Trivial do mestre Antônio Cândido

Hoje o professor Antônio Cândido faz 92 anos. Um orgulho para o país, um momento especial de lembranças para mim, já que ele e meu pai foram grandes amigos. Antes de vir para São Paulo, Antônio Cândido cultivou duas cidades: Poços de Caldas, onde morou toda a adolescência; e São João da Boa Vista, onde foi estudar depois que os Maristas assumiram o Colégio Mackenzie local e dispensaram todos os alunos anteriores pois, segundo eles, estariam contaminados pela doutrina protestante.

Coincidentemente, fui estudar em São João depois que o Irmão Gonçalves Xavier acabou com o segundo científico no Marista de Poços e colocou a culpa em uma nota que publiquei no Diário de Poços, onde fui trabalhar no período das férias.

Aqui, uma entrevista do sanjoanese Rodrigo Falconi com Antônio Cândido.

Por Rodrigo Falconi

Entrevista com o Professor Antonio Candido de Mello e Souza* 

 

 Introdução

 O Professor Antonio Candido de Mello e Souza, consagrado crítico literário brasileiro, concluiu o Ginásio em São João da Boa Vista, em 1935. Neste momento de sua vida surgiu uma figura que marcou para sempre sua existência: o médico e professor Joaquim José de Oliveira Neto. Como ele destacou em diversas ocasiões, foi um dos mais importantes mestres que teve em sua vida.

          Em uma agradável conversa em seu apartamento, repleta de recordações, surgiu a idéia de realizar uma entrevista destacando seus primeiros anos de vida, especialmente o período em que foi estudante do Ginásio sanjoanense.

          Tal entrevista permite conhecer um momento da história de São João da Boa Vista, e um pouco da vida de um intelectual brasileiro que influenciou diversas gerações.

 

Biografia do Professor Antonio Candido

Antonio Candido de Mello e Souza é filho do médico dr. Aristides Candido de Mello e Souza e de Clarisse Tolentino de Mello e Souza, e nasceu no dia 24 de julho de 1918, no Rio de Janeiro, mas viveu desde a primeira infância em Minas Gerais, inicialmente em Cássia e, a partir dos onze anos, em Poços de Caldas.

Aprendeu as primeiras letras com sua mãe, e depois ingressou em uma escola particular de Poços de Caldas, onde fez o curso de admissão. Posteriormente, ingressou no Ginásio Municipal da cidade mineira, onde realizou quase todo o secundário, que foi concluído, em 1935, no Ginásio de São João da Boa Vista.

Nos anos de 1937 e 1938, fez o curso complementar no Colégio Universitário da Universidade de São Paulo, ingressando, em 1939, na tradicional Faculdade de Direito do Largo São Francisco e na Faculdade Filosofia (Seção de Ciências Sociais).

Em 1941, participou com Décio de Almeida Prado, Lourival Gomes Machado, Paulo Emilio Salles Gomes, Ruy Coelho e Gilda de Moraes Rocha do grupo fundador da revista “Clima”, que revelou uma geração de intelectuais de São Paulo.

No ano de 1942, Antonio Candido tornou-se Bacharel e Licenciado na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo. No mesmo ano, ingressou no corpo docente como primeiro assistente de sociologia do professor Fernando de Azevedo, cargo no qual permaneceu até 1958. 

Em 1943, concluiu a Faculdade de Direito, mas não prestou os exames finais do curso. No mesmo ano começou a publicar a coluna “Notas de Crítica Literária”, no jornal Folha da Manhã, atividade na qual trabalhou até 1945, ano em que se casou com Gilda de Moraes Rocha, com quem teve três filhas: Ana Luíza, Laura e Marina.

Ainda em 1945, obteve o título de livre-docente em literatura brasileira com a tese “Introdução ao Método Crítico de Sílvio Romero”, e tornou-se crítico literário do Diário de São Paulo, mantendo-se na função até 1947.

Entre os anos de 1943 e 1945, Antonio Candido participou na luta contra a ditadura do Estado Novo no grupo clandestino Frente de Resistência. Em 1945, foi um dos fundadores da União Democrática Socialista, que no mesmo ano se integrou na Esquerda Democrática, transformada em 1947 no Partido Socialista Brasileiro, de cujo jornal, Folha Socialista, foi um dos diretores.

