Nat King Cole, que faria 100 anos, sabia música para impressionar qualquer época, por Marcos Lisboa

Nat King Cole, que faria 100 anos, sabia música para impressionar qualquer época

Por Marcos Lisboa | Para o Valor

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O jazz talvez seja o melhor exemplo da “angústia da influência” proposta pelo crítico Harold Bloom, a criação que se desenvolve pela relação conflituosa com os seus antecessores. Bloom escreveu sobre literatura, mas sua tese parece uma luva para o jazz, onde todo músico genial é um Édipo. Este texto celebra o jazz e Nat King Cole (1919-1965). Aprendi os fatos citados sobre a sua vida em duas fontes, a biografia escrita por Daniel Mark Epstein e o documentário “Afraid of the Dark”.

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Desde o fim dos anos 40, críticos e amantes do jazz rejeitavam a opção de Nat King Cole pelas canções românticas; ele reagiu com indignação e dizia preferir comover a maioria da população

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Nat King Cole morreu aos 45 anos de câncer. Fumava muito até mesmo para a época. Ele também sabia música para impressionar qualquer época. O piano tocado pelo negro (“nigger”) – ele utilizava a palavra que se tornou ofensa nos Estados Unidos – surpreendia pela delicadeza sofisticada e pelo ritmo contagiante.

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O homem magro, alto e incrivelmente elegante também cantava. Por vezes, deixava sua voz chegar um pouco fora do andamento, como um cavalheiro que abre a porta para os demais passarem à frente. Seu sobrenome era Coles. Segundo uma das versões, o apelido surgiu graças a uma canção que fazia referência ao “Old King Cole”; o trio que comoveria o jazz adorava improvisar a partir de velhas cantigas para crianças.

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Desde cedo, Nat, que estudou Rachmaninov, foi admirado como pianista. Adolescente, assistia a Earl (Conde) Hines, por vezes na rua em frente ao teatro. O negro pobre e filho de pastor nem sempre tinha dinheiro para pagar pelo ingresso. Com 15 anos, chegou mesmo a participar de uma batalha musical com seu ídolo. O consagrado conde, Hines, sabia das notas com uma velocidade impressionante, mas o jovem Nat sabia da sedução.

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Anos depois, Nat mostrou que podia ser artista de circo, gravando uma música em que tocava cerca de 40 notas precisas em 4 segundos, como contabiliza Daniel Epstein. Ao homem negro elegante e suave, porém, não convinha o estilo quase pirotécnico de Hines ou o virtuosismo emoldurado por muitos detalhes e complexidade de outro gigante da primeira metade do século XX, Art Tatum.

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Nat preferia a invenção melódica, mesclando elegância e graça em meio a um ritmo mágico. Com pouco mais de 20 anos de idade, prestou uma homenagem irreverente ao seu ídolo da adolescência. Em uma deliciosa gravação, a mão esquerda toca serenamente a melodia de “Rosetta”, de Hines. A mão direita, por sua vez, destrambelha um improviso inebriante.

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Desde cedo, Nat também conheceu o preconceito. Ele nascera no Alabama, o mesmo Estado que décadas depois processaria Martin Luther King por sua luta contra a segregação racial. Músico sedutor, cantou nos principais cassinos de Las Vegas. No começo, não lhe era permitido passar pelo saguão principal. Entrava pela área de serviço e depois do show ia dormir nos barracos reservados aos negros, na periferia da cidade.

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O magnífico trio que Nat liderou a partir de 1938, quando ele tinha apenas 19 anos, contava com Oscar Moore na guitarra e Wesley Prince no baixo acústico. Piano e guitarra se entrelaçavam como se tocados por um único músico. Foram necessárias duas décadas para que fossem superados pelas gravações memoráveis de Bill Evans e Scott LaFaro em “Sunday at the Village Vanguard/Waltz for Debby”, com a comunhão ainda mais surpreendente entre piano e baixo acústico na construção dos temas musicais.

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Suas muitas composições revelam um músico versátil, que ia do blues tradicional, “That Ain’t Right”, às composições que dialogam com os dilemas do seu tempo com graça e que se tornam perenes, como “Straighten Up and Fly Right”.

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Em 1942, Nat fez uma gravação memorável com Lester Young, no sax, e Red Callender, no baixo. O diálogo entre Nat e Young ilustram o melhor do jazz até então, com suas muitas variações a partir de um tema e entrelaçamento dos improvisos, em meio a muitas referências ao estilo de outros músicos, como Fats Waller e Hines.

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No jazz tradicional, a melodia original é o ponto de partida e de chegada de improvisações deliciosas, que lembram o clássico filme do período “O Mágico de Oz”, que começa e termina em Kansas, em preto e branco, mas no meio oferece um festival de cores em meio a aventuras surpreendentes. Kansas City, coincidentemente, foi um dos berços do jazz.

