O escândalo e as perguntas do caso do estupro coletivo, por Sylvia Moretzsohn

Jornal GGN – Sylvia Moretszsohn, jornalista e professora da UFF, analisa o caso de estupro coletivo no Rio de Janeiro, sua repercussão e a cobertura da mídia. Para ela, não há dúvida de que houve estupro, mas a comoção com o caso inviabiliza a possibilidade da dúvida e “qualquer questionamento é visto como uma tentativa de culpar a vítima”. Ela questiona pontos levantandos dentro da versão da vítima, como o número de agressores, e também fala sobre os “instintos mais primitivos” que surgem em relação aos suspeitos do caso: “Se os 33 não aparecerem, não será porque não existam, mas porque a polícia não realizou adequadamente o seu trabalho”. 

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Do Afasta de Mim Esse Cale-se

Estupro coletivo: o escândalo e as perguntas
 
Sylvia Debossan Moretzsohn

O compromisso do jornalismo é com a verdade dos fatos. A verdade, entretanto, às vezes não corresponde às nossas expectativas. Daí a atualidade da famosa frase ao final de O homem que matou o facínora, clássico de John Ford de 1962: “quando a lenda se torna verdade, publique-se a lenda”.

No dia 25 de maio começou a circular intensamente nas mídias sociais a informação de que uma adolescente de 16 anos havia sido estuprada por mais de 30 homens. Que estaria em estado de coma num hospital, talvez até já estivesse morta. E que o crime ocorrera em Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio.

Depois se verificou que a moça estava viva e que o fato havia acontecido numa favela de Jacarepaguá, também na Zona Oeste.

Em poucas horas, mais de 800 denúncias chegaram ao Ministério Público do estado. Logo as autoridades policiais do Rio convocaram uma coletiva. O secretário de Segurança e o ministro interino da Justiça também reuniram a imprensa.

O caso repercutiu internacionalmente. No Brasil, os protestos de rua se multiplicaram. No domingo, dia 29, a “Marcha das Flores – 30 contra todas”, em Brasília, foi reprimida ao levar rosas para serem depositadas na estátua da Justiça, em frente à sede do STF, e gritou palavras de ordem contra “Gilmar (Mendes), protetor de estuprador”, em alusão ao papel do ministro no caso do médico Roger Abdelmassih. A indignação contra o crime se misturava à onda de contestação ao golpe jurídico-midiático-parlamentar que afastou, pelo menos provisoriamente, a presidente Dilma Rousseff do governo.

Cresciam também os protestos contra a condução do caso pela polícia carioca. O delegado responsável estaria constrangendo a vítima ao lhe perguntar detalhes sobre sua vida íntima. Detalhes que pouco deveriam importar para a investigação, pois o que está em causa é uma denúncia de estupro, essa violência inominável que precisa ser punida na forma da lei. Finalmente o caso passou para a delegacia especializada em crimes contra crianças e adolescentes e vai ser conduzido por uma mulher.

Que houve estupro não há dúvida, como a própria delegada afirmou e a Folha de S.Paulo já havia esclarecido: “no vídeo divulgado em redes sociais, um grupo de homens, em meio a risadas, toca nas partes íntimas da garota inconsciente”. Só isso, independentemente do depoimento dela ou do exame de corpo de delito, já caracteriza o crime, tendo em vista que, desde 2009, com a alteração da lei 12.015, também os atos libidinosos, e não apenas a conjunção carnal, são definidos como estupro. Houve ainda, comprovadamente, outro crime: a filmagem e divulgação do vídeo pornográfico na internet, conforme o artigo 241 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Deveria ser o bastante para causar repulsa e revolta. Mas havia esse ingrediente a mais: um estupro coletivo, praticado por 33 homens.

Trinta e três? Será verdade?

No trecho do vídeo da entrevista que o repórter Roberto Cabrini, do SBT, fez com a jovem, ela diz: “quando eu acordei a luz tava acesa e um montão de gente em cima de mim. Tipo assim, 33 homens. Eu contei”. Em outro trecho da entrevista, reproduzida no site do Globo, ela diz: “meu amigo chegou na casa e saiu batendo nos garotos, ‘solta ela, solta ela’, e me pegou, catou as minhas roupas e falou, ‘se veste, se veste’. Aí eu fui e saí”.

