O feminismo instrumentalizado para ilusionismo da dominação, por Dalmoro

Na França, Elisabeth Badinter já criticava radicalismo de estadunidenses limitando a liberdade de escolha da mulher 

Elisabeth Badinter Foto: AFP

Por Dalmoro

Acompanho a celeuma feminista a partir do manifesto das artistas e intelectuais francesas (http://bit.ly/2r5mMgI). Em minha leitura, o texto possui dois momentos bem específicos: um de proposição de debate e outro de denúncia do movimento feminista hegemônico (que, creio, tem sua hegemonia pelo capital simbólico de suas defensoras, não por ser majoritário). 

O debate proposto não é novo. Na mesma França, há pelo menos quinze anos a feminista Elisabeth Badinter o faz, criticando o puritanismo do feminismo (dito) radical estadunidense – que desde a década de 1980 fecha fileiras com a ala conservadora do partido Republicano -, a limitação à liberdade de escolha da mulher (na desqualificação da opção pela profissão de prostituta, por exemplo), o essencialismo feminino e a acusação genérica contra o homem, a mulher posta na condição permanente de criança e vítima (quase um AA de gênero)… Questões velhas, mas nunca discutidas a sério. Nem serão agora – pois não é do interesse das estruturas de poder (machista) da sociedade nem do feminismo estridente que pretende se opor a ele. 

O feminismo hegemônico – que costumo identificar como academicista, branco, endinheirado, de inspiração estadunidense (com Dwokin e MacKinnon como mães fundadoras) – tem seus mandamentos inquestionáveis (divinos?) e, dentro da tradição acadêmica, se recusa a fazer uma auto-crítica. Pior, baliza sua ação política dentro campo da verdade científica (sabemos o que resulta quando verdade e política se encontram); se tornou uma espécie de religião laica – com muitos elementos de uma teologia rasteira, por sinal -, que preza pelo purismo (jamais fomos modernos?) e cala agressivamente dissonâncias. Tentei algumas vezes levantar essa problematização da Badinter com amigas e conhecidas feministas, as respostas foram sempre duas: sou homem, não tenho direito a opinar (assim como um muçulmano não tem direito a falar de Cristo, por mais que Cristo esteja na doutrina muçulmana, ainda que em outro papel), ou então, se lembro que só estou repetindo o que diz uma mulher feminista, argumentam que Badinter está superada e ultrapassada faz tempo – sem explicar quem teria dado esse veridicto de superação da pensadora. Poucas vezes consegui debater a sério sobre o assunto com uma mulher que se declare feminista – já consegui várias com mulheres que se dizem não feministas ou contra as feministas, apesar das posturas feministas (se se exclui a ala sectária).

O outro aspecto do texto, a provocação sobre a cantada, pode ser lido como uma denuncia do feminismo quanto à interdição do debate, a qualquer questionamento de suas posições e táticas. Seria o ponto para chamar a atenção para o debate propriamente dito, apresentado no início do texto, romper com a desqualificação a priori dos argumentos: construímos um breve silogismo e chegamos a esta conclusão, aparentemente lógica: onde estão as falhas das premissas? Mas a interdição é tamanha que o debate ficou completamente centrado se o homem teria o direito à cantada ou não – sem questionar, sequer, se não deveria a mulher ter direito também, se é que ela não faz; de qualquer forma, essa é uma questão menor no manifesto. 

Na minha linha do tempo do Fakebook, nosso zeitgeist, o espírito do nosso tempo, este de Temer, Moro, MBL, Bolsonaro, Trump e que tais, se mostrou nas mulheres que comentaram o manifesto ou sobre os homens que o divulgaram. É estreito o foco de leitura, fica no sentido mais restrito das palavras, nas frases mais polêmicas que ali estavam – que, concordo, são escrotas, esfregada no metrô não é agradável nem defensável, mas também não é estupro, nem próximo de, e não é preciso ter sido violentada para notar que há diferenças sensíveis. A possibilidade de ver ali um chamado para o diálogo (e não para a doutrinação), um grito contra o que muitas consideram um rumo equivocado do movimento, que cala as vozes e interdita os desejos das mulheres em nome (dizem) delas próprias, que muitas vezes não se mostra acolhedor para mulheres quando elas mais precisam, foi rejeitada com a violência de um desejo perigoso que não pode sequer ser pensado – o de autonomia plena e dissolução das estruturas de poder (e não sua troca de comando)? 

