A sociedade, o estado repressivo e a síndrome de Estocolmo

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Por Paulo Silas Taporosky Filho e Ludmila Ângela Müller

No Justificando

Não é fácil pensar na possibilidade de a sociedade como um todo ser acometida por algum tipo de transtorno. Mas é inegável o fato de que não se está diante de uma sociedade saudável. O pedido desenfreado por cada vez mais leis e punições severas, juntamente com o acionamento da Justiça de maneira, muitas vezes, leviana, demonstra que as pessoas não estão conseguindo “dar conta” da demanda de diversos aspectos sociais, demanda essa que se encontra em constante transformação e evolução, e que acaba sendo repassada para um terceiro que detém o poder.

Mesmo assim, ainda nos dias atuais, é comum imaginar doenças físicas ao se pensar em alguém que não está em seu “estado saudável”, esquecendo o aspecto sistêmico do ser humano e ignorando que corpo e mente não são dissociáveis. Sabendo que algumas síndromes desenvolvem-se a partir de acontecimentos específicos, é possível lembrar uma bastante conhecida no mundo jurídico: a Síndrome de Estocolmo.

De acordo com o Dicionário de Psicologia da APA (American Psychological Association)[1], esse conjunto de sintomas é caracterizado por uma resposta tanto mental quanto emocional em que um prisioneiro – um refém, por exemplo – apresenta lealdade, e até mesmo afeto, pelo seu próprio captor. A partir disso, pode existir uma visão distorcida daqueles que oferecem ajuda, sendo estes tomados como inimigos, já que a percepção da realidade está confusa.

Nestes casos, sendo o captor aquele que detém o poder de “vida ou morte” do prisioneiro, este acaba por desenvolver uma dependência do primeiro, como forma de sobrevivência. Mas se, inicialmente, existia o caráter de defesa, com a progressão da crise ele torna-se uma reação de cópia e de costume (DE SOUZA, 2010)[2]. Ou seja, numa relação que já coloca um em papel de submissão ao outro, o detentor do poder “opta” por manter a vida do indivíduo, criando, assim, a percepção de gratidão, fidelidade e até mesmo de carinho pelo captor.

Levando isso em conta, para além da constatação prática da mencionada síndrome na ilustração do refém/captor, aponta-se aqui para a própria sociedade na condição de refém, enquanto um Estado repressivo figurando como o captor, observação esta não muito distante daquela que já foi feita por Freud[3].

Foucault[4] evidenciou com profundidade a questão dos métodos e formas de punição já praticadas pelo Estado, quando em sua famosa obra discorreu sobre a história de algumas épocas e o modo com o qual o “combate aos desvirtuados” era travado. Aliás, os horrores que existiam (e alguns ainda existem) nos meios de perseguição e punição aos ditos criminosos não são novidade. “Confissões” obtidas mediante tortura, procedimentos secretos, ausência de garantias ao acusado e execuções de penas sumárias são somente alguns dos problemas que já pairaram sobre as maneiras de combate ao crime. Não que tais problemas cessaram. É que atualmente não há o aval do Estado para a prática daqueles métodos mais degradantes. Ao menos na teoria.

Notório também é o fato de que muitas e árduas foram as lutas para que os mínimos direitos e garantias do cidadão fossem resguardados, devidamente previstos em lei e plenamente assegurados. O Direito Penal visto não somente como meio de proteção de bens jurídicos, mas também como limitador de arbítrio e garantia. A Constituição prevendo um extenso rol de direitos e garantias. Enfim, a barbárie desenfreada do Estado gradativamente dando lugar ao bom senso e ao respeito. Em certo tempo, o refém despertou da condição em que se encontrava, quando se deu conta dos grilhões que o mantinha cativo e dos açoites que recebia. Deu basta quando passou a exigir de seu sequestrador a sua liberdade, cuja qual aos poucos foi sendo conquistada.

Entretanto, infelizmente os sintomas da tal Síndrome de Estocolmo passaram a se fazer presentes neste mesmo refém. As garantias conquistadas passaram a ser sinônimo de uma suposta impunidade. Os Direitos Humanos passaram a ser taxados como “direitos de bandido”, quando o refém passou a clamar pela extirpação destes. Para piorar, o cativo iniciou movimentos em prol da supressão de garantias, bradando por castigos mais longos e severos, simpatizando com execuções sumárias eventualmente praticadas pelo captor e pedindo mais. Passou a ver aqueles poucos que lutam e buscam minimizar as ofensas praticadas pelo sequestrador como maus elementos e que deveriam tais blasfemos “levar para casa” todo o refém subjugado que o insurgente “tivesse dó”. Enfim, o capturado acabou por esquecer todas as atrocidades anteriormente sofridas, achando inclusive que atualmente apanha pouco de seu opressor, quando assim passou a ter afeto pelo seu captor, zelando não somente por sua manutenção, mas almejando também um fortalecimento e aumento de poder para este.