Já na entrevista a Vinícius Dônola, que foi ao ar no Domingo Espetacular, da Record, a menina diz que contou “uns 28, por aí”, mas alguém disse 33, depois 36, 38.

Em primeiro lugar, caberia discutir a validade desse tipo de entrevista, embora saibamos os motivos que levam os jornalistas a fazê-la, ainda mais na televisão: explorar um caso desses dá audiência, excita o voyeurismo. Mas faz sentido expor uma jovem, mais do que já foi exposta? Que coerência se pode esperar de uma pessoa – pior, uma adolescente – que vive esse turbilhão de emoções diante dessa súbita e indesejada notoriedade?

Entretanto, são essas entrevistas que permitem questionar: uma pessoa atordoada e intimidada diante de tamanha violência, além de dopada, teria serenidade e discernimento para contar o número de agressores? Um único homem teria condição de enfrentar outros 33, alguns deles armados, e libertá-la?

A referência ao número de estupradores aparece no vídeo que circulou na internet: alguém diz “mais de 30 engravidou”. Seria, como afirma o advogado de um dos identificados pela polícia, referência a um funk popular na favela.

Mais: uma pessoa submetida a tamanha brutalidade teria sobrevivido, ou pelo menos não estaria com muitas sequelas físicas?

Por que a imprensa não levantou, logo de saída, essas dúvidas? Talvez porque isso retiraria a força do impacto que, inicialmente, a história causou. Talvez porque não queira contrariar o clamor público que, desta vez, começou nas redes virtuais, e não como resposta a uma notícia bombástica produzida pela mídia tradicional.

Agora, talvez, as coisas transcorram de outra maneira, com a notícia de que a delegada que assumiu o caso irá investigar a extensão do abuso: “se foram cinco, dez ou 30”. Resta saber quais serão as consequências de uma possível reversão de expectativas.

Ninguém deveria poder roubar do jornalismo o direito – de fato, a obrigação – de fazer perguntas. Entretanto, o clima de comoção que se criou inviabiliza a possibilidade da dúvida: qualquer questionamento é visto como uma tentativa de culpar a vítima, mesmo que as perguntas não tenham nada a ver com a sua vida íntima e sim com a tentativa de esclarecer o que de fato ocorreu. Não se aceita nada que não corrobore a convicção estabelecida desde o primeiro instante.

Da mesma forma, o clima de comoção vem despertando, como de hábito, aquilo que um famoso deputado classificou, certa vez, de “instintos mais primitivos”: mesmo entre gente bem formada se multiplica o desejo de que os 33 monstros recebam na cadeia o mesmo tratamento que deram à jovem – isso, claro, quando não se pede abertamente que sejam executados. Se os 33 não aparecerem, não será porque não existam, mas porque a polícia não realizou adequadamente o seu trabalho.

Houve também quem, diante de um questionamento feito privadamente, dissesse que tanto fazia se eram três ou 33, a gravidade era a mesma. Será?

Na mesma semana circulou a notícia de um estupro coletivo em Bom Jesus, no sul do Piauí. Uma adolescente havia sido atacada por quatro jovens, três deles também menores de idade. O caso teve pouca repercussão. A gravidade não é a mesma?

Com certeza é, mas então por que não nos indignamos da mesma forma? Por que precisaríamos de um número impressionante para nos escandalizarmos? Um estupro individual, ou mesmo coletivo, mas com poucos participantes, e a humilhação pública de uma mulher num vídeo já se tornaram fatos banais?

A facilidade com que se formou o consenso em relação ao número de estupradores, inclusive entre jornalistas de renome, deveria dizer algo sobre a adesão automática a uma notícia chocante: é como se o espanto anulasse a capacidade crítica, em vez de despertá-la.