No El País, a resposta de Nuria Varela foi a legitimação do manifesto: põe as mulheres que o assinaram como marionetes dos homens, que seriam os únicos (e não os principais) ganhadores do machismo e do patriarcado – mulher só pensa se pensar como ela. Que o topo seja basicamente formado por homens, não discuto, mas que há homens na base da exploração, isso é algo que esse ramo feminista se nega a aceitar, porque seria quebrar o essencialismo que o baseia, e desmontar todo seu edifício teológico-político. 

Bourdieu mostra, por exemplo, como o machismo mata homens também. Num exemplo (infelizmente) banal: no Brasil, em 2017, 53% dos assassinatos (cerca de 32 mil pessoas) foram de homens entre 15 e 19 anos. Podemos atribuir isso à natureza eminentemente violenta do homem (em contraposição à natureza pacífica da mulher), ou podemos achar que é fruto de uma sociedade machista e patriarcal, que defende a honra do macho e afirmação da masculinidade baseada na violência como valor positivo. Badinter relata que até 10% das agressões domésticas na Alemanha são causadas por mulheres; uma amiga trans quando sofreu um ataque transfóbico que lhe custou um rim apanhou de homens e mulheres, democraticamente (já ouvi feminista dizer que trans é um homem de peruca querendo roubar o lugar da mulher); mulheres participam de violência sexual contra outras mulheres: são exemplos minoritários, porém, se a violência ainda é majoritariamente masculina, o é por educação, não por biologia, e não precisamos de duas gerações para nivelar todo mundo nessa lógica da força bruta. A questão: queremos uma sociedade mais violenta?

Erick Gandini, no filme Videocracy, mostra o ressentimento de homens expropriados das maiores benesses sociais, e que se vêem em condição de inferioridade em relação às mulheres na disputa pelas migalhas, sem questionar a estrutura que perpetua certos homens no topo: seria corporativismo de macho ou seria incapacidade de leitura minimamente crítica da realidade, de notar que ele quer migalhas e que nunca vai ter a chance de estar no topo, mesmo sendo homem? Não se trata de mulheres brigarem também pelos homens, mas de assumirem que é uma luta conjunta, sem subordinação, pois junto com patriarcado e machismo há uma estrutura social e econômica que afeta a todos (homens e mulheres) que não estão nas esferas de poder – homens e mulheres.

Uma vez uma amiga feminista disse, nunca lógica cristalina pela tautologia, que “mulher não pode ser machista, porque ela é mulher; mulher feminista é um contrassenso”. Tive que discordar: pode ser machista, como pode ganhar com o machismo, e é por isso que o machismo e o patriarcado se sustentam, porque mulheres também o legitimam e ganham com ele. Uma professora feminista da Unicamp, numa assembléia da greve de 2004, afirmou que a exploração que ela sofria era a mesma de uma terceirizada da limpeza: a ontologia de mulher (cis) garantiria a equalização de todas as diferenças sociais – sua estabilidade no emprego e seu salário 20 vezes maior são detalhes menores: certamente essa ideia favorece quem está no topo pirâmide social, que pode escrever e discutir manifestos, cantadas e violências, sem se preocupar se vai fechar as contas do mês, do trajeto do ponto de ônibus até a casa, ou por quanto tempo terá uma família estruturada, até o marido ser morto pelo Estado ou com a conivência dele – questão reiteradamente trazidas por Djamila Ribeiro, formada antes na luta real que na academia, e que tem uma estratégia retórica muito inteligente para não ser rechaçada de antemão pelo feminismo hegemônico do “somos todas iguais”.

