Políticas de acolhimento – sabedorias do movimento negro, por Paulo Fernandes Silveira

Entre os preceitos defendidos pelo pré-vestibular da Steve Biko estava a ênfase na autoestima e na identidade negra

(Imagem do Instituto Steve Biko, Salvador – Bahia).

Políticas de acolhimento – sabedorias do movimento negro

por Paulo Fernandes Silveira

            Com um belo texto de apresentação de Benedita da Silva, o livro Escrevo o que eu quero, de Steve Biko, foi publicado no Brasil em 1990. Nos ensaios e entrevistas desse livro, Biko incorpora algumas ideias de Paulo Freire. No início dos anos 70, Biko e Bokwe Mafuna, lideranças do movimento Consciência Negra, fizeram um curso de formação em educação popular com Anne Hope e Sally Timmel, ex-alunas e discípulas do educador brasileiro (HOPE, 2007, p. 6). A partir dos argumentos desenvolvidos em Pedagogia do oprimido (2018) e dos cursos e encontros que tiveram com Freire na Universidade de Boston, em 1969, Hope e Timmel criaram um curso que daria origem à obra Training for transformation.

            Entre as posições de Freire (2018, p. 35) que influenciam a filosofia e o trabalho de militância do Consciência Negra, na África do Sul, destaca-se sua abordagem sobre a humanização das pessoas oprimidas. Nas palavras de Biko, “pensar segundo a linha da Consciência Negra faz com que o negro se considere um ser completo em si mesmo e não como a extensão de uma vassoura ou uma alavanca a mais de qualquer máquina” (BIKO, 1990, p. 87). Seguindo a mesma influência, bell hooks sublinha uma das ideias de Freire (2018, p. 76) que marcou sua trajetória intelectual e sua militância política: “não podemos entrar na luta como objetos para nos tornarmos sujeitos mais tarde” (hooks, 2013, p. 66; 2020, p. 83). Tanto Biko (1990) quanto hooks (2020) sustentam a importância da negra e do negro cultivarem o orgulho, a autoconfiança e a autoestima, especialmente, nos ambientes escolares a acadêmicos. 

            Em 1991, no 41º Congresso da UNE, estudantes da Bahia lançam o manifesto “Nós, os negros”, título de um dos textos do livro de Biko (CARDOSO, 2006, p. 75). Nos anos seguintes, organizações de estudantes negras e negros são criadas em inúmeras universidades brasileiras. Em julho de 1993, estudantes da Universidade Federal da Bahia (UFBA) fundam a Cooperativa Steve Biko, posteriormente, renomeada como Instituto (CARDOSO, 2006, p. 80). Meses depois, a Steve Biko começa a receber as primeiras alunas e alunos do curso preparatório para o vestibular. Nesse mesmo ano, ocorre em Salvador I Seminário Nacional de Universitários Negros (SENUN), onde as experiências desse curso pré-vestibular são compartilhadas com estudantes de diversos estados (CARDOSO, 2006, p. 82).

            Entre os preceitos defendidos pelo pré-vestibular da Steve Biko estava a ênfase na autoestima e na identidade negra (CARDOSO, 2006, p. 123). Contribuiu para isso o fato das professoras e professores serem negras, além da cultura africana fazer parte do currículo do pré-vestibular. Uma das disciplinas implantadas trata, justamente, do tema da “Cidadania e Consciência Negra” (CARDOSO, 2006, p. 131). A ideia foi replicada, no Rio de Janeiro, por frei David dos Santos (SANTOS, 2006, p. 234), com a criação do Pré-vestibular para Negros e Carentes (PVNC) e, poucos anos depois, em São Paulo, pela comunidade negra universitária que fundou o Núcleo de Consciência Negra da Universidade de São Paulo (CUNHA JÚNIOR, 2002, p. 25).

            Uma referência comum nos testemunhos de alunas e alunos que participam desses cursos pré-vestibulares para negras e negros é a preocupação com o acolhimento, presente nesses espaços educacionais e culturais. Não raro, esse mesmo acolhimento inexiste nas universidades. Esse tema é analisado por hooks em vários dos seus textos (2013; 2020). Em alguns casos, como das próprias experiências acadêmicas de Biko e de hooks, a passagem da negra e do negro pelas universidades é marcada por momentos de sofrimento, humilhação e perda da autoestima.

Frente a essa situação, o movimento negro tem recuperado e ressignificado as posições de algumas autoras e autores, como Beatriz Nascimento, Clovis Moura e Abdias do Nascimento, sobre as perspectivas e as possibilidades do quilombismo (BATISTA, 2019). A prática do quilombismo urbano, no interior das universidades ou em outros espaços da cidade, visa criar um lugar de acolhimento para que as pessoas possam elaborar formas coletivas de resistência. Mais do que isso, trata-se de fundar novos espaços de criação, de debate e de organização política.

Paulo Fernandes Silveira (FE-USP e IEA-USP)

REFERÊNCIAS:

BATISTA, Paula. O quilombismo em espaços urbanos – 130 anos após a abolição, Extrapensa, v. 12, p. 397-416, 2019. Disponível em:  https://www.revistas.usp.br/extraprensa/article/view/153780

BIKO, Steve. Escrevo o que eu quero. São Paulo: Ática, 1990.

CARDOSO, Nádia. Instituto Steve Biko – juventude negra mobilizando-se por políticas de afirmação dos negros no ensino superior. 2006, 247f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia, Salvador, 2006. Disponível em: http://www.cdi.uneb.br/site/wp-content/uploads/2016/01/nadia_maria_cardoso.pdf

CUNHA JÚNIOR, Henrique. Contexto, antecedente e precedente: o curso pré-vestibular do Núcleo de Consciência Negra da USP. In: ANDRADE, Rosa; FONSECA, Eduardo (Orgs). Aprovados!: Cursinho pré-vestibular e população negra. São Paulo: Selo Negro Edições, 2002, p. 17-33.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2018.

hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: WMF Marins Fontes, 2013.

hooks, bell. Ensinado pensamento crítico: sabedoria prática. São Paulo: Elefante, 2020.

HOPE, Anne. Building a convivial society: insights from Nyerere and Freire. Fourth Annual Julius Nyerere Memorial Lecture. Cape Town: University of Western Cape, 2007. Disponível em: http://www.theglassishalffull.co.uk/building-a-convivial-society-insights-from-nyerere-and-freire-a-speech-by-anne-hope/

NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo. Pertrópolis: Vozes, 1980.

SANTOS, Renato. Agendas & agências: a espacialidade dos movimentos sociais a partir do pré-vestibular para Negros e Carentes. 2005. 606f. Tese (Doutorado em Geografia) – Instituto de Geociências. Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2006. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=59967

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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