A revolta absurda e o fascismo, por Paulo Fernandes Silveira

Talvez seja interessante retomar essas ideias e posições para pensarmos sobre as recentes manifestações fascistas vividas no Brasil.

(“Lo Mismo”, 1810-1814, Francisco Goya).

A revolta absurda e o fascismo

por Paulo Fernandes Silveira

            “O sentimento do absurdo, quando dele se pretende, em primeiro lugar, tirar uma regra de ação, torna o crime de morte pelo menos indiferente e, por conseguinte, possível. Se não se acredita em nada, se nada faz sentido e se não podemos afirmar nenhum valor, tudo é possível e nada tem importância. Não há pró nem contra, o assassino não está certo nem errado. Podemos atiçar o fogo dos crematórios, assim como também podemos nos dedicar ao cuidado dos leprosos” (CAMUS, 2011, p. 15).

            A obra de Albert Camus, como de boa parte das autoras e autores identificados com o existencialismo, foi marcada pelos horrores do fascismo, das guerras, dos campos de concentração, de trabalho forçado e de fuzilamento. Em O Estrangeiro (CAMUS, 2019), seu romance mais conhecido, Camus narra a história de uma personagem que não manifesta emoções no enterro de sua mãe e que, após uma briga, sem necessidade, atira e mata friamente uma pessoa. 

            Segundo o autor existencialista, o sentimento da revolta é uma consequência direta do sentimento do absurdo: “a revolta nasce do espetáculo da desrazão diante de uma condição injusta e incompreensível” (CAMUS, 2011, p. 21). Ao proclamar que não crê em nada e que tudo é absurdo, a pessoa reivindica “a ordem no meio do caos” (CAMUS, Ibidem). Num contexto social em que se pode atiçar o fogo dos crematórios ou cuidar dos leprosos, Camus aposta num bom rumo para a revolta. 

            Numa outra interpretação sobre o contexto social que estaria na origem do genocídio promovido pelos alemães na Segunda Guerra, Emmanuel Levinas (2003) e Theodor Adorno (1998) destacam o empobrecimento das experiências coletivas e a falta de abertura para o diálogo e para as relações de afeto. Os horrores do fascismo não se devem aos sentimentos do absurdo e da revolta, mas à indiferença e à frieza cultivadas nessa etapa do capitalismo moderno.

            Talvez seja interessante retomar essas ideias e posições para pensarmos sobre as recentes manifestações fascistas vividas no Brasil. É provável que os sentimentos do absurdo e da revolta tenham marcado as manifestações que derrubaram o governo democrático e libertário de Dilma Rousseff e levado ao poder um grupo político comprometido com medidas segregacionistas. Por outro lado, também é provável que um contexto social de indiferença e de frieza tenha facilitado a adesão de muitas pessoas a esse projeto político segregacionista. Em suas análises sobre o sentimento da revolta, Camus reconhece alguma causa justa em sua origem. Talvez a revolta também possa ser absurda ou irracional, ou seja, sem uma causa justa. Numa sociedade que se cultiva pouco as experiências coletivas, o diálogo e as relações de afeto, as pessoas parecem ser mais vulneráveis às campanhas de ódio e à revolta absurda ou irracional.

            Nos anos 50, o artista, antropólogo e militante Abdias do Nascimento (1982) recuperou algumas ideias de Camus no livro O negro revoltado. A revolta do negro nada tem de absurda ou irracional. Ela é o grito de um povo que enfrenta uma situação de exploração e de genocídio. Num belo texto sobre os “Nossos tempos”, o sambista Matinho da Vila (2021) aponta alternativas para nossa revolta contra as arbitrariedades e os absurdos promovidos pelo atual governo federal, mas é a revolta de alguém que, como Abdias do Nascimento, não perdeu o sentimento da ternura. 

REFERÊNCIAS:

ADORNO, Theodor. Educación después de Auschwitz. In: ADORNO, Theodor. Educación para la emancipación. Madrid: Ediciones Morata, 1998, p. 79-92. Disponível em: https://socioeducacion.files.wordpress.com/2011/05/adorno-theodor-educacion-para-la-emancipacion.pdf

CAMUS, Albert. O estrangeiro. Rio de Janeiro: Record, 2019.

CAMUS, Albert. O homem revoltado. Rio de Janeiro: Record, 2011.

DA VILA, Martinho. Nossos tempos. ‘O mal a gente cura, basta um pouco de ternura’. In: FOLHA DE SÃO PAULO, 15/05/2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2021/05/novos-tempos.shtml

LEVINAS, Emmanuel. De otro modo que ser o más allá de la esencia. Salamanca: Édiciones Sígueme, 2003. 

NASCIMENTO, Abdias. O negro revoltado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. https://ipeafro.org.br/acervo-digital/leituras/obras-de-abdias/o-negro-revoltado/

Paulo Fernandes Silveira (FE-USP e IEA-USP)

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

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