A etnografia no centro da magia da cultura popular negra da Bahia

Obra revisita estudos desenvolvidos por quatro antropólogos estrangeiros em Salvador

O antropólogo norte-americano Melville Herskovits, cujos estudos são abordados no livro. | Fotos: Independent Lens (Reprodução) | Edição de imagem: Alex Calixto | Paulo Cavalheri

do Jornal da Unicamp

A etnografia no centro da magia da cultura popular negra da Bahia

por Leo Navarro 

A obra Estação etnográfica Bahia: a construção transnacional dos Estudos Afro-brasileiros (1935-1967), escrita pelo sociólogo e antropólogo Livio Sansone, acaba de ser lançada pela Editora da Unicamp. Nela, o autor revisita as principais teorias raciais desenvolvidas na cidade de Salvador (BA) a partir da década de 1930, baseando-se nos estudos de quatro antropólogos estrangeiros: o casal Frances e Melville Herskovits, Edward Franklin Frazier e Lorenzo Turner. Seduzidos pela cultura popular negra da cidade, os quatro pesquisadores foram essenciais para o avanço dos estudos afro-brasileiros. Leia abaixo a entrevista com Sansone, atualmente professor titular do Departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Jornal da Unicamp – No livro, o senhor menciona que a cidade de Salvador possuía uma magia. O que distinguia a cultura popular negra de Salvador da registrada em outras cidades brasileiras?

Livio Sansone – As cidades têm aura. Nos anos 1940, Salvador tinha uma aura própria que certamente se caracterizava por ser o produto de uma cidade, em sua grande maioria, negra onde parecia possível sonhar com um mundo racialmente misturado ou onde as relações e hierarquias raciais não resultassem, necessariamente, em crescente negação do outro ou até ódio, purgas étnicas e massacres. A cordialidade desigual das festas populares da cidade dava para os forasteiros a impressão de estarem em uma cidade onde algum tipo de harmonia racial era uma realidade – algo tragicamente necessário em um mundo que começava a ser triturado pelos horrores da Segunda Guerra Mundial. A grande demanda por paz e tolerância entre intelectuais do mundo inteiro, suscitada pela guerra, pelo racismo nazista, e também pela segregação racial nos Estados Unidos, precisava de uma cidade com a qual sonhar, de uma utopia. Isso teve uma função importante e humanizadora, mas contribuiu para “tropicalizar” e infantilizar a cidade da Bahia e para fortalecer o mito de que lá se desse algum tipo de democracia racial.

JU – O que tornava o chamado Novo Mundo atraente para estudiosos da época?

Livio Sansone – O assim dito Novo Mundo sempre foi fonte de inspiração para intelectuais, artistas e políticos do Velho Mundo. Em um complexo jogo de espelhos, procuravam no Novo Mundo tanto elementos do próprio passado como indícios do futuro próximo. O conhecimento antropológico, com sua priorização da etnografia como método, cresce dentro desse processo, que também engendrava uma crescente curiosidade e sensibilidade com relação ao outro, ao exótico e ao tropical.

JU– Por que o senhor selecionou esses quatro pesquisadores para analisar em seu livro?

Livio Sansone – Os quatro protagonistas do livro, dois brancos e dois negros, tiveram um papel central no estabelecimento da agenda de pesquisa pós-guerra, tanto dos estudos afro-brasileiros como dos estudos afro- -americanos e africanos nos Estados Unidos. Eles, ademais, focaram não somente a Bahia, mas também um conjunto específico de informantes, o povo de santo de um seleto número de terreiros. Embora fossem movidos por agendas teórica e politicamente diferentes, os quatro uniam-se pelo compromisso antirracista e pelo desejo de incentivar os intercâmbios e a compreensão mútua entre o Brasil e os Estados Unidos.

JU – Como o senhor vê a produção intelectual brasileira, em relação à cultura negra, no Brasil de hoje? Como sua obra pode ajudar a fortalecê-la?

Livio Sansone – Nas últimas três décadas tem havido um grande crescimento da qualidade e da quantidade da pesquisa sobre hierarquias raciais e produção cultural negra no Brasil. O país também mudou muito e, hoje, há muito mais consciência da necessidade de combater a desigualdade racial, assim como há maior aceitação das medidas inspiradas pelas ações afirmativas. Espero poder contribuir com essa justa luta mostrando como, no decorrer do tempo, se deram tanto continuidades como rupturas no que diz respeito à biografia e às agendas dos pesquisadores. Espero, dessa forma, ter contribuído com a história social dos estudos afro-brasileiros, mostrando também o quanto eles, embora fossem representados como associados ao “local”, na realidade sempre tiveram contato também com agendas transnacionais.

JU – Quais foram as principais adversidades encontradas ao revisitar e organizar duas décadas de pesquisas produzidas?

Livio Sansone – Tive duas ordens de problemas. Por um lado, pesquisar agendas e trajetórias de pesquisadores (prevalentemente) norte-americanos a partir de Salvador – uma cidade situada no Sul do Sul Global – representa em si um desafio, devido à falta de bons arquivos e bibliotecas locais, assim como uma certa precariedade da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb). Por outro lado, o pouco tempo disponível para pesquisa, as distâncias e a dificuldade em angariar recursos para poder viajar rumo aos Estados Unidos e à França, onde se encontram os arquivos mais importantes, têm me obrigado a basear minha pesquisa em curtas e superintensivas missões de pesquisa, intercaladas por longos períodos aproveitados para estudar e sistematizar os documentos. Preciso acrescentar que minha pesquisa não teria sido exequível sem a ampla rede de colegas, distribuídos em muitas universidades, sobretudo do Norte Global, que, com grande abnegação e generosidade, têm compartilhado comigo documentos, matérias e publicações. Devo muitíssimo a essa generosidade digital!

Título: Estação etnográfica Bahia 

Autor: Livio Sansone

Edição: 1a

Páginas: 320

Dimensões: 16 cm x 23 cm

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Redação

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