Mais um exemplo pessoal, o caso de um casal feminista com quem tive o desprazer de conviver. Ela, branca, academicista, classe média-alta, feminista radical, militante ativa, de não perder uma reunião; ele, branco, classe alta, academicista, feministo que dizia amém pra tudo do feminismo e estava em todas as manifestações. Cansei de ser chamado de porco machista por questionar táticas de ação do feminismo hegemônico. Uma vez aconteceu do estuprador ser amigo deles… o que fazer numa situação dessas? Veja bem, não é bem assim, a palavra é forte, há uma série de atenuantes que não podem ser ignorados, ele é branco, mora no Morumbi, egresso da PUC e da USP, uma boa pessoa, sempre a favor da causa feminista também, não fez por mal, estava bêbado e, no final, convenhamos, não conseguiu consumar o ato (curiosamente, a tentativa foi na França). Resultado: tudo bem, acontece, passa uma borracha e segue a vida normal, ela militante feminista ativa, eles, feministos de confiança. Isso para dizer que aqueles que tentam desqualificar as francesas do manifesto dizendo que é fácil dizer aquilo sem pegar metrô e ser encoxada – ou que vão me desqualificar por ser homem – tem razão, mas vale também o argumento que é fácil manter o purismo até que você se vê frente a frente com a realidade, aí se é obrigado ou obrigada a largar mão do purismo teórico e assumir a complexidade da vida real, ou manter o purismo teórico, mesmo que ao preço de negação da realidade e mesmo dos princípios desses purismo.

Encerro com a historiadora portuguesa Raquel Varela, certeira no ponto sobre o debate acerca do assédio e da instrumentalização do feminismo, iniciado com o #metoo: 

“Uma operária violada, como conheci centenas de casos relatados no estudos que fiz sobre o final do salazarismo, porque dependia do trabalho para alimentar os filhos, não pode – não pode jamais – ser equipada a uma estrela que está 20 anos calada para ganhar milhões e nesses 20 anos é fotografada sorridente ao lado daquele que hoje diz que a agrediu sexualmente durante esses 20 anos. Estas mulheres são em primeiro lugar vítimas da sua ambição e é acintoso, imoral comparar operárias ou trabalhadoras que sofreram na pele o terror sexual em nome da sobrevivência, a estrelas à procura de um lugar de topo na carreira mais competitiva do mundo. Eu não sorrio ao lado de homens que me ameaçaram, sexual ou moralmente, sejam eles directores, reis, presidentes ou operários. E não é porque eu sou uma mulher forte que teve a sorte de nascer num lugar confortável, é porque eu tenho balizas morais e princípios claros na vida. Conheci muitas mulheres, por razões de trabalho sobre a revolução dos cravos, como eu, aprendi muito com elas. Com a diferença que que eram pobres, miseráveis algumas, e mesmo assim colocaram uma linha a partir da qual não passavam. E conheci o contrário, muitas que nasceram em berço de ouro dispostas a tudo. Lamento, mas como mulher, não acho que todas as mulheres estão no papel de vítimas. Há muitas mulheres no mundo que fazem parte do jogo de dominação e desigualdade da sociedade actual e que estão a cavalgar uma situação real – a desigualdade de género – para disputar espaço nas carreiras pondo assim em causa uma das mais nobres causas que temos, a luta pela igualdade social” (http://bit.ly/2EH0Uu2).

 

 

14 de janeiro de 2018

Redação

30 Comentários

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  1. Esse blablablá de novo?

    Céus, quanta gente interessada em determinar como o feminismo deve ser. Por que esse cara nao se interessa em ver o quanto o machismo tb prejudica os homens?

    1. Anarquista lúcida, sua falta

      Anarquista lúcida, sua falta de interesse em debater e ouvir o outro (a outra se preferir), apenas corroborou a visão do autor.

      1. Qual visao?!
        Alias, qual eh o

        Qual visao?!

        Alias, qual eh o “debate” e quem o colocou em pauta, as assinantes da carta, as mulheres francesas, a internet, os leitores, as vitimas de “enchessao de saco”, o autor?  E qual eh o primeiro ponto prometido mesmo???  O tecnicamente incorreto sobre prostituicao legalizada nos EUA que eu apontei?????

        Eh so depender de as muieh de 50 estados diferentes se organizarem pra…  Vualah… A prostituicao ser legalizada “pelas feministas radicais” republicanas na nacao inteira?????

        So isso?

  2. O texto ta uma bagunca. 

    O texto ta uma bagunca.  Entao ele tem DUAS coisas pra descrever no primero paragrafo, nao eh?  So que a proxima sentenca comeca assim:

    “O debate proposto não é novo”.

    Qual “debate”?

    Quarto paragrafo ele parte para o “outro” ponto. Estamos de volta aa promessa introdutoria sem saber qual era o primeiro ponto prometido e sem saber o que  o “debate” eh.