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Na segunda metade dos anos 40, estava claro que o trio teria vida curta. A voz de Nat cada vez mais dominava a sua música em canções que muitos críticos qualificavam como demasiadamente românticas. “Unforgettable”, “Nature Boy” e “Mona Lisa” tornaram-se canções do panteão americano, mas renegavam a arte do jazz.

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No fim dos anos 40, comprou uma imponente casa na Califórnia. Os vizinhos se mobilizaram para que fosse expulso, seu cão foi envenenado e frases racistas foram escritas no seu gramado. Nat não se abalou. Continuou no bairro, frequentando as reuniões dos moradores. Tentaram explicar-lhe que as boas pessoas da vizinhança simplesmente não queriam que indesejáveis se mudassem para o bairro. “Nem eu quero”, respondeu Nat. “E caso eu veja algum indesejável se mudando para cá, serei o primeiro a reclamar.”

 

Uma vez foi convidado por uma vizinha para tocar em uma festa. No dia seguinte, mandou a conta, para surpresa da anfitriã. Ele era um profissional, não um servo grato por ser aceito na sala de visitas. Nat foi atacado quando cantava no Sul dos EUA. Os jovens brancos demonizavam o cantor negro de sucesso. Eram muitos os argumentos delirantes, como que a vulgaridade da sua música e o seu animalismo corrompiam as crianças. Invadiram o palco na tentativa de sequestrá-lo. Foi salvo pelos policiais.

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Passado o susto e constatado que não havia danos maiores, voltou para cantar para os negros que o esperavam do lado de fora. Décadas depois, um dos policias ainda se espantava com o ato de violência dos jovens brancos vinculados a Ku Klux Klan: como se podia odiar tanto alguém que não se conhecia? Pouco depois do atentado, repórteres perguntaram-lhe se pediria proteção policial. “Não preciso de ninguém para me proteger”, respondeu com delicadeza e firmeza. Também afirmou posteriormente: “Deixo para os demais combaterem o racismo”. Foi severamente criticado pelo movimento negro.

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Nos anos 50, estrelou um programa de televisão em que recebia músicos para tocar e cantar com ele. Era uma das maiores audiências no seu horário, mas algumas regiões do Sul não admitiam um negro protagonista e interditaram a sua retransmissão local. Os anunciantes não resistiram à pressão.

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O negro que transbordava elegância, porém, não foi demitido. Resolveu terminar o programa e o fez com um discurso generoso em que agradeceu a todos que o assistiram. Na época, as principais agências de propaganda ficavam na avenida Madison, em Nova York. Nat King Cole comentou: “A avenida Madison tem medo da escuridão”.

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Desde o fim dos anos 40, os críticos e amantes do jazz rejeitavam a opção de Nat pelas canções românticas. Foi severamente criticado em sua turnê na Inglaterra. Nat reagiu com a indignação dos trabalhadores. Afirmava preferir comover a maioria da população. Afinal, havia contas a pagar, além de uma dívida imensa com o imposto de renda. “Críticos não compram discos. Eles os recebem de graça”, afirmou.

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Muitos podem se surpreender, mas há 70 anos era frequente tratar Nat e Frank Sinatra como os dois maiores cantores americanos, cantores de microfone, como se dizia. Ambos compartilhavam o estilo romântico e o fraseado perfeito, no caso de Nat conquistado ao longo de anos. Frequentemente, suas músicas eram orquestradas por Nelson Riddle. Por vezes, é inegável, Nat exagerava. “Blue Gardenia”, por exemplo, possui frases como “Love bloomed like a flower/then the petals fall”, adequada à melodia que pode provocar diabetes.

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O jazz, porém, não deixara o homem negro. Em 1956, Nat gravou a sua última obra-prima, “After Midnight”, epitáfio maravilhoso da velha tradição, naufragado pelas inovações do bebop e do hard bop que passavam a encantar os amantes da música inesperada. Charlie Parker, Dizzy Gillespie e Clifford Brown surpreendiam com seu andamento rápido, imensa criatividade e improvisos revolucionários.

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Cada um tem direito aos seus heróis, e os meus incluem Charles Mingus e Thelonious Monk. Mingus oscila entre a perturbante criatividade, como em “Wednesday Night Prayer Meeting”, à delicadeza comovente, como em “Goodbye Pork Pie Hat”, a sua despedida de Lester Young, que morrera pouco antes. Vale ouvir o melhor baixo do jazz em “Haitian Fight Song” e o delírio de “Moanin'”.

