Emoção e ação no ativismo de rede

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Enviado por hugo1

Do Blog do Sakamoto

Filhote de beagle ou criança escrava: quem foi mais longe na sua timeline?

Leonardo Sakamoto
 
Uma amiga fez um comentário no Facebook, reclamando que a libertação de cachorrinhos gera uma comoção pública muito maior que a de pessoas em situação análoga à de escravo. Ela se importa com os animais, claro, mas entende que houve um descompasso na divulgação do caso dos beagles resgatados em São Roque (SP) que diz muito sobre a gente.

Vamos por partes, até porque este é um daqueles posts em que as pessoas não lêem, tiram conclusões a partir do que não leram e saem xingando o blogueiro em cima do que ele não escreveu. Na internet, aliás, esse é comportamento padrão.

Particularmente, sempre me irritei com testes em animais para o desenvolvimento de cosméticos, produtos de beleza em geral. Ou encontra-se outra forma de verificar a eficácia e os efeitos colaterais ou que se use menos. Afinal, há marcas que conseguem desenvolver produtos sem esses testes.

Com relação ao desenvolvimento de medicamentos, precisamos substituir o que for possível por softwares de simulação, reduzir o uso de cobaias, refinar os experimentos e educar pesquisadores e estudantes da área para tornar a participação de animais cada vez menos necessária. E os testes não podem ser feitos sem a devida justificava junto a um comitê de ética médica, sendo acompanhados para garantir a integridade do animal e o mínimo de desconforto possível. Falei com alguns pesquisadores que disseram que a meta é zerar os testes mas, no momento atual da medicina, isso é impossível. Importante, contudo, é construir um caminho para que testes em animais sejam desnecessários e proibidos.

Mas o tema do post não é esse. Não estou discutindo se ações em defesa dos animais são válidas ou não, pois elas são. Também não estou sugerindo que o sentimento sincero de dedicação a uma causa vale mais que a outra (não sei porque estou fazendo esse “porém”, tem gente que vai ignorar que ele foi escrito mesmo…) E, sim, o comportamento da sociedade diante de tudo isso.

Choca ver imagens de animais bonitinhos que eram cobaias em experimentos, até porque a sociedade não sabe e não quer saber quais processos ocorrem para manter o seu nível de conforto e qualidade de vida? Sim, as pessoas ficam chocadas. Animais com pelos raspados, sem olhos, dopados, mortos e congelados foram sendo reproduzidos pela rede de forma viral. Muitos eram filhotes.

Ações como a retirada de animais em São Roque são coisa rara de se ver, é claro. Portanto, há o fator novidade, enquanto desgraça envolvendo seres humanos, você tem todo o dia. Já cansei de participar de operações de resgate de escravos em que foram encontrados pessoas sem partes do corpo, perdidas no serviço com a motosserra, gravemente doentes, desnutridas e desorientadas. Reportagens de TV já mostraram até corpos de pessoas assassinadas tentando fugir que foram exumados pela polícia. Não atingiram a mesma comoção.

Filhotes são indefesos e adultos podem cuidar de si mesmos, alguém pode justificar. Mas mesmo nos resgates de crianças escravas, eu não vejo o mesmo impacto da divulgação ou o mesmo nível de indignação. A história da crianç que perdeu um olho trabalhando na colheita de cacau na Amazônia. Ou das meninas de 12 anos que eram exploradas sexualmente em bordeis sujos em beira de estrada. Ou ainda os adolescentes que morreram soterrados ao trabalhar em mineração no interior do Nordeste. Todas o casos foram trazidos a público e nenhum ganhou a mesma empatia. Pelo contrário: pela internet, após a veiculação das reportagens na TV, jornais e sites, lia-se coisas do tipo “ah, mas é melhor que elas estivessem trabalhando do que roubando”.

Temos afinidade com aquilo que nos é mais próximo ou que desperta determinados sentimentos. Entendo que libertação de 150 escravos que sangravam na Amazônia para produzir boi que muitos nem sabem como vira bife choca menos que o resgate de dez costureiros que produziam a roupa que eu visto todo o dia. Mas todos sabem o que é uma criança. É duro, portanto, imaginar que ela não desperte sentimentos nos que absorvem a informação. Talvez por banalização dessa violência. Talvez por um ato de fuga consciente ou inconsciente diante da crença na incapacidade de fazer qualquer coisa para resolver o problema.

Mas a possibilidade de reação existe, tanto que minha timeline ferveu de fotos de beagle.

