A simbologia do terrorismo doméstico baseado na supremacia branca, por Augusto Fernandes Scapini

Ao tratar de ataques cometidos por supremacistas brancos como “terrorismo doméstico”, Biden confere relevante simbologia a essa questão, em especial quando se observa a difusão dessa ideologia nos Estados Unidos.

Presidente Biden se reúne com 12 líderes da comunidade latina em 3 ago. 2021, na Casa Branca, para discutir a agenda Build Back Better e a reforma migratória (Crédito: @POTUS)

do OPEU – Observatório Político dos Estados Unidos

A simbologia do terrorismo doméstico baseado na supremacia branca

por Augusto Fernandes Scapini

Em 3 de agosto, o presidente Joe Biden se encontrou com líderes de comunidades latinas para discutir algumas das questões sociais que afetam esse segmento da população, como imigração, impacto da pandemia da covid-19, direitos eleitorais, entre outros assuntos. Biden se pronunciou na Sala de Jantar de Estado da Casa Branca, em Washington, D.C., na qual recebeu os convidados, destacando, primeiramente, a importância da vacina contra o coronavírus e do papel dos líderes latinos no incentivo da população a se imunizar. Também enalteceu o plano de infraestrutura aprovado pelo Congresso na semana anterior, destacando os investimentos históricos que aumentarão o número de empregos e a qualidade de vida de toda população, incluindo os residentes de comunidades vulneráveis.

O principal assunto discutido pelo presidente foi, contudo, o aniversário do massacre de El Paso, no estado do Texas, em 3 de agosto de 2019. O massacre foi executado em uma loja pelo texano Patrick Wood Crusius, de 21 anos, inspirado por ideais de supremacia racial, anti-imigração e xenofobia. No atentado, considerado o mais letal contra a comunidade latina no país, 23 pessoas morreram, e outras 23 ficaram feridas. Em carta aberta publicada no jornal El Paso Times, à qual faz menção em seu discurso, Biden expressou suas condolências às famílias das vítimas, reconheceu as consequências do peso emocional a longo prazo, causado pelo luto e pelo trauma, e parabenizou a população local por sua resiliência e capacidade de reconstrução. Também reafirmou sua posição contrária às ideologias que propagam o ódio e a intolerância e, ao mesmo tempo, às políticas de armamento que possibilitam o acontecimento de tragédias como a presenciada em El Paso.

MVS Noticias | Tiroteo en el Paso, Texas/ Ley Garrote | A Todo Terreno
Imagens do circuito interno de televisão mostram autor do tiroteio em El Paso em ação, em uma loja do Walmart, há dois anos (Crédito: AFP)

Esses pontos são aprofundados por Biden em seu pronunciamento, no qual classifica os ataques baseados na supremacia branca como “atos de terrorismo doméstico”. Como forma de impedir o crescimento desses ideais, o presidente informa seus planos de combater a radicalização de grupos que propagam a violência no ambiente virtual e de oferecer melhor segurança para comunidades vulneráveis, por meio de investimentos no policiamento comunitário. Esse tipo de policiamento busca a integração de psicólogos e assistentes sociais às forças policiais, entre outros métodos que visam à mitigação de conflitos por meios não violentos.

No que se refere à posse e ao porte de armas por parte da população nos Estados Unidos, Biden alega que as leis de controle de armas de fogo não infringem os direitos garantidos pela Segunda Emenda Constitucional, pois a posse de armas com carregadores de alta capacidade não é necessária para a defesa pessoal. Por fim, o democrata manifesta seu compromisso com a erradicação das chamadas “armas-fantasma”, ou seja, armas de fogo que são comercializadas sem registro, ou autorização.

Defendido desde sua campanha presidencial, este posicionamento tomou forma mais concreta nos primeiros meses de seu governo. Sua posição vai de encontro à retórica de seu antecessor Donald Trump, que, embora tenha condenado a supremacia branca após a tragédia de El Paso, recusou-se a atribuir o problema à posse de armas. Vale notar que a campanha presidencial do ex-governante foi fortemente financiada pela Associação Nacional de Rifles (NRA, na sigla em inglês), principal organização pró-armamento no país, que exerceu, também, grande influência sobre o republicano acerca das políticas de armamento durante seu mandato.

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O então presidente Donald Trump no encontro anual da NRA, em 26 abr. 2019, em Indianápolis, sua 3ª participação consecutiva neste evento como mandatário dos EUA (Crédito: Evan Vucci/AP)

Atualização do terrorismo doméstico como conceito simbólico

A reunião provocou reações variadas entre os líderes latinos. Os convidados expressaram satisfação por fazerem parte das conversas que tratam de suas comunidades, tornando-se esperançosos em relação aos esforços da administração de Biden em considerar suas necessidades. Membros de grupos mais conservadores demonstraram, porém, desconfiança quanto ao democrata representar os interesses da comunidade latina. Apesar de ser classificada por muitos como um grupo social politicamente homogêneo, essa comunidade apresenta uma diversa multitude de pensamentos e de posições, incluindo aqueles que são contrários ao desarmamento e à imigração.

Ao tratar de ataques cometidos por supremacistas brancos como “terrorismo doméstico”, Biden confere relevante simbologia a essa questão, em especial quando se observa a difusão dessa ideologia nos Estados Unidos. Nesse quesito, por meio de análises históricas e sociais, o ativista e acadêmico Simon Clarke explica como as ideias de supremacia racial voltaram a fazer parte do cenário político do país nos últimos anos. Em seu relatório, Clarke destaca o papel de políticos que permitem que as ideias supremacistas tomem forma na esfera pública, mediante a glorificação do passado racista da nação, o compartilhamento de falsas teorias conspiratórias e a negação da existência do preconceito racial presente na sociedade até os dias atuais. Esses métodos são responsáveis por provocar a radicalização de grupos conservadores e resultam no aumento dos atos de terrorismo doméstico, como observado por especialistas.

Desse modo, é possível entender como a eleição de um presidente republicano que apresenta um histórico de falas racistas e preconceituosas, além de uma retórica baseada no “retorno” do país à grandeza, leva muitos desses grupos a enxergarem a possibilidade de uma “legalização” do ódio e da intolerância. Um exemplo dessa visão ocorreu após um dos debates presidenciais nas eleições de 2020, no qual Trump, ao ser pedido para condenar grupos de supremacia branca como os Proud Boys, disse apenas para “se afastarem e esperarem”. O grupo logo entendeu a frase como um discurso de apoio, incluindo-a nas páginas de suas redes sociais.

Ao afirmar que o “o terrorismo mais letal é o terrorismo doméstico baseado na supremacia branca”, Biden atualiza a definição de terrorismo, conceito que muitos americanos associam apenas à imagem do islamismo. Do mesmo modo, quando afirma que racismo e eugenia são “valores antiamericanos”, o presidente contraria o pensamento que coloca a pureza racial como um esforço patriota e, ao mesmo tempo, deixa claro que os atos de intolerância serão respondidos com a força do governo. Por mais que existam dúvidas sobre o comprometimento de Biden com essa luta interna, a simples condenação pública desses atos, em contraste com a administração anterior, tem um grande peso simbólico que, em si, pode ser capaz de desacelerar a difusão do ódio e da supremacia racial.

Augusto Fernandes Scapini é pesquisador colaborador do OPEU e graduando em Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID/UFRJ).

** Recebido em 13 ago. 2021 e publicado com revisão e supervisão da editora do Opeu e professora colaboradora do IRID/UFRJ, Tatiana Teixeira, e do editor associado do Opeu, Rafael Seabra. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do Opeu, ou do INCT-INEU.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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