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Monk transcende explicações, ao menos no meu caso. Sua música estranha, seus acordes fora do lugar e seus muitos silêncios embalam melodias lindas que se deixam perceber, despertando-me um carinho que apenas dedicamos aos filhos, a quem amamos apenas porque existem. “Round Midnight”, “Well You Needn’t”, “Five Blue Spots” são apenas alguns exemplos da sua peculiar criatividade. O documentário sobre sua vida, “Straight No Chaser”, revela a comovente
e dolorida comunhão entre o pianista e sua obra.
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Em “After Midnight”, Nat resgata o velho jazz, mas não hesita em dialogar com os pianistas da nova geração, como Bud Powell, que combinava a técnica sofisticada de Art Tatum com os espaçamentos de Monk. Sua linda gravação de “A Night in Tunisia” parece um Charlie Parker que trocou o saxofone pelo piano. A contida mão esquerda e os solos da direita inventaram o
moderno piano do jazz.
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Nat King Cole amadurecera, mas não havia terminado. Sua mulher, Maria, botou ordem nas contas e ele salvou velhos amigos. Frank Sinatra, deprimido após a separação de Ava Gardner, tentara o suicídio cortando os pulsos. A sua bela voz se fora. Nat não o deixou desanimar. Visitou-o e informou à Capitol Records, a gravadora que ele contribuíra decisivamente para transformar em grande: “O melhor de Frank ainda está por vir”. E Sinatra gravou seus antológicos álbuns conceituais, “Songs for Young Lovers” e “Songs for Swingin’ Lovers!”. Antes dele, apenas Nat tinha gravado discos em que as canções se entrelaçavam por um
motivo estampado no título, como registra David Epstein.
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O relativo esquecimento de Nat King Cole talvez se deva à sua última década de vida. O cantor amadurecido abandonou o piano criativo e se rendeu inteiramente à música convencional, aquela que enche teatros, mas não deixa saudades. Para piorar, exatamente nesse período o jazz vivenciava revoluções desconcertantes, inventando maravilhosas abordagens.
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A antropofágica música americana absorvia o que surgia nos rincões mais distantes com destemor e criatividade. Enquanto o bebop explorava improvisos a partir da harmonia, e não mais do tema melódico como até então, jovens sôfregos absorviam a influência da música dos mais diversos cantos. Havia de tudo: da música latina, como Dizzy Gillespie em “Manteca”; ao estranho, e lindo, andamento da melodia árabe, como Dave Brubeck no antológico “Take Five”.
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Composições inesperadas e sublimes, “Love Supreme”, de John Coltrane; improvisações modais, “Kind of Blue”, de Miles Davis; ou a liberdade das longas invenções comoventes a partir de temas populares, cujo exemplo mais conhecido talvez seja a gravação de “My Favorite Things”, também de Coltrane. O jazz de meados do século XX parecia não ter limites. E, no entanto, Nat, um de seus mais talentosos músicos, preferiu o lugar-comum. A sentença de relativo esquecimento parece ter sido a retribuição ao músico que apenas deixou vestígios do seu imenso talento.
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Na Grécia antiga, as tragédias se desenrolavam a partir de heróis que ultrapassavam os seus limites. No jazz moderno, porém, rejeitavam-se os músicos que respeitavam os limites. Do desregramento de tantos jazzistas, Nat parece ter cultivado apenas o descuido com sua saúde e com as pessoas do seu afeto. Teve um caso de amor no fim da vida que não merece detalhes.
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Já em meados dos anos 50, décadas de consumo de cigarro anunciavam o trágico fim. O sangue que espirrava revelava a destruição do corpo, ocultado pela impressionante elegância de Nat. Uma cirurgia salvou sua vida, mas não mudou seus hábitos. Em 1964, as dores tornaram-se insuportáveis. Câncer de pulmão e poucos meses de vida. Rei Cole aplainou seus
equívocos com sua mulher, Maria, a quem chamava de Skeez na intimidade. Foi visitar uma casa de praia na Califórnia onde sonhava passar o resto da sua vida com ela, a quem desejava resgatar. Frank Sinatra foi visitá-lo no hospital e passou o tempo todo falando sobre como iria parar de beber e de fumar para viver eternamente, além de mencionar
sua nova paixão, Mia Farrow, então com 19 anos de idade.
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Reis merecedores do título aceitam o trono e suas vicissitudes. Eles sabem dos seus equívocos e procuram se redimir cuidando dos demais. Os deslumbrados com o acesso à corte apenas falam de si mesmos e ignoram o sofrimento alheio. No fim de 1964, Maria tentou bloquear os repórteres quando Nat saía do hospital já bastante debilitado pela doença. “Não, Skeez, deixa tirarem as fotos”, murmurou Nat. Houve mais choro do que fotos.
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Marcos Lisboa é presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.
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Ouça aqui, 272 sucessos de Nat King Cole
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