O debate insólito sobre Ramón Carrillo como nazista

É pelo menos curioso que a controvérsia sobre o "nazismo" de Carrillo só tenha surgido nos dias de hoje, quando tantos hospitais e instalações médicas levam seu nome.

Juan Domingó Perón, Eva Perón e o médico argentino Ramón Carrillo

Enviado por Jota Botelho

Do Pagina 12

O debate insólito sobre Ramón Carrillo como nazista

A versão que o sanitarista argentino apareceria em uma cédula bancária que nem sequer apareceu desatou uma reveladora polêmica sobre seu passado. Reveladora por exibir como opera a oposição de direita – o partido macrista – em plena pandemia para enfraquecer o governo com discussões difamatórias.

O DEBATE INCOMUM COMEÇOU COM UMA NOTÍCIA DESMENTIDA

Primeiro, espalhou-se a notícia de que uma cédula de 5.000 pesos seria exibida, algo que foi rapidamente negado pelo próprio Presidente. Além do fato de que tal cédula não virá a luz proximamente, foi publicado que o Banco Central havia planejado que, quando fosse feita, levaria as imagens do sanitarista Ramón Carrillo e da médica Cecilia Grierson, duas figuras centrais da medicina nacional. De acordo com o presente pandêmico, o Instituto Malbrán deveria ilustrava o contrário. Até então, tudo mais ou menos normal, até a decisão da mídia de ignorar a negação oficial de uma versão jornalística.

O incomum surgiu quando, no domingo, Shimon Samuels e Ariel Gelblung, diretores do Centro Simón Wiesenthal para a América Latina, rejeitaram a suposta escolha de Ramón Carrillo para a cédula de dinheiro devido às suas inclinações nazistas ainda mais hipotética. O assunto foi abordado imediatamente pelo ex-secretário de Direitos Humanos de Mauricio Macri, Claudio Avruj, e por um pouco diplomático tweet do embaixador de Israel na Argentina, Galit Ronen. “Quando dizemos ‘Nunca mais’ referindo-se ao Holocausto, não faz sentido comemorar alguém que, pelo menos, foi um simpatizante dessa ideologia”, disse Ronen, sem dar mais detalhes.

Alberto Fernández recibido em Israel com a embaixadora Galit Ronen.

Além de ser o braço direito de Rubén Beraja, Avruj é dono da agência de notícias Vis-a-vis da comunidade judaica, juntamente com Guillermo Yanco, parceiro do ex-ministro e atual chefe do PRO, Patricia Bullrich. A versão latino-americana do Centro Wiesenthal também tem uma longa história de colaboração com o PRO em suas tentativas de transformar, contra todas as evidências disponíveis, a morte de Nisman em um crime de estado.

(Entre parênteses, o embaixador da mídia no Reino Unido, Mark Kent, acrescentou um de seus habituais tweets à confusão geral: “O nazismo foi o maior mal do século XX. Isso levou ao Holocausto. A morte de milhões de inocentes. Não devemos comemorar ninguém que participou desse terrível episódio”.)

MÃO DO PRO

A resposta veio primeiro de outro setor da comunidade, o Centro Comunitário Judaico Argentino, que em um comunicado repudiou o “agravo à memória do Dr. Ramón Carrillo”. Ele qualifica de infames as acusações de Avruj e considera “uma repetida afronta à memória histórica de nossa Pátria, cujo objetivo busca associar em forma inadmissível o movimento nacional e popular com o fascismo. Também que o embaixador do Estado de Israel tenha decidido se envolver em um tema vinculado à imagem de uma cédula bancária Argentina, sem sequer requerer informações acadêmicas de renomados historiadores israelenses como Raanan Rein.”

A menção do historiador não é inocente. Atualmente, Rein é vice-presidente da Universidade de Tel Aviv, onde também fundou e dirige o Centro Daniel Abraham de Estudos Internacionais e Regionais. Especializado na história argentina, especialmente do peronismo, ele também é membro da Academia Argentina de História e ex-presidente da Associação Latino-Americana de Estudos Judaicos. Tem mais de 30 livros publicados (incluindo Los muchachos peronistas judíos y Los muchachos peronistas árabes) e centenas de artigos em revistas acadêmicas.

A Comunidade Judaica Argentina também distribuiu uma nota de sua autoria sobre o assunto, que merece ser reproduzida na íntegra:

OS PECADOS DE RAMÓN CARRILLO
Por Raanan Rein

Nascido na Ucrânia em 1898, Solomon Chichilnisky chegou com sua família de Odessa para a Argentina no início do século XX, no âmbito do plano de colonização agrícola do Barão Mauricio Hirsch, que procurava resolver o problema das dificuldades judaicas no império russo.