Obteve, em 1954, o título de doutor em ciências sociais com a tese “Os Parceiros do Rio Bonito”. Dois anos mais tarde, elaborou o projeto do Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo, e publicou “Ficção e Confissão”, ensaio sobre Graciliano Ramos.

De 1958 a 1960 foi professor de literatura brasileira na Faculdade de Filosofia de Assis, depois integrada na Universidade Estadual Paulista, naquela altura Instituto Isolado de Ensino Superior do Estado.

Após a publicação, em 1959, do livro “Formação da Literatura Brasileira”, considerado um clássico da crítica literária brasileira, Antonio Candido tornou-se uma referência da crítica literária latino-americana.

Em 1961, retornou à Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, para assumir como professor colaborador a nova disciplina de teoria literária e literatura comparada, da qual se tornou titular em 1974.  Aposentando-se em 1978, continuou a trabalhar em nível de pós-graduação como orientador de teses.

Foi professor associado de literatura brasileira na Universidade de Paris (entre 1964 e 1966) e professor visitante de literatura brasileira e comparada na Universidade de Yale, Estados Unidos (1968).

Em 1964, publicou o livro “Tese e Antítese” e em 1970, “Vários Escritos”, tendo sido período de 1973 a 1974, um dos dirigentes da revista “Argumento”, que foi proibida no quarto número pela ditadura militar.

Entre 1976 e 1978, foi coordenador do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e de 1977 a 1979 foi vice-presidente da Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo.

É professor emérito da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo e da Faculdade de Ciências e Letras de Assis, da Universidade Estadual Paulista, bem como doutor honoris causa da Universidade Estadual de Campinas.

Ao lado de intelectuais como Sérgio Buarque de Holanda, em 1980, tornou-se membro fundador do Partido dos Trabalhadores, tendo nele exercido o cargo de presidente do Conselho da Fundação Wilson Pinheiro.

Em 1993, publicou dois volumes de ensaios: “O Discurso e a Cidade” e “Recortes”.

No dia 15 de julho de 1998, recebeu o Prêmio Camões, o mais importante prêmio cultural do mundo lusófono. Um ano depois, na comemoração dos 40 anos de lançamento do clássico “Formação da Literatura Brasileira”, foi homenageado com uma exposição no Memorial da América Latina, em São Paulo.

Em 2001, seu livro “Parceiros do Rio Bonito”, publicado em 1964, foi reeditado com fotos inéditas tiradas pelo autor. Em fevereiro deste mesmo ano, reeditou o livro “Florestan Fernandes”, em homenagem ao sociólogo.

Em março 2002, publicou o livro “Um Funcionário da Monarquia”, no qual acompanha a ascensão de um servidor público de segundo escalão da burocracia imperial à época de dom Pedro 2º.

 

Entrevista com o Professor Antonio Candido

 

Rodrigo Falconi – Como era o seu ambiente familiar?

 

Professor Antonio Cândido – A minha família era um grupo harmonioso e agradável, com muito convívio de pais e filhos. Meu pai, médico, era homem de cultura, interessado em literatura e filosofia. Depois do almoço sempre nos falava um pouco das suas leituras e expunha tópicos de ciência. À noite, depois do jantar, antes de ir para o escritório estudar, o que fazia diariamente, costumava nos ler durante uma meia hora textos que julgava importantes, em português e francês. Por exemplo: aos poucos, nos leu e explicou boa parte de “Os Sertões”. Minha mãe também era culta e a leitura era uma espécie de vício familiar, com base na boa biblioteca doméstica e em tudo o que meus irmãos e eu íamos comprando na excelente livraria “Vida Social”, de Poços, que tinha livros franceses e ingleses além dos nacionais. Éramos três irmãos, dos quais sou o mais velho, e tínhamos um escritório nosso, cada um com a sua mesa e cada um com os seus livros prediletos. A minha família foi a base principal da minha cultura.

 

Rodrigo Falconi – Como era Poços de Caldas na época em que o Senhor estudou em São João da Boa Vista?