    Ai ele faz um comentario sobre legalizacao de prostituicao nos EUA que ignora que TODOS os estados estao liberados pra legalizar ou nao a prostituicao, ato “generoso” que poupa a putada conservativa de fazer um gesto a nivel national pela prostituicao.

    Isso sem contra a tolice de mencionar feminismo “radical”… aliado ao partido conservador(!!!).

    E ainda nao saimos do segundo paragrafo…  Pois o terceiro esta uma bagunca tambem.  E nem sei ainda o que era a critica da francesa…  nao entendi!

      1. Não é falsificação, Ivan

        O que mais tem aqui é esquerdomacho recalcado. Mas muitos têm (um pingo  de, pelo menos isso) vergonha de se manisfestar diretamente, entao dão estrelinhas pra qualquer idiota que diga qq bobagem contra essas bruxas feministas! hahahhahaa

        Deixa eles!

        Perderam playolds!

    1. patrulha = voz dissonante

      né, meu bem?

      Se fosse um texto falando mal do Lula, os comentários contrários não seriam patrulhas, mas contra-argumentos, né, morzão?

      vá se fudê!

      Tô totalmente sem paceiência pra essa macharada atrasada e recalcada.

      Vocês estão perdendo e vão ter que se colocar no seu lugar. PONTO.

      Podem se remoer a vontade!

      [video:https://www.youtube.com/watch?v=WzMCmJVZ9l4%5D

      Não tem volta!

      Não estamos pedindo concessão pros senhores.

      AVANTE, COMPANHEIRAS!

  3. Depois o Nassif fica ofendidinho quando a gente acusa ele

    de machista… e diz que tem não sei quantas irmãs, filhas, sobrinhas, namoradas, etc… Tipo: Tenho um amigo gay, outro preto e por aí vai.

    Mas adora dar espaço pros seus companheiros esquerdo-machos. Na minha opinião, este é o “blog sujo” mais machista da internete dita progressista.

    Pois é….

    Vergonha alheia de ver essa merda publicada aqui. Por essas e outras deixei de financiar este blog. Pra mim, fincanceriamente, não custaria nada. Mas cansei de espaço machista oonde só os homens tem voz. Eventualmente uma ou outra mulher “inofensiva” que faz sua coluninha semanal/mensal quase sempre sem afrontar diretamente os “moçoilos”.

    Cêis tão na contramão da história, filhinhos.

    Não vai ter trégua.

    Os senhores não vão ditar o que e como o movimento feminista deve ou não agir/fazer.

    Sorriiiii 

    [video:https://www.youtube.com/watch?v=3L5D8by1AtI%5D

    [video:https://www.youtube.com/watch?v=kDhptBT_-VI%5D

    [video:https://www.youtube.com/watch?v=hV76KXU1x6g%5D

  4. só não vem dizer que não…

    [video:https://www.youtube.com/watch?v=kOSQngZjvdc%5D

    É o poder, aceita porque dói menos
    De longe falam alto, mas de perto tão pequenos
    Se afogam no próprio veneno, tão ingênuos
    Se a carapuça serve, falo mesmo
    E eu cobro quem me deve

    É o poder, o mundo é de quem faz
    Realidade assusta todos tão normais
    Viu? Falei
    Depois não vem dizer que eu não avisei

    Juiz de internet caga se espalhando feito peste

  5. Pra terminar…

    (ao seu ver) A única contribuição que as minorias (no sentido represnetativo do poder, como mulheres, negros, índios, gays, pobres, et caterva) podem dar é apoiar a causa dos homens bons da esquerda “revolucionária’. 

    Só assim a gente serve, enquato ecoamos a “verdadeira” causa do macho audlto branco de exquerda: Luta de classes!

    Mas tudo isso é só retórico, pra eles se sentirem pessoas melhores, gente do bem, sabe como é?

    Oh… só que não vai rolar. Enquanto vocês quiserem ser hegemõnicos, monopolizar todos os discuros (que os interessam em grande parte por simples vaidade intelectual) isso não vai rolar… 

    Mas, sgiam unidos machos e se enganando com teorias dos séculos passados que jamais se consolidarão.

    Outro mundo virá.

    E vocês não serão voz hegemônica. Na verdade, já não são.