Da colônia de Palmar Yatay, em Entre Ríos, começou a trajetória que o levou pelo Colégio Nacional de San Isidro até a Universidade Nacional do Litoral  em Rosário. Já médico, em 1937, Salomón tratou Ramón Carrillo de hipertensão e salvou sua vida. Ambos os colegas, paciente e terapeuta, desenvolveram uma sólida amizade e Chichilnisky tornou-se um colaborador próximo do Ministro da Saúde no primeiro governo peronista. Dentre os cargos que ocupou, destaca-se o de Diretor Geral do Serviço Nacional de Extensão Hospitalar e Hospital Domiciliar. A suposta admiração de Carrillo por Hitler nunca surgiu na longa amizade entre os dois.

De onde surgiu então esta acusação contra Carrillo como admirador do Führer? Antes de tudo, pela mesma lógica que se Perón estava na Itália no tempo de Mussolini, ele necessariamente se tornou fascista. Então, se Carrillo visitou a Alemanha na década de 1930, isso não significa necessariamente que ele se tornou nazista? A resposta simples é não, tanto em relação a Perón quanto em relação a Carrillo. Por sua brilhante carreira acadêmica, a UBA concedeu a Carrillo uma bolsa de estudos de dois anos para aperfeiçoar seus conhecimentos em neurocirurgia na Europa. Ele visitou instituições médicas em Amsterdã, Paris e Berlim. É provável que na Alemanha ele tenha testemunhado uma manifestação com Hitler, como conta em seus trabalhos a historiadora Karina Ramacciotti.

Em 1933, Carrillo já estava de regresso a Buenos Aires. Em sua viagem, ele conseguiu ouvir a oratória de um líder alemão em seu início político. Naquela época, a maioria das pessoas não podia imaginar como a política do nacional-socialismo evoluiria ao longo da década de 1930, sem mencionar a Guerra Mundial, suas conseqüências catastróficas ou a hecatombe sobre o  povo judeu. Em 1935, Winston Churchill ainda era capaz de escrever: “É nesse mistério do futuro que a História declarará Hitler como um monstro ou um herói”. Isso significaria que devemos considerar Churchill como tolerante com Hitler e nazismo? (Grifo nosso: Claro que sim, a burguesia mundial e os países imperialistas adoraram o surgimento do nazi-fascismo. Churchil era fã de Mussolini).

Ramón Carrillo

Mas há três razões adicionais para essa acusação contra Carrillo e é necessário contextualizá-las para não cair no anacronismo ou na tentativa de impor ideias e conceitos do início do século XXI às posições de figuras públicas do passado. Carrillo apoiou a neutralidade argentina na Segunda Guerra Mundial. Mas essa posição foi aparentemente compartilhada pela maioria dos argentinos. Essa maioria era pró-nazista? Quatro presidentes, dois civis e dois militares, favoreceram essa política por várias razões. E, de fato, essa linha, que desde 1942 enfrentou a Argentina contra os Estados Unidos, servia aos interesses dos britânicos e contribuía para a sobrevivência da população civil bombardeada pelos alemães, com remessas de alimentos dos portos argentinos. Se houvera declarado guerra ao Terceiro Reich, os submarinos alemães teriam torpedeado os barcos em seu caminho desde as ilhas britânicas.

E, finalmente, Carrillo está envolvido na entrada na Argentina de um oficial dinamarquês da SS, Carl Peter Vaernet, que havia trabalhado no campo de concentração de Buchenwald, experimentando hormônios para “curar” a homossexualidade. Pelo menos 13 pessoas morreram com esses tratamentos. Muitos criminosos entraram na Argentina, escapando de possíveis ações judiciais contra eles na Europa. No entanto, deve-se ter em mente que o esforço para recrutar cientistas após o término da guerra foi comum a muitos países e, nesse caso, pode ter influenciado a participação de Carrillo na escola de neurobiologia germano-argentina. Mas Carrillo deve ser avaliado acima de tudo pelo lugar chave que ocupou na administração pública peronista por oito anos e por sua contribuição crucial para o desenvolvimento do sistema de saúde, a promoção da medicina social, a construção de centenas de hospitais, a redução da mortalidade infantil ou mortes por tuberculose. Por essas conquistas, ele merece uma homenagem; se tem que ser por uma cédula ou não, é outra história. (Versão em espanhol: Eliezer Nowodworski)

 O QUE CARRILLO FEZ?

 Além do artigo de Rein, a Comunidade Judaica também distribuiu um longo relatório ao médico sanitarista Efraín Venzaquen, realizado em 2014 por Víctor Ramos e reproduzido pelo Instituto Argentino de Desenvolvimento Econômico. Se intitula “A história de Ramón Carrillo é a de um herói e um mártir” e nela o entrevistado considera que “existe um antes e um depois na história da saúde pública argentina desde a a ascensão do peronismo e a nomeação do Dr. Ramón Carrillo como Secretário de Saúde em 1946 e elevando a estrutura ao posto de ministério e nomeando-o ministro em 1949 ”.

 – O que você pode nos dizer sobre o Dr. Ramón Carrillo?