 

Professor Antonio Cândido – Era uma cidade muito agradável. A voga das vilegiaturas e do então acatado tratamento hidromineral trazia gente de várias partes do Brasil, da Argentina, do Uruguai, de modo que havia uma espécie de variedade e de agitação que nos lançava num plano muito acima do que caracteriza as cidades do interior. As “estações” movimentadas, que coincidiam com as férias e eram marcadas pela vida nos cassinos, a ocorrência de concursos esportivos, as conferências, os desfiles, os espetáculos teatrais contrastavam com os períodos de calma, os “intervalos”, nos quais a cidade vivia sobre si mesma. Para meu pai era o ideal: ele trabalhava de dia e noite durante os meses de “estação”, nos quais obtinha dois terços do que ganhava, porque os seus clientes eram quase todos de fora. Nos “intervalos”, escrevia, estudava, lia e clinicava pouco.

 

Rodrigo Falconi – Quais foram as razões que o fizeram estudar em São João da Boa Vista na década de trinta?

 

Professor Antonio Cândido – Meus irmãos e eu estudávamos no Ginásio Municipal de Poços de Caldas. Durante as férias de 1934-35 a Prefeitura decidiu não continuar mantendo o ginásio e o ofereceu aos Irmãos Maristas, que aceitaram o presente com uma condição drástica: só admitiriam alunos do curso primário e do primeiro ano ginasial, a fim de poderem, naturalmente, moldá-los ao seu jeito. E assim nós fomos literalmente postos na rua do dia para a noite. Muitos foram estudar em São Paulo, Campinas e outros lugares, mas um bom número nunca mais pôde estudar. Minha mãe, apegadíssima aos filhos e não gostando de colégio interno, resistiu, levando meu pai a pensar numa solução de compromisso, tornada possível graças à boa vontade do dr. Oliveira Neto, que conheceram então e era diretor do ginásio ainda não oficial de São João. Combinaram que nós poderíamos dar o número máximo de faltas permitidas, freqüentando o resto. Logo depois, o ginásio se tornou estadual, tendo o dr. Emílio Lansac como diretor. Mas nunca residimos em São João. Ficávamos num hotel de Águas da Prata com minha mãe e íamos diariamente às aulas. Eu estava no último ano, que era o quinto. Meus dois irmãos estavam no terceiro.

 

Rodrigo Falconi – Quais eram os professores da época?

 

Professor Antonio Cândido – Lembro bem de todos. Como acontece em qualquer escola, havia uns bons e outros menos bons. Verdadeiro ás era o dr. Oliveira Neto, de História Natural, um dos melhores que tive na vida. Era brilhante, informado e tinha uma aura de magnetismo que transportava os alunos. Também muito bom, mas de outro tipo, era Francisco Paschoal, de Português: sereno, pausado, sem irradiação, mas, além de muito claro, competente e seguro. Certa vez publicou no jornal que dirigia uma de minhas provas escritas. Emílio Lansac ensinava Matemática de maneira precisa e boa técnica, mas era pouco comunicativo. Ao contrário, por exemplo, do professor de Geografia, Roque Fiori, extrovertido e brincalhão. Muito bom era o de Química, o belga Charles van Wymersch, que eu conhecia bem, porque tinha morado em Poços e se tornara meu amigo. O professor de Desenho era um pintor de boa qualidade, Atílio Baldocchi, que foi bastante premiado em seguida no Rio e em São Paulo e pintou quadros encantadores. Muito gentil era o professor de Física, farmacêutico de sobrenome Martins cujo prenome não lembro. Latim era ensinado pelo venerável padre Josué, já velho e cansado, um pai dos alunos. História ficava a cargo de Dona Anésia, também diretora do Grupo Escolar.

 

Rodrigo Falconi – Por favor, um depoimento sobre o dr. Oliveira Neto.