    Sorry again ♥

  6. ENTREVISTA“É preciso deixar
    ENTREVISTA

    “É preciso deixar de pensar que a mulher é sempre uma vítima”

    Catherine Millet, promotora do manifesto contra o #MeeToo, denuncia seus métodos e consequências

    https://brasil.elpais.com/brasil/2018/01/12/cultura/1515761428_968192.html

    Seu manifesto conseguiu semear o caos na França e em boa parte do mundo. A escritora e crítica de arte Catherine Millet (Bois-Colombes, 1948), autora do best-seller A Vida Sexual de Catherine M., é uma das cinco mulheres por trás do manifesto contra o #MeToo, assinado por 100 personalidades da cultura francesa, lideradas pela atriz Catherine Deneuve, a cantora Ingrid Caven e a editora Joëlle Losfeld. Millet diz que esse movimento, que rotula de “puritano”, favorece a volta da “moral vitoriana”. Ela defende “a liberdade de importunar”, inclusive no sentido físico, considerando-a indispensável para assegurar a herança da revolução sexual. É o que afirma em seu escritório parisiense, um quarto cheio de catálogos amontoados onde o telefone não para de tocar desde que começou a dirigir a revista Art Press, que cofundou em 1972.

  7. A tal da Vânia responde com
    A tal da Vânia responde com xingamentos e palavras de baixo calão e vcs publicam; já o que eu falei, sem xingar nem ofender ninguém é censurado. Legal.

    1. É assim mesmo!

      É que a Vânia, além de ser histérica, parece ter algum amiguinho patrulheiro na redação do GGN, porque ela é muito hábil em difamar as pessoas, fica por isso mesmo… e depois a redação do GGN segue o batuta dela e ferra o infeliz que ela difamou… só pra ele aprender a deixar de ser besta.

      1. PS:

        Engraçado aparecer estes patrulherios não cadastrados quando o post tinha sido até removido da página principal do blog.

        Será que estou virando paranóica além de histérica? rsss

    2. Fico muito Feliz em ver a reação indignada dos senhores

      ao ouvirem algumas verdades.

      Mas, por favor, tenha um pingo de honestidade e mostre onde estão as palavras de baixo calão proferidas por minha pessoa.

      Ah, isso não é coisa de mulher, né? Palavras duras só são aceitas quando vinda dos machos. 

      Saquei!

  8. Com o manifesto contra o #metoo, mais uma oportunidade perdida?

    Infelizmente, esse manifesto francês contra o #metoo provavelmente será apenas mais uma oportunidade perdida de fazer seriamente o debate que Dalmoro menciona em seu comentário sobre o “feminismo instrumentalizado” aqui no GGN. Certamente, não ajuda o fato de que, em um terreno que é um verdadeiro campo minado, pessoas como Catherine Millet — uma das signatárias do manifesto, que há pouco “lamentou”, em tom de ironia, não ter sido estuprada, pois isso lhe daria condições de “provar” (!) que um estupro pode ser superado — insistam em fazer provocações infantis (como a que acabo de mencionar), que só crispam ainda mais os ânimos e provocam um eclipse da capacidade de ouvir, tão essencial para qualquer debate produtivo.

    No entanto, o problema em questão está latente e é real. A título de exemplo, ainda no ano passado, tomei conhecimento de um livro escrito por uma professora universitária feminista estadounidense (Laura Kipnis, Sexual Paranoia Comes to Campus), o qual denuncia as consquências espantosas dos excessos e da maneira como se está encaminhando o atual processo de denúncia e perseguição da violência sexual (geralmente masculina e machista) nos EE. UU. — maneira que tem servido de “modelo” para a tentativa de iniciar o mesmo processo aqui na América Latina. Sem prejuízo de reconhecer a necessidade dramática de enfrentar o problema da violência sexual banalizada na nossa cultura patriarcalista atual, a denúncia de Kipnis deveria causar alarme e é exatamente uma ilustração do que Dalmoro quer dizer quando cita certo alinhamento entre um certo feminismo que se pretende hegemônico e posições moralistas ou republicanas. Pense-se o que quiser sobre feminismo, mas o que está ocorrendo hoje nos EE. UU. com uma legislação chamada Title IX, é uma tragédia. O que Kipnis demonstra é que a sanha acusacionista deu lugar a um processo de exceção nas universidades estadounidenses (basada nessa Title IX), em que os acusados enfrentam julgamentos inquisitórios, os quais, por sua vez, são um prato cheio para a instrumentalização de microconflitos mesquinhos no âmbito universitário. A autora chega a especificar casos concretos, como o de um professor que teria se mudado para o México após uma acusação de estupro absolutamente insustentável, mas que lhe custou uma condenação injustificada (por sumária), o cargo e a toda a vida que construíra. Isso em um contexto em que as redes sociais amplificam esse tipo de caso e o transformam em um julgamento sumário público, processo que o Nassif vive denunciando aqui no Blog.

