Samba-enredo colocou dedo na ferida dos direitos indígenas, por Julio José Araujo Junior

Jornal GGN –  O samba-enredo da escola Imperatriz Leopoldinense, do Rio de Janeiro, irritou setores do agronegócio ao fazer a defesa dos indígenas e criticar a utilização de agrotóxicos. Para o procurador da República Julio José Araujo Junior, o caso é um sintoma do estágio atual da violação dos direitos dos povos indígenas no país. “Há uma ofensiva para esvaziar as conquistas da Constituição de 1988, mesmo que isso implique o etnocídio de grupos que se insurgem contra isso”, afirma.

Em artigo publicado no jornal O Globo, Araujo Junior que, no Congresso, só evoluem projetos que “tratem da criminalização de práticas socioculturais, da exploração de recursos minerais e hídricos em terras indígenas e da revisão dos processos de demarcação”. No Executivo, o enfraquecimento da Funai parece ser um projeto de governo, e o Judiciário “continua fechado ao respeito aos modos de vida dos índios”.

“O incômodo com parte do enredo se deu porque ele mostra os povos do Xingu como vítimas do presente, e não de um passado longínquo”, afirma o procurador. Leia mais abaixo:

Do O Globo

Dedo na ferida

por Julio José Araujo Junior

A imprensa noticiou uma forte reação de setores do agronegócio contra o enredo sobre os povos do Xingu que a Imperatriz Leopoldinense vai apresentar no carnaval 2017. Um ponto em especial provocou a ira dos ruralistas: a descrição dos indígenas como defensores do meio ambiente em oposição a fazendeiros, ao uso de agrotóxicos e aos efeitos devastadores ao meio ambiente causados por Belo Monte. Além de notas de repúdio, foi prometida uma CPI para apurar o financiamento da escola.

O episódio é muito mais do que uma aparente insatisfação com aspectos da sinopse do enredo. Trata-se de um sintoma do atual estágio do processo de violação de direitos dos povos indígenas no país, sentido em todas as esferas do Estado brasileiro. Há uma ofensiva para esvaziar as conquistas da Constituição de 1988, mesmo que isso implique o etnocídio de grupos que se insurgem contra isso.

O Congresso tem sido uma avenida em que o projeto de Estatuto das Sociedades Indígenas está parado na concentração há décadas e por onde só evoluem projetos que tratem da criminalização de práticas socioculturais, da exploração de recursos minerais e hídricos em terras indígenas e da revisão dos processos de demarcação. No Executivo, o enfraquecimento da Funai, que já vinha ocorrendo paulatinamente, parece agora ser um projeto de governo, a ser executado por adversários da causa indígena. E o sistema de Justiça continua fechado ao respeito aos modos de vida dos índios, como demonstra a fixação de um marco temporal para limitar o direito à terra, segundo o qual só fazem jus ao território quem nele estava em 5 de outubro de 1988, época em que ainda eram vistos como seres inferiores.

Enquanto isso, a violência contra os povos indígenas vem aumentando, tendo o número de mortes por assassinato saltado de 92, em 2007, para 138, em 2014, conforme dados do Conselho Indigenista Missionário. Após visita ao país em 2016, a relatora da ONU sobre direitos indígenas apontou preocupação com o cenário e destacou que os povos indígenas enfrentam hoje riscos mais graves do que em qualquer outra época nesta Nova República.

Submetidos a violências não apenas reais, mas também simbólicas, os povos indígenas e as suas manifestações sempre foram silenciados ou tratados como não existentes, salvo quando lhes cabia uma posição folclorizada, subalternizada, idealizada ou distanciada, como aquela que retrata as chegadas das caravelas, a naturalização da inferioridade e o triunfo da mestiçagem. A “novidade” dos últimos tempos está na ofensiva a qualquer preço para silenciar qualquer discurso que exija o cumprimento da Constituição. Um exemplo é a CPI da Funai, que, sem fato determinado a apurar, investiga antropólogos e põe em xeque as demarcações.

O incômodo com parte do enredo se deu porque ele mostra os povos do Xingu como vítimas do presente, e não de um passado longínquo. São rejeitados por um projeto excludente de país, que não respeita a natureza e nem seus modos de vida, situação também vivenciada por muitos outros povos tradicionais. É inspirador, portanto, ver o carnaval, cultura popular por excelência, deixar de veicular acriticamente a versão do colonizador e dar voz aos indígenas eternamente silenciados. Se descolonizar é preciso, como diz o samba, o meu sonho de ser feliz vem de lá de Ramos.

Julio José Araujo Junior é procurador da República, coordenador do Grupo de Trabalho Povos Indígenas e Regime Militar, da 6ª Câmara do MPF

Redação

1 Comentário

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  1. samba….

    Visão fundamentalista esquerdopata. Existem povos indigenas na maior cidade e no maior estado do país. E são tratados como párias, descaradamente descriminados no berço da centro esquerda nacional e por governos atualmente constituídos representados por esta ifeologia. Antes de falar em Xingu, vá veridicar a situação dos indigenas no bairro do Jaragua e Parelheiros, dentro da capital paulista. Ou povos indigenas estabelecidos na Serra do Mar entre Ubatuba e Vale do Ribeira ou na divisa do estado com o MS. É muito cinismo e cara de pau acusar apenas os interesses das atividades rurais. E aprobeite como autoridade constituida de verificar a situação dos mandatários das Escolas de Samba, “gângsters” que lavam dinheiro do jogo ilicito e trafico de drogas. Enquanto a incompetência, a omissão fora a cumplicidade do MP em não verificar a situação de instituições com intensas atividades criminosas, inclusive as usando como exemplo, gastam seu tempo e o precioso dinheiro dos contribuintes brasileiros para perseguir a atividade econômica mais importante do país. Por que será que estamos nesta situação? 

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