E assim, tomada por esta síndrome, a sociedade vem cedendo espaço para o direito penal do inimigo, descrito por Airto Chaves Junior e Fabiano Oldoni como “uma doutrina que restringe o alcance dos direitos e garantias fundamentais, previstas constitucionalmente”[5]. Curiosamente a sociedade clama por opressão, sem que se dê conta das terríveis consequências de tal pedido. O captor promete segurança em troca de supressões de liberdade e de algumas garantias, assegurando ao refém uma batalha implacável contra os execráveis, para que tudo fique bem ao “homem médio”. Como narram Alexandre Morais da Rosa e Augusto Jobim do Amaral, tal promessa, em tom de discurso inflamado, “seduz ao prometer à massa que vive numa insegurança imaginária a tão almejada segurança, especialmente de neuróticos”[6], ou seja, o captor arrebata o coração do refém com todo o seu galanteio pragmático-utilitarista, contribuindo para que o oprimido se apaixone pela barbárie e clame por mais, quando, por assim ocorrer, “um fervor punitivo invade as sociedades democráticas para além dos palácios da justiça”[7].

Percebe-se aí uma certa alienação da realidade, uma falta de reflexão acerca daquilo que se é exigido, pois não considera o que há por trás de tais pedidos. A relação mantida entre sociedade e um Estado repressivo tende a ser de dependência, onde um retroalimenta as demandas do outro, fazendo com que se esqueça de um fato básico: sociedade e Estado não devem ser consideradas duas instâncias em polos diferentes, mas dois elementos que caminham juntos, dentro de um mesmo sistema.

Deste modo, constata-se que a sociedade sofre de uma terrível moléstia, a saber, a Síndrome de Estocolmo, doença esta que resulta em drásticas consequências para todos os cidadãos. A dependência que abre espaço para a manipulação e para a aceitação de medidas sem questionamento, bem como o rápido esquecimento de acontecimentos tidos como repressivos.

Os sintomas estão aí. Mais do que evidentes. Resta aguardar para que este refém de um sistema rumo à opressão cada vez maior se dê conta disto (o doente tem que aceitar que está doente), torcendo para que os viciados em punição se tratem naquele “Rehab” proposto por Alexandre Morais da Rosa e Salah  H. Khaled Jr.[8].

 

Paulo Silas Taporosky Filho é Advogado, Especialista em Ciências Penais, Pós-graduando em Direito Processual Penal e Membro da Comissão dos Advogados Iniciantes da OAB/PR.
Ludmila Ângela Müller é Psicóloga especialista em Psicologia Jurídica

[1] VANDENBOS, Gary (org.). Dicionário de Psicologia. Porto Alegre: Artmed, 2010.
[2] DE SOUZA, Wanderley M. Negociação de reféns: sistematização e manejo das ações do negociador no contexto da segurança pública. São Paulo: Editora Ícone, 2010.
[3] FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Cultura. Tradução de Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM, 2010.
[4] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 39ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
[5] CHAVES JUNIOR, Airto. OLDONI, Fabiano. Para Que(m) Serve o Direito Penal?: uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 18
[6] ROSA, Alexandre Morais da. AMARAL, Augusto Jobim do. Cultura da Punição: A Ostentação do Horror. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 98
[7] ROSA, Alexandre Morais da. AMARAL, Augusto Jobim do. Cultura da Punição: A Ostentação do Horror. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 53
[8] ROSA, Alexandre Morais da. KHALED JR., Salah H. In Dubio Pro Hell: profanando o sistema penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 55.

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

5 Comentários

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  1. Há uma ínfima “elite” que está destruindo a humanidade…

    … e o planeta para acumular riqueza.

    Para eliminar limites e continuar acumulando, estes zilhardários inescrupulosos precisam de mecanismos de controle cada vez mais brutais.

     

     

     

  2. A sociedade, o estado repressivo e a síndrome de Estocolmo

    Eu não realmente quem está certo. Se os “teóricos” ou se os “que vivem a realidade”.