    Isso tudo é real e concreto, está acontecendo aqui e agora. E não se trata só de julgamentos de exceção pelo poder público ou de julgamentos sumários públicos pela massa nas redes sociais da era da pós-verdade. Cada pequeno debate online ou em pequenos grupos pode se transformar, subitamente, em um pequeno julgamento sumário, nem que seja de opinião. A ideia de lugar de fala, que originalmente surgiu justamente para abrir as portas do debate (dando voz a pessoas em condições de exploração ou dominação, reconhecendo suas experiências pessoais como fonte de perspectivas válidas e legítimas), muitas vezes é usada de forma desleal, como um cala-boca. 

    Ora, por que homens que se propõem a debater com argumentos honestos ou baseados em conhecimento sólido não poderiam questionar “verdades” de certos discursos que se pretendem hegemônicos? Subitamente, surgiu uma premissa de que todo homem é um debatedor desleal até prova em contrário. A que ponto chegamos? No Brasil de 2018, de Bolsonaro, entendo que um contingente enorme de homens não estão nem aí para o debate e que só abrem a boca para proferir falácias mal-intencionadas. Mas por que apontar canhões para quem se esforça por dizer algo que possa, com boa vontade, fazer algum sentido? É claro que o ambiente de desabafo generalizado não ajuda as pessoas a formularem discursos com muito sentido, mas aonde foi o princípio da boa vontade no debate? A usuária Vânia, em um comentário, postou um vídeo da Jout Jout no qual ela define o que seria um “esquerdomacho”. Quem assistir o vídeo verá que, em algum ponto, ela define o esquerdomacho como alguém que “leu um monte de textos feministas” e com isso tenta discutir o feminismo com as mulheres. Ora, mas isso não é exatamente um debatedor com boa vontade? Tentando discutir algo que faça sentido, embasadamente? A que ponto chegamos, em que tornou-se banal igualar um debatedor honesto com qualquer machista misógino ou inclusive abusador, para quem a fala é só um instrumento para tentar reforçar a dominação? 

    E como sugere Dalmoro, por que as experiências dos homens não são, também, válidas como pontos a partir do qual podem ter uma perspectiva do patriarcado hodierno? Nem todo homem é um “macho alfa” bem sucedido (assim como nem toda mulher é só prejudicada pelo patriarcado). Há pessoas (como eu, por exemplo) que foram abandonadas por pais e deixados só com as mães, um problema típico do machismo latinoamericano. A segunda esposa do meu pai, por dar um exemplo pessoal, é perfeitamente conivente e se beneficiou enormemente do abandono do primeiro filho do marido. Há uma miríade de casos concretos — homens cuja sexualidade não corresponde ao que se exigiria de um homem, homens que não serão capazes de satisfazer as exigências variadas da cultura machista no emprego ou na vida pessoal, etc. etc. — que também podem ser pontos de partida para uma perspectiva questionadora. Isso também é lugar de fala. Não digo que isso seja igual a ser uma mulher violentada, assediada, etc., nem procuro colocar em condição de equivalência. Mas trata-se, inequivocamente, de perspectivas válidas, também.