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Monk transcende explicações, ao menos no meu caso. Sua música estranha, seus acordes fora do lugar e seus muitos silêncios embalam melodias lindas que se deixam perceber, despertando-me um carinho que apenas dedicamos aos filhos, a quem amamos apenas porque existem. “Round Midnight”, “Well You Needn’t”, “Five Blue Spots” são apenas alguns exemplos da sua peculiar criatividade. O documentário sobre sua vida, “Straight No Chaser”, revela a comovente

e dolorida comunhão entre o pianista e sua obra.
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Em “After Midnight”, Nat resgata o velho jazz, mas não hesita em dialogar com os pianistas da nova geração, como Bud Powell, que combinava a técnica sofisticada de Art Tatum com os espaçamentos de Monk. Sua linda gravação de “A Night in Tunisia” parece um Charlie Parker que trocou o saxofone pelo piano. A contida mão esquerda e os solos da direita inventaram o

moderno piano do jazz.
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Nat King Cole amadurecera, mas não havia terminado. Sua mulher, Maria, botou ordem nas contas e ele salvou velhos amigos. Frank Sinatra, deprimido após a separação de Ava Gardner, tentara o suicídio cortando os pulsos. A sua bela voz se fora. Nat não o deixou desanimar. Visitou-o e informou à Capitol Records, a gravadora que ele contribuíra decisivamente para transformar em grande: “O melhor de Frank ainda está por vir”. E Sinatra gravou seus antológicos álbuns conceituais, “Songs for Young Lovers” e “Songs for Swingin’ Lovers!”. Antes dele, apenas Nat tinha gravado discos em que as canções se entrelaçavam por um

motivo estampado no título, como registra David Epstein.
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O relativo esquecimento de Nat King Cole talvez se deva à sua última década de vida. O cantor amadurecido abandonou o piano criativo e se rendeu inteiramente à música convencional, aquela que enche teatros, mas não deixa saudades. Para piorar, exatamente nesse período o jazz vivenciava revoluções desconcertantes, inventando maravilhosas abordagens.

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A antropofágica música americana absorvia o que surgia nos rincões mais distantes com destemor e criatividade. Enquanto o bebop explorava improvisos a partir da harmonia, e não mais do tema melódico como até então, jovens sôfregos absorviam a influência da música dos mais diversos cantos. Havia de tudo: da música latina, como Dizzy Gillespie em “Manteca”; ao estranho, e lindo, andamento da melodia árabe, como Dave Brubeck no antológico “Take Five”.
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Composições inesperadas e sublimes, “Love Supreme”, de John Coltrane; improvisações modais, “Kind of Blue”, de Miles Davis; ou a liberdade das longas invenções comoventes a partir de temas populares, cujo exemplo mais conhecido talvez seja a gravação de “My Favorite Things”, também de Coltrane. O jazz de meados do século XX parecia não ter limites. E, no entanto, Nat, um de seus mais talentosos músicos, preferiu o lugar-comum. A sentença de relativo esquecimento parece ter sido a retribuição ao músico que apenas deixou vestígios do seu imenso talento.

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Na Grécia antiga, as tragédias se desenrolavam a partir de heróis que ultrapassavam os seus limites. No jazz moderno, porém, rejeitavam-se os músicos que respeitavam os limites. Do desregramento de tantos jazzistas, Nat parece ter cultivado apenas o descuido com sua saúde e com as pessoas do seu afeto. Teve um caso de amor no fim da vida que não merece detalhes.
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Já em meados dos anos 50, décadas de consumo de cigarro anunciavam o trágico fim. O sangue que espirrava revelava a destruição do corpo, ocultado pela impressionante elegância de Nat. Uma cirurgia salvou sua vida, mas não mudou seus hábitos. Em 1964, as dores tornaram-se insuportáveis. Câncer de pulmão e poucos meses de vida. Rei Cole aplainou seus
equívocos com sua mulher, Maria, a quem chamava de Skeez na intimidade. Foi visitar uma casa de praia na Califórnia onde sonhava passar o resto da sua vida com ela, a quem desejava resgatar. Frank Sinatra foi visitá-lo no hospital e passou o tempo todo falando sobre como iria parar de beber e de fumar para viver eternamente, além de mencionar
sua nova paixão, Mia Farrow, então com 19 anos de idade.

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Reis merecedores do título aceitam o trono e suas vicissitudes. Eles sabem dos seus equívocos e procuram se redimir cuidando dos demais. Os deslumbrados com o acesso à corte apenas falam de si mesmos e ignoram o sofrimento alheio. No fim de 1964, Maria tentou bloquear os repórteres quando Nat saía do hospital já bastante debilitado pela doença. “Não, Skeez, deixa tirarem as fotos”, murmurou Nat. Houve mais choro do que fotos.

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Marcos Lisboa é presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.

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Ouça  aqui, 272 sucessos de Nat King Cole

 

Redação

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