    Mais ou menos o que presenciei na educacão quando dava aula pro ensino básico e fundamental. A estrutura da escola tentando se adequar ao que o núcleo de educação pregava. Então tínhamos de uma lado os “teóricos” representados pelos educadores e pensadores, aqueles que liam bastante sobre o desenvolvimento da educação. E na outra ponta os que viviam o dia a dia com os alunos. Então presenciava no conselho de classe professores sem entender o que estava acontecendo. – Como passaram o aluno “Fulano” por conselho se ele ainda não sabe ler? A professora de Português preocupada com o futuro do aluno. A justificativa era de que uma matéria só não reprovava o aluno. E de que mais adiante ele “teria” um estalo e aprenderia os conteúdos.

    Tive um colega advogado que ia até dentro da delegacia conversar com os presos também diante das grades. Os presos ficavam surpresos pela proximidade.

    É o que me faz pensar. Acredito mais em teses defendidas com pessoas que estiveram próximas aos problemas. Ao invés disso colocam inúmeras citações de autores como se somente isso fosse dar respaldo científico e veracidade.

     

  3. o que é preciso é vigiar os

    o que é preciso é vigiar os detentores do poder economico,

    que tudo podem

    – os financeirizadores da economia,

    os grandes monopólios

    e oligopólios,por exemplo.

  4. Nova Ordem Mundial

    e que um rei governará sobre elas.

    união com a “nova ordem mundial”

    anseio por uma paz negociada.

    Quando andarem dizendo: Paz e segurança, eis que lhes sobrevirá repentina destruição,

     

    Qto ao anti americanismo, pode-se dizer que é um ressentimento que não leva a mudança alguma, ou por outro lado, apenas reforça o imperialismo, diante dos atos insanos praticado contra o império, pelos fundamentalistas e pelos radicais dos mais diversos matizes.

    Através da História sabemos que muitas nações têm procurado sobrepor-se a todas as outras nações. Hoje isso é muito evidente nos Estados Unidos. Os americanos consideram que os EUA são uma nação especial. A maioria dos americanos reivindica que os Estados Unidos são a maior nação da história do mundo. Muitas nações antes deles agiram da mesma maneira, mas a poeira de suas ruínas testemunha contra elas. Porem, não se sabe qdo, como e se vai acontecer realmente novamente a decadência dos EUA, e a ascensão de uma nova potencia mundial.

    .Não temos rei, senão César!” Todo o peso da afirmação dos antepassados, refletindo o desejo de serem parte da família das nações, de serem como qualquer outro povo, atingiu, então, a realização: “…Não temos rei, senão César!” I O mundo ainda será confrontado com essa afirmação quando as nações da terra se ajuntarem para batalhar contra o caos social e a insanidade dos radicais!

    Parece que a única solução em relação à estabilidade social no mundo é seguir o rumo de uma paz negociada. Apesar dos confrontos, das inumeráveis guerras, dos atos insanos dos radicais e dos fundamentalistas, finalmente não restará outra alternativa. A possibilidade do aumento de comércio através das fronteiras dos países é muito tentadora, e não há dúvida de que a economia mundial continuará a crescer fortemente.

    Para que aconteça a ruptura definitiva do velho mundo e que uma nova ordem mundial seja estabelecida, surgindo um governo forte, centralizador e ditatorial, basta o gesto lunático de algum grupo terrorista, trazendo o pior, e sabe-se que se alguma coisa pode dar errado, certamente esta coisa acontecera.

    Com efeito, todas as circunstancias para a ruptura e a consagração da iniquidade já opera entre as nações, e aguarda que somente seja afastado a ultima esperança da ordem em cada Nação. O aparecimento de um governo centralizador e ditatorial, com todo o poder, parece ser inevitável, mesmo porque as pessoas vitimadas pela doença social que este tópico trata como uma anologia da síndrome de Estocolmo, não desejam a verdadeira cura, que diminuísse as diferenças e trouxesse realmente uma justiça social. Por este motivo, o erro teria vida longa e a mentira o credito que sustentaria a nova ordem mundial.

    A obra desta nova ordem será bem-sucedida através do engano e, segundo, a rejeição à oferta de uma verdadeira justiça social é o motivo pelo qual as pessoas crerão numa mentira.

  5. Os banqueiros e industriais
    Os banqueiros e industriais norte-americanos e europeus que causaram a crise de 2008 ainda em curso foram salvos com trilhões de dólares e euros estatais. Isto não é síndrome de Estocolmo?

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