    E não se trata somente da interdição dos homens no debate. Como Dalmoro menciona, há um certo feminismo que se pretende hegemônico, mas o certo é que essa perspectiva não goza de unanimidade entre mulheres. Há, mesmo dentro do feminismo intelectualizado, muitas correntes. Simone de Beauvoir não é muito bem vista, por exemplo, pelo “feminismo radical” de origem estadounidense (“radfem”). Fora do ambiente acadêmico, há muitas mulheres, inclusive ativistas, que não concordam veementemente com a certa percepção maniqueísta (ou “vitimizadora”) que Dalmoro discute ao citar Elisabeth Badinter. Esse manifesto contra o #metoo demonstra exatamente isso. Para além das mulheres cis, há também as mulheres trans. Pessoalmente, comecei a considerar que poderia haver “algo de podre no reino da Dinamarca” do feminismo (ou dos feminismos, por há muitos) justamente após presenciar um debate entre feministas da corrente radfem sobre as mulheres trans. A virulência era espantosa. Quem tiver estômago, procure e verá do que estou falando.

    Com tudo isso, é frustrante ver que algumas pessoas, como a Anarquista lúcida, questionem por que o manifesto ou o Dalmoro estão discutindo o feminismo, e não o machismo misógino gritante em nossa sociedade. Como se a crítica social e autocrítica fossem mutuamente excludentes. Eu diria o contrário: quanto mais justa uma causa, mais seus militantes precisam ser autocríticos, pois quem sente que está lutando pelo que é justo corre enorme risco de se tornar prepotente em sua visão de mundo e sucumbir a delírios narcisistas muito perigosos. Para além disso, o mundo está sendo transformado, o patriarcado está sofrendo golpes. Se ele será superado ou não, ou até que ponto o que virá depois poderá ser realmente uma superação de relações de dominação, tudo isso depende (também) da virtude de quem está travando essa luta. Os julgamentos sumários nossos de cada dia deveriam causar preocupação, e não essa sensação de vitória da “lacração”. E, se não for por ética, esse debate é necessário nem que seja por razões práticas: na medida em que aliena os discordantes de qualquer esforço de luta (não só homens, como até mesmo mulheres), a falta de autocrítica enfraquece a própria luta contra o patriarcado. Isso só cria espaço para que cresçam os Trumps da vida.

  9. O mito da mulher histérica e sua consequência sobre as mulheres

    O mito da mulher histérica e sua consequência sobre as mulheres

    Por  · Em 26 de Abril de 2016

    Na Grécia Antiga, histeria era uma doença feminina. O próprio nome já denuncia isso, já que em grego,histerus, significa útero. Naquela época, os sintomas da histerias eram creditados à locomoção interna que o útero realizava em busca de umidade. A doença, inclusive, até mesmo era utilizada para diagnosticar transtornos nervosos nas mulheres que não engravidavam. Séculos mais tarde, na Idade Média, a palavra era associada à bruxaria, levando muitas mulheres à fogueira.

    Por um longo período, histeria ficou associada puramente ao feminino, sendo uma condição para caracterizar mulheres com surtos de pânico, ansiedade, irritabilidade, insônia, dores de cabeça, perda de apetite, e outros sintomas. Mulheres – no período pós Revolução Industrial e no auge da burguesia, por volta do seculo XIX – que se sentiam aprisionadas pelos papéis que lhes eram impostos pela sociedade patriarcal e contestavam tal realidade eram taxadas de histéricas e, consequentemente, mandadas a hospitais e consultórios para receber tratamento. A histeria coletiva das mulheres nessa época estava relacionada, também, a incessante repressão sexual pela qual passavam.  

    Tal fato começou a ser estudado por Jean Martin Charcot (1825 – 1893) e seu mais brilhante aluno Sigmunt Freud. O encontro de Freud com a doença iniciava o que mais tarde viria a ser conhecido como Psicanálise. Em seus estudos, percebeu que os sintomas histéricos estavam relacionados com a repressão de impulsos libidinosos. A lembrança de tal trauma e sua catarse seriam a cura.

    Não só. A histeria, era, e ainda é, uma manifestação física de situações psíquicas. Nesse contexto, o tratamento mais comum da doença nos consultórios era a massagem vaginal, como forma de aliviar os sintomas da enfermidade. Essa prática levaria mais tarde à invenção do vibrador.

    Leia também:  A criação do vibrador – prazer para mulheres “histéricas”

    Atualmente, sabe-se que a histeria é uma forma de neurose, ou seja, um distúrbio mental que se manifesta fisicamente e que afeta tanto homens quanto mulheres. O transtorno leva a reações exageradas e teatrais daquele com a condição, o que passa a impressão de fingimento. Mesmo com esse conhecimento, como acontecia antigamente, mulheres ainda são tidas como histéricas, como forma de desacreditar suas emoções legítimas, com a relação direta ao esteriótipo de “mulher louca”. Qualquer emoção expressada por elas é relevada e ignorada, pois é tratada como drama e irracionalidade.

