Diário da Peste 9


Essa noite tive um pesadelo interessante.

“Desisto de usar o Metrô porque muita gente está fazendo isso. Risco de contágio.

A caminho do meu destino percebo que já não conheço mais as ruas de São Paulo pelas quais estou perambulando. Envergonhado me recuso a pedir informações sobre o caminho que devo tomar.

Saio da avenida e subo por uma rua secundária. No final dela há uma área que parece ter sido uma praça mal cuidada. Do outro lado dela observo uma rua que me parece familiar.

O problema é que para atravessar a praça tenho que contornar a grade alta que está sendo levantada no meio dela pelos operários. Eles não prestam atenção em mim. Eu desvio deles tomando cuidado para não sujar os sapatos e a barra da calça nas pocinhas de lama que existem no local.

Ao chegar do outro lado percebo que estava enganado. Não conheço aquela rua mas sigo em frente, pois não ficarei mais perdido do que estou.

A rua termina abruptamente num abismo. No paredão escarpado que se eleva até as nuvens so outro lado algo está acontecendo. Não consigo ver direito, então pego o smartphone aciono a câmera e uso o recurso que aproxima a imagem várias vezes.

A escarpa está cheia de pessoas uniformizadas. É difícil dizer se elas estão trabalhando, fingindo trabalhar ou tentando fugir. No fundo do abismo uma pequena tropa de policiais vestindo armaduras escuras de kevlar se prepara para subir.

Quando os policiais se aproximam das pessoas uniformizadas um apito soa muito alto. Então, os operários, grevistas ou fugitivos, que estão em maior número, atacam os policiais.

A violência coletiva me incomoda, então volto a usar a câmera do smartphone sem o recurso ampliar. Tudo o que consigo ver com ajuda dela agora é a imensa escarpa disputada por dois formigueiros. Filmo os insetos durante alguns segundos e guardo o celular no bolso.

Uma policial jovem e bonita se aproxima de mim. Cuidado para não cair, você pode se machucar – diz ela. Aproveito essa demonstração de gentileza e pergunto como posso voltar para a avenida. Ela me conduz até uma escadaria há algumas dezenas de metros de onde eu estava.”

Quando esse pesadelo acabou outro diferente começou, mas ele era muito confuso e continha elementos de um texto curto humorístico que publiquei ontem. Portanto, prefiro não registra-lo.

É difícil interpretar o pesadelo que tive essa noite. Nele, a topografia de São Paulo é tão fantástica e sem sentido quanto o conflito que foi presenciado e registrado. A construção de um muro pode ser interpretada como a barreira intransponível que está sendo levantada entre minha residência, onde estou de quarentena, e a rua em que o COVID-19 pode circular. O cuidado para não sujar os sapatos na lama certamente devem ter algum significado, mas não consigo capta-lo. Medo de contágio?

O abismo entre o observador e a escarpa onde uma minúscula guerra está ocorrendo pode ter diversos significados. Alguns deles me parecem evidentes.

Nos laboratórios os cientistas trabalham como formiguinhas para desvendar os segredos da cura. A guerra que eles estão travando contra um inimigo menor e mais numeroso não pode ser vista pelo público, pois existe um abismo entre os produtores e os beneficiários da ciência. Esse abismo é quase tão grande quanto aquele que há entre cada ser humano e seu próprio sistema imunológico, que foi concebido naturalmente para travar guerras invisíveis contra invasores elusivos e impiedosos.

Além do combate ao COVID-19 uma outra guerra acontecendo no Brasil. Refiro-me àquela na qual estou engajado.

No campo jurídico em que atuo vários advogados, procuradores e juízes parecem sentir um prazer mórbido ao torturar o Direito e a Ciência. Eles usam a pandemia para dar demonstração públicas e profissionais de seus preconceitos religiosos, regionais, raciais e sociais. Alguns deles aproveitam o prestígio e a visibilidade para reafirmar sua devoção irracional ao führer bananeiro que tem feito tudo que não pode fazer para matar a maior quantidade possível de brasileiros pobres.

Quando o COVID-19 for derrotado a bestialidade jurídica continuará infectando o Sistema de Justiça e o Estado brasileiro. A única vacina contra essa doença seria uma improvável revolução hermenêutica.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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