Enquanto isso, um dos identificados como participante do crime logo se apresentou à polícia e garantiu que é inocente. Inicialmente, foi liberado. Agora, está preso. Se de fato não tiver nada a ver com a história, quem lhe retirará a pecha de estuprador?

Talvez isso não importe, tendo em vista que se começa a disseminar o argumento de que todo homem é um estuprador em potencial. A intenção declarada é alertar as mulheres para a sua vulnerabilidade e ajudá-las a reagir. Mas, em nome de uma causa essencial – essa do combate à cultura do estupro –, talvez não se perceba a que linha ideológica esse pensamento se filia, nem as consequências que ele pode ter para o convívio social.

***Sylvia Moretzsohn é jornalista, professora do Departamento de Comunicação Social da UFF e faz parte do Conselho de Ética do Sindicato de Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro.

 

Redação

5 Comentários

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  1. Cooptação do feminismo pelo governo usurpador
    E percebendo esse descaminho apontado pelo autor do artigo “A cultura do estupro e o silêncio masculino: contingências pós-modernas”, de Ricardo Cavalcanti-Schiel, o governo usurpador vem fazendo concessões a esse feminismo raivoso, cujas manifestações vêm se tornando um mero “dois minutos de ódio” orwelliano.

  2. 33

    Acho que cabe uma ponderação em relação às inúmeras dúvidas que foram expressas em relação à veracidade do número 33.

    Muitos perguntaram se a menina contou-os um a um.

    Esta é uma pergunta que me parece ter a intenção de procurar pelo em ovo. 

    Quantas vezes não empregamos, para indicar um número grande, que não tivemos condições de precisar, expressões vagas como “trocentos”, “infinidade”, ou menos vagas, mas igualmente imprecisas como “centenas”, “milhões” ou até mesmo um número, supostamente preciso, como “trinta e três” ou “quinhentos e quarenta e sete”?

    A ideia em todas essas expressões é a de indicar um número grande, não necessariamente contado.

    “Mal cheguei e já fui cercado por meia centena de crianças que queriam entregar seus pedidos a Papai Noel”.

    “Difícil dar uma aula quando quarenta e cinco alunos não param de conversar”.

    “Eram sessenta e quatro adultos se comportando como adolescentes”.

    Será que em todos esses exemplos alguém questionaria se o autor das frases teria efetivamente contado as crianças, alunos ou adultos?

    Eu entendo que a menção ao número 33, proferido pela jovem, não tenha tido a intenção de fazer uma descrição precisa, mas sim uma ordem de grandeza, talvez um pouco exagerada, por motivos mais do que justificados.

     

  3. Escola

    Sera que teremos uma repetição de tão famoso caso da  ESCOLA BASE.

    Onde pode ser acusado qualquer um que tenha andado perto da casa ou ter ajudado a jovem no dia do crime.

    E lembro ate que o Nassif foi um dos primeiro a comentar criticamente a forma de como o “crime” estava sendo investigado  e como a midia tratava o caso.

    Então pergunto, sera que estamos vendo a repetição do caso?, so o tempo dira.

     

     

  4. o escândalo….

    Somos a República da Hipocrisia. Calhordas quase por construção genética. Bastou o fato ter tido repercussão, a mídia já se apoderou da sua função de promotor, juiz e carrasco. Sem perder um só minuto já declarou instalado o Clamor Público. Autoridades públicas e judiciais desesperadas por empurrar a pecha da sua incompetência transmitida pela imprensa nacional e principalmente internacional, despacharam prontamente o veredito: Culpado!!! Teje preso!!! Esfreguem a cara do “culpado” naquele jornal entre as novelas. Algemado e de bico calado. É claro. “Negro, pobre, cobertura midiática é bola pingando na pequena área”. Façam valer a Constituição que diz que o suspeito é culpado até que prove sua inocência. E vá provar sua inocência atrás das grades do Presidio de Bangu. Afinal se já decidimos que o inocente suspeito é suspeito culpado, para que esperar até um julgamento, não é mesmo?! Este é o Brasil, inclusive daqueles que se vangloriam defensores dos direitos humanos. Uma chacoalhada de um certo clamor públco para revelar o que este país tem por baixo.

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