– Ramón Carrillo foi para a saúde pública o que Sarmiento foi para a educação. Nasceu em Añatuya, Santiago del Estero, em 7 de março de 1906, e foi colega de Homero Manzi na escola primária. Mais tarde, isso os vinculou ao grupo FORJA, que produziu a mais alta expressão do pensamento nacional desde 1935 até a ascensão do peronismo a que se uniram. A história de Carrillo é a história de um herói e um mártir. Chegou a Buenos Aires em 1924, quando tinha apenas 17 anos, aos 36 anos já era professor titular da Faculdade de Medicina, da qual seria decano muito brevemente, depois se tornou o melhor Ministro da Saúde da história da Argentina e finalmente morreu perseguido, caluniado e abandonado em um lugar distante do Brasil, assolado por terríveis dores físicas e da alma. Foi o maior defensor da criação de um sistema de saúde pública que ainda não temos hoje. Durante seu mandato (1946-1954), criou mais de 240 novos centros de saúde, dobrando o número de leitos hospitalares e levando a assistência a lugares onde antes não existiam.

– Ramón Carrillo foi para a saúde pública o que Sarmiento foi para a educação. Nasceu em Añatuya, Santiago del Estero, em 7 de março de 1906, e foi colega de Homero Manzi na escola primária. Mais tarde, isso os vinculou ao grupo FORJA, que produziu a mais alta expressão do pensamento nacional desde 1935 até a ascensão do peronismo a que se uniram. A história de Carrillo é a história de um herói e um mártir. Ele chegou a Buenos Aires em 1924, quando tinha apenas 17 anos, aos 36 anos já era professor titular da Faculdade de Medicina, da qual seria decano muito brevemente, depois se tornou o melhor Ministro da Saúde da história da Argentina e finalmente morreu perseguido, caluniado e abandonado em um lugar distante do Brasil, assolado por terríveis dores físicas e da alma. Foi o maior defensor da criação de um sistema de saúde pública que ainda não temos hoje. Durante seu mandato (1946-1954), criou mais de 240 novos centros de saúde, dobrando o número de leitos hospitalares e levando a assistência a lugares onde antes não existiam.

Ramón Carrillo

Mas, acima de tudo, tentou planejar as políticas de saúde, ordenando os recursos e convencendo outros atores a participar, conforme apropriado. Foi assim que, juntamente com o máximo especialista em malária, Dr. Juan Carlos Alvarado, eles conseguiram eliminar esta doença do território argentino. Dada a falta de apoio dos médicos tradicionais para sua estratégia, Carrillo saiu para fumigar em um Jeep. É importante ressaltar que tantas inovações lhe renderam muitos inimigos poderosos. Com a morte de Evita, em 1952, perde sua melhor aliada e depois renunciou em 1954. Para Carrillo, a saúde era um bem social inseparável do bem-estar geral, isso o aproximou de Perón, mas não o poupou de inimigos. Sua frase mais famosa diz tudo: “Em face das doenças que a miséria gera, em face da tristeza, a angústia e o infortúnio social dos povos, os micróbios, como causas de doenças, são unas pobres causas”. Obviamente, isso não era bem visto nem pelos que se recusavam a distribuir a riqueza nem pelos que pretendiam, e ainda pretendem, envolver a medicina nas técnicas acadêmicas de curar doenças.

O presente

Outras respostas vieram da mão do neto homônimo de Ramón Carrillo, que também no Twitter mostrou uma placa de presente que ele fez para seu avô, em 1954, o Ministro da Saúde de Israel. Nele se lê: “A Ramón Carrillo, Ministro da Saúde Pública da República Argentina. Um pequena  memória da Saúde Pública do Estado de Israel. Joseph Berlin. Jerusalém 3-V-1954.

Acá les dejo un regalo del Ministro de Salud Pública de Israel a mi abuelo, Dr. Ramón Carrillo, como Ministro de Salud de Argentina. Jerusalém, 1954.

É pelo menos curioso que a controvérsia sobre o “nazismo” de Carrillo só tenha surgido nos dias de hoje, quando tantos hospitais e instalações médicas levam seu nome. Forçado ao exílio pela “Revolução Libertadora”, o criador do sistema de saúde argentino morreu na pobreza em Belém do Pará, Brasil, em 20 de dezembro de 1956, com apenas 50 anos.

A jornada de Santiago del Estero, sua terra natal, até sua morte, é minuciosamente retratada na obra de seu biógrafo, o historiador Charo López Marsano. Dos seus trabalhos, que merecem uma leitura detalhada , surgem a maioria dos dados conhecidos hoje em dia.

Também vale a pena revisar um trabalho muito menos ambicioso de Matías Cañueto, “Configurações de Gênero na Argentina (1930-1955)” , apresentado na Conferência de Corpo e Cultura da Universidade Nacional de La Plata, realizada em maio de 2008. Este artigo, que contrasta as visões de Ramón Carrillo com as de Eva Perón, inclui várias das menções que os críticos do sanitarista farão para exemplificar seu suposto “nazismo”.

Assista o doc. abaixo:

Carrillo – El médico del Pueblo

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Fonte:
https://www.pagina12.com.ar/266788-el-insolito-debate-sobre-ramon-carrillo-nazi,

 

 

Jota Botelho

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