    “Mulher histérica, está exagerando!”, dizem muitos para desacreditar emoções expressas ou relatos de uma mulher. Muitos transtornos reais, se manifestados em mulheres, são desqualificados pela crença de que são seres naturalmente desequilibrados, volúveis e irracionais. Isso se agrava ainda mais, pelas viradas de humor ocasionadas pelos ciclos hormonais do corpo feminino. Uma mulher irritada quase sempre é vista como se estivesse com TPM e é, por conseguinte, ignorada.

    Em entrevista ao Lado M, Janaina Leite, atriz e uma das criadoras da peça Hysteria – que conta a história de cinco internas no hospício Carioca Pedro II, diagnosticadas com histeria no contexto da virada do século XIX no Brasil -, falou sobre a relação do transtorno psicológico com o feminino.

    A peça conta a história de cinco mulheres em um tom biográfico. Como a internação delas por histeria na história(trama?), e na vida delas, se associa ao padrão esperado das mulheres na época em que a história se passa?

    As cinco mulheres que abordamos, nós reconstituímos a vida delas via documentos e criação. Então há tanto um teor documentário como ficcional, não tínhamos pretensão de dar conta de um biografia de verdade. No caso, todas elas foram internadas por histeria, e nós partimos do pressuposto de que na verdade não se tratava da doença, mas sim de um descompasso social. Ou seja, que todas elas, de alguma forma, não se encaixavam no que era esperado socialmente para as mulheres. Então, acreditamos que ou elas foram colocadas diretamente naquele lugar ou desenvolveram um transtorno a partir dessa repressão social.

    Por que, na sua opinião, a palavra histeria continua sendo usada até hoje para se referenciar a elas? Os padrões daquela época ainda rondam o uso desse adjetivo?

    A doença está muito relacionada ao imaginário sobre o corpo feminino, um corpo misterioso. Acreditava-se que as crises histéricas aconteciam quando o útero da mulher estava se mexendo dentro dela. Hoje em dia nós temos essa herança da histeria ser associada majoritariamente ao feminino por causa dessa origem da crença da mulher como um ser incontrolável e sujeita aos humores do corpo, mesmo que seja uma doença que se manifesta também nos homens. É uma forma de tirar a mulher do campo do pensamento e do campo da razão e colocar as ideias delas no campo do disparate, da paixão, do sem sentido de uma opinião que não pode ser levada em consideração porque pode mudar a qualquer momento, já que as mulheres estariam sujeitas a esses humores. Usar esse termo para se referir a uma mulher hoje é para desqualificá-la.

    Na história da peça, por que essas mulheres foram diagnosticadas com histeria? E como isso se relacionava ao que acontecia em suas vidas? Como o diagnóstico foi utilizado para cercear suas liberdades?

    Usar a histeria para colocá-las em um quadro patológico era uma forma de cercear as liberdades, aquilo que ultrapassava os limites. Uma mulher que queria escrever, ter ideias revolucionárias, que queria ter relações com outras mulheres ou com vários homens, entre outras. Esse diagnóstico era uma forma de frear essas mulheres e confiná-las. Muitas mulheres foram submetidas a tratamento de choque e à reclusão. Existe a história, por exemplo, da Dona Iaiá daquele casarão ao lado do Teatro TBC. Ela foi uma mulher que ficou 40 anos trancada dentro de casa, em um espaço pequeno construído para ela. Era uma mulher que ficou louca depois dessa exclusão, porque obviamente sendo trancafiada e isolada por anos deixa a qualquer um louco, mas que na origem era uma mulher destoante, que não pensava como as demais e que queria outras coisas. Muitas mulheres tiveram esse mesmo destino.

    O adjetivo “histérica” ainda é muito presente quando é colocado para qualificar mulheres. Mas e você, leitora? Já foi chamada de histérica alguma vez por sair dos padrões ou falar mais do que os outros queriam ouvir?

    http://www.siteladom.com.br/o-mito-da-mulher-histerica-e-sua-consequencia-sobre-as-mulheres/

     

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