Talvez a resposta resida no fato de que uma criança nua, exausta e com olhar perdido numa cama na beira de estrada depois de uma hora de sexo forçado não é uma coisa fofa como um bichinho com olhar do Gato de Botas, do Shrek. Pelo contrário, para muitos é tão repugnante a ponto de transferirem a culpa pelo ocorrido para a própria vítima que “se deixou ficar naquela situação deplorável”.

Somos programados para que coisas fofas despertem sentimentos de proteção, de cuidado, o que ajuda muito para manter a integridade de seres humanos recém-nascidos. Bebês e animais fofos despertam a vontade de estar perto deles. Aliás, a única estratégia de defesa diante do mundo que eles têm é serem fofos.

Repito, este texto não é sobre experiências com beagles, exploração de escravos ou as crianças sem infância. Mas como reagimos a tudo isso.

Meu desejo não é que as pessoas deixem de se indignar diante do que considerem ser qualquer injustiça. Pelo contrário, que consigamos fugir de nossas programações mais básicas e acordemos de nossa acomodação e percebamos que há injustiças que passam diante de nossos olhos e não as vemos como um problema. A indignação por uma causa não exclui a outra e jogar para baixo do tapete os incômodos que também dizem respeito a todos nós, não fazem eles desaparecerem. Manifestar-se pode, ao contrário, significar a mudança da situação ou a manutenção de tudo como está.

Sei que não é fácil criar as condições para que algo desperte compaixão e, de lá, ação. Mas se não puder ser pela emoção, que nos dediquemos ao outro pelo  lógica e a razão.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

3 Comentários

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  1. Pela 1ª vez elogio os

    Pela 1ª vez elogio os Anonymus (Black Blocks) pelo resgate dos animais.

    Vi gente na internet (redes sociais) criticando os ativistas (a minoria)  encarnando os Almeidinhas que se informam apenas pela grande mídia e repetindo esses chavões (Por quê não cuidam de crianças abandonadas???), os mesmos que chamam o Bolsa-família de esmola e que incentiva a vagabundagem…

  2. Para onde estamos

    Para onde estamos caminhando?

    Caso Royal: Perícia não encontra registro de maus tratos nos animais

    E agora? E essas pessoas  que invadiram e retiraram 170 cães em nome de uma causa particular? E  a socialite paulista que liderou o movimento, o que tem a dizer? Saberá a dondoca mais do que os biólogos , veterinários e técnicos que cuidavam dessa questão de perto?

    E ainda, na carona disso e pra não perder o gancho, o que dizer da invasão no treino do Vasco que colocou em risco sim a vida dos atletas?

    E se essa moda pega? Suponhamos que eu seja um cinéfilo inveterado, o atendente da locadora sugere aquele  filmaço, se não concordei com ele e o filme é de amargar eu vou lá e desconto minha indignação  quebrando a vidraça do estabelecimento?

    Quem vai mensurar isso, meu Deus? Quem poderá arbitrar em cima da “dor alheia” provocada pelo outro, seja ela uma pessoa, um grupo ou uma instituição?

    Vamos virar todos Michael Douglas quando resolvermos a hora de ter o nosso Dia de fúria?

    Que sociedade é essa que estamos formando? Qual o limite entre liberdade, noção de justiça e violência? 

    Então agora é assim que vai vigorar no país das novas manifestações burguesas: Se um  ou mais indivíduos se sentirem  prejudicados de alguma forma, por um juízo extremamente subjetivo, a solução será partir para o ataque, invasão, depredação, e porrada ?

    Por favor, vamos cessar essa onda alucinada de violência enquanto é tempo. Para onde estamos caminhando?!

    Vamos voltar a era medieval? Resolvendo todas as nossas querelas , no pau , na pedra e no confronto?!

    Eu fico muito espantado com isso tudo. Com esse conceito de liberdade que está vigorando aqui no Brasil do capitalismo tardio e mal copiado, o individualismo extremo agora está sendo trocado pela lei do juízo próprio que se arvora no direito de fazer justiça pelas próprias mãos?

    Isso é muito perigoso, vamos parar, ouvir a voz da sensatez, antes que uma “consciência coletiva” perigosa se forme de vez e nos conduza a marchar todos juntos, de braços dados, para o precipício.

     

  3. Justiça com as próprias mãos

    Ola,

    Eu acrescentaria mais um ingrediente no debate.

    Parece existir um sentimento de que cada um pode e deve fazer justiça por conta própria. Como se cada devesse fazer o mundo moldar-se ao seu próprio “bom-senso”. Nem que para isto seb preciso usar da força.

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