 

Professor Antonio Candido – Além de aluno, fiquei amigo dele o resto da vida. Ele me tratou sempre com estima e eu sempre admirei a sua inteligência, a sua cultura e o seu conhecimento dos livros. Como mesmo depois de residir em São Paulo eu estava constantemente em Poços de Caldas, onde tivemos casa até 1989, pudemos ter bastante convívio. Ele me ensinou muita coisa, inclusive revelando revistas literárias francesas e americanas que assinava e eu não conhecia. Nas mãos dele vi, ainda ginasiano, o primeiro volume da famosa Bibliothèque de La Pléiade. Eram as obras de Baudelaire. Além de culto era muito aberto, gostando de trocar idéias e comentar leituras. A nossa amizade continua para mim no convívio de sua filha Iolanda, minha amiga e escritora de valor. E temos até certas relações de família, porque meu irmão caçula Roberto é casado com uma prima deles. Oliveira Neto era um desses gentlemen cuja fôrma se perdeu.

Rodrigo Falconi – Que impressões lhe ficaram da São João da Boa Vista daquela época?

 

Professor Antonio Cândido – Eu me sentia bem em São João. A atmosfera do ginásio era agradável e eu conhecia pessoas cordiais, algumas relacionadas com meus pais, como o sr. Gabriel Antonio da Silva Oliveira, apelidado Biézinho. Era um homem fino e culto, que cursou medicina durante alguns anos e se exprimia com grande correção. Quando morreu me legou um livro precioso, “A mulher e a sociogenia”, de Lívio de Castro. Ele e dona Tita de Oliveira eram tios do dr. Oliveira Neto.

 

Rodrigo Falconi – Com quais colegas conviveu?

 

Professor Antonio Cândido – A nossa turma era de onze, sendo seis rapazes e cinco moças. Lembro bem de um por um e há mesmo um retrato de grupo onde estamos quase todos, debaixo da enorme figueira que havia na praça. Mas amizade só fiz realmente com Humberto Untura, que depois não tive oportunidade de cultivar mas que sempre estimei.

 

Rodrigo Falconi – Naquele tempo, já tinha interesse por questões políticas?

 

Professor Antonio Cândido – Naquela altura eu estava começando a me interessar platonicamente pelo socialismo e li alguma coisa a respeito, mas sem qualquer atividade nem empenho. Pouco antes de ir estudar em São João li um livro fundamental para mim e para muitos da minha geração, em tradução portuguesa: “História do socialismo e das lutas sociais”, de Max Beer. No ano sanjoanense li a “Evolução política do Brasil”, de Caio Prado Júnior, que me marcou bastante e foi a primeira interpretação marxista da nossa história. A época era de confronto entre esquerda e fascismo, este, representado no Brasil pelo integralismo, que tinha muita aceitação entre os jovens, mas contra o qual sempre fui. O meu interesse mais profundo pela política, e o começo de alguma participação, só se deu na altura de 1942, quando eu já tinha vinte e quatro anos.

 

Rodrigo Falconi – Quais foram as suas relações com o ginásio e a cidade depois que concluiu o curso?

 

Professor Antonio Cândido – São João esteve sempre ligado à minha vida, inclusive porque, como disse, até 1989 eu freqüentava muito Poços de Caldas e, como funcionário do Estado de São Paulo, usava a agência sanjoanense do Banespa. Minha mulher costumava fazer compras numa fábrica de tecidos que havia perto do rio. Sem contar as visitas ao dr. Oliveira Neto. Algumas vezes fiz palestras em meu antigo ginásio, ao longo dos anos. Falei também noutros lugares, como um centro cultural que funcionava em cima do cinema. O meu ensaio sobre Eça de Queirós, “Entre campo e cidade”, publicado em Portugal no livro do centenário do escritor, é o texto de uma palestra que fiz nesse centro. Sem contar que em São Paulo sempre tive por perto gente de São João, alguns formados pelo mesmo ginásio que eu, como Salete de Almeida Cara e Davi Arrigucci Júnior, ambos professores da USP e meus orientados de doutorado, sendo que o segundo fez parte da minha equipe de colaboradores.

 

Agradecimentos

 

          Os mais sinceros agradecimentos ao Professor Antonio Candido de Mello e Souza por ter gentilmente respondido a este questionário, com a simpatia e brilhantismo que lhe é peculiar.

 

*Texto publicado originalmente na II Antologia da Academia de Letras de São João da Boa Vista, onde o Professor Antonio Candido é Membro Honorário.

 

Luis Nassif

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