum.

Passam-se mais alguns anos. O candidato nascido da propaganda elitista é afastado do poder e renuncia. Em seu lugar, um plano neoliberal debela a hiperinflação. Os aparentes avanços não escondem seu caráter perverso: o patrimônio público é entregue baratinho para empresas estrangeiras. Juros altíssimos fazem a alegria dos especuladores. As parcas pensões pagas aos trabalhadores são tidas como as responsáveis pelo desequilíbrio das contas públicas:  sendo apelidados “vagabundos” por ousarem se aposentar após 30 anos ou mais de trabalho; e aos críticos daquele projeto, reservaram-se os adjetivos “fracassomaníaco” e “beócio”.

O representante das classes populares finalmente se elege. Empresas brasileiras assumem inédito protagonismo. Universidades são abertas pelo presidente-operário, em lugares onde antes o estudo era impensável. Para gente para quem antes o estudo era impensável.

Aeroportos tornaram-se rodoviárias, diziam.

Para as elites é inaceitável. Reagem. Seus principais assessores são condenados, num controverso processo. Os grupos que os antecederam, acusados de práticas semelhantes, permaneceriam distantes das exigências da lei. Quando esta finalmente os alcançava, estavam protegidos pela prescrição dos crimes, ou mesmo pela morte.

Ainda assim, elege sua sucessora. Sim uma mulher. Outra ofensa às elites. Uma mulher que não era dócil e recatada como uma donzela de novela das seis ambientada no século XIX. Uma mulher firme, de uma firmeza que essas elites só admitem aos homens de sua própria classe.

Em determinado momento, esta faz concessões ao segmentos privilegiados, que nunca na verdade tiveram seus privilégios contestados. Coloca um representante do Deus-Mercado no poder.

As elites não mais aceitam acordos ou concessões. Querem tudo. A sucessora é derrubada. “Tchao querida” é o refrão golpista e misógino, nascido da deturpação de uma conversa telefônica. Uma conversação privada que, como tal, deveria ser respeitada.

Aqueles direitos, tão duramente conquistados, são destruídos, arruínados. A agenda imposta ainda antes do golpe por um congresso tido como o mais reacionário desde a nova constituição é de retrocesso de direitos: no campo moral e social.

Nenhum direito a mais, é o novo lema.

Mas para as elites ainda resta uma ameça. A volta do presidente-operário.

Como evitá-lo? Desmoraliza-lo? Não parece suficiente, diante de tantos escândalos daqueles que, nascidos nas elites, nunca são tocados, não importa o que façam.

O presidente-operário toma uma cachacinha, gosta de futebol, ama sua família. Até isso lhe atacaram e lhe tiraram. E ele não se rende. Como não odia-lo?

As elites comemoram sua condenação. Os indicadores do mercado especulativo elevam-se diante do anúncio por eles tão esperado. O Deus-Mercado vê fora do caminho o seu último obstáculo no processo de dilapidação e venda dessas terras.

No entanto, permanecem, apesar do sorriso cínico e mesmo da gargalhada, temerosas do porvir. Ele, confiante.

O que virá?

Do povo que ainda bestializado assiste a tudo, depende a resposta fundamental.

 

 

Redação

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