A morte de João Kleber Jurity, um grande poeta que não se fez

A Filó liga para me informar que acaba de falecer meu amigo João Kleber Jurity, o Cidadão – como costumávamos nos saudar. Sabe daqueles amigos que você planta na adolescência e traz para o resto da vida? Pois tive três, o Zé Grandão, o Tião Cabo Verde e o Cidadão. O Caiuby vai reclamar da sua ausência da lista, mas é porque depois de adulto percorreu outros caminhos.

De Aguaí, o João foi completar o clássico no Instituto Educacional Coronel Cristiano Osório de Oliveira, em São João. Lá nos conhecemos e tivemos ligação instantânea.

Um completava o outro. Eu conheci bem música popular brasileira, ele, a internacional, especialmente o rock e o jazz. Eu gostava da prosa, ele dos versos. Eu gostava de compor músicas, ele, poesias.

Fomos parceiros em uma dúzia de músicas.  Juntos, desbravamos a Semana de 22, o Tropicalismo, a poesia concreta, Guimarães Rosa a Kafka, que ele trouxe para nossas parcerias com uma qualidade invejável para um menino de 18 anos.

João tinha uma sensibilidade única para entender o espírito da música. Comecei a compor “Congresso Internacional do Medo”, música que venceu uma das edições da Feira Permanente da MPB na extinta TV Tupi. Foi em pleno caos criativo que o Tropicalismo abriu para a música brasileira e nós, secundaristas do interior, procurávamos beber. E veio João com uma marcha rancho inserindo na música – que falava sobre a insegurança econômica trazida pela recessão de Roberto Campos – o senhor K, de Kafka, um primor de poema.

“Senhor K insone e seco espera

Um não vir nunca.

Pesadelos, olhos de Abel, panes na Justiça,

Gengis Khan….

 

Forasteiro em sua terra o senhor K

Troca a audácia

Pela cova do descanso

E a crucificação cotidiana

Plantado em seu meio dia

Arrisca um gesto enquanto o Dragão não vem”.

 

Na hora de apresentar, em São Paulo, a censura invocou que Senhor K seria propaganda subliminar de Juscelino Kubitscheck. Tivemos que trocar para senhor F.

Mas era a preparação para o grande final, um dixieland que incluímos na música por dicas do guitarrista Alemão e do multiinstrumentista Hermeto, que participaram do festival.

No mesmo Festival de Poços em que o Congresso venceu, a terceira colocada era outra parceria, com João emulando o estilo Guimarães Rosa, em “Chico Heroi”.

 

Chico Herói

Trilhado de pensares

Carregado de pesares

Intenta o mundo mudar.

 

E ele, vivo, vido, pensado

Em desalegrias letrado

Não vê, nem em frente, nem em mente

 

Que só a gente é mudança

Que pela frente há uma estrada

Que não leva nem a nada

Nem começo, nem subida

Nem nada para se ver

Apenas um longo andar.

E caminhar nessa estrada

É que é importante saber.

 

Conseguimos o feito de mais duas músicas censuradas. Uma delas no estilo da música concreta, devido ao termo “bengala gala”. O censor foi ao dicionário e constatou que no nordeste gala significa esperma de galo. E deixou a música galada.

Se em lugar de um parceiro que escolheu o jornalismo e abandonou a composição tivesse encontrado outras parcerias, teria sido um novo Torquato Neto, tenho certeza.

Mas, assim como o Senhor K de seus poemas, João tinha um receio enorme de ousar. E penso quantos talentos não se realizaram por esse medo.

Enfrentar São Paulo não é fácil. Em Poços, São João ou Aguaí era mais fácil nos destacarmos. Passei alguns fins de semana em Aguaí, na casa do João, e pude testemunhar a admiração que provocava nos seus amigos e conterrâneos.

João era filho único de um casal simpatícissimo, seu João, ponderado, funcionário público municipal, que jamais se arriscava, e sua mãe exigente, dominadora. Acho que contribuiu para sua timidez, pelo meno de fracassar.

Uma das vezes ele me levou para tocar nossas composições no clube local, no intervalo de um bailinho local. Chegando lá, o guitarrista do conjunto não apareceu e tive que improvisar, tocando duas horas músicas de dançar.

Acredito que, dentre os presentes, estava uma mineira de Belo Horizonte, de nome Dilma Rousseff, que costumava visitar a tia em Aguaí e participar dos bailinhos locais naquela mesma época.

Quando chegamos em São Paulo, o tamanho da cidade grande atemorizou. De quinze em quinze dias íamos para nossas cidades tomar influxos de autoestima.

Nos primeiros anos, mantivemos contatos, reunindo-nos sempre no apartamento que Cássia e Miltinho Trezza tinham no viaduto Dona Paulina.

Depois, gradativamente João foi se afastando. Após alguns anos distantes, quando nos reencontramos de novo, perguntei a razão do afastamento. É que ele passou a trabalhar em uma agência de publicidade e a se vestir como os publicitários da época, de echarpe e outros modismos da publicidade.

·       E você não dava folga! Era só aparecer diferente para caçoar de mim. Eu queria desbundar e você não deixava.

Desbundar era isso, um xale no pescoço, uma gola rolê e, de vez em quando, um fuminho. O espírito de dona Tereza, minha mãe, não me deixava quieto em situações fora do normal.

Aos poucos retomamos de novo o contato. Fui seu padrinho de casamento, com uma moça de Itapira. O casamento não durou muito.

Quando lancei a seção Dinheiro Vivo, na Folha, tentei que ele participasse do fechamento, para ir aos poucos entrando no jornalismo. Tinha tudo para ser um grande crítico de música. Mas o temor de fracassar mais uma vez falou mais alto.

Nas últimas vezes que nos falamos, lembrava detalhe por detalhe nossos momentos, os episódios engraçados em São João, atazanando a dona Adélia, as letras de todas as músicas. Sabia muito mais de mim, naqueles tempos, que eu próprio.

Teve um fim de vida complicado, com uma diabetes mal diagnosticada por médicos. Muito doente, mudou-se para Rio Claro, sendo cuidado pela mais dedicada companheira que uma pessoa poderia aspirar, a Filó.

Luis Nassif

6 Comentários

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  1. Sinto muito pela sua perda!
    Ter amigos desde a infância/juventude é para poucos e isso faz diferença nos sentimentos que estendemos a todos. Apesar de timidez a letra era ousada na sua estrutura ficou faltando o som. Uma pergunta e pode parecer óbvia; o São João é o da Boa Vista, não é?
    Meus sentimentos.

  2. Cara Nasif, talvez se o

    Cara Nasif, talvez se o Brasil desse mais valor aos seus valores culturais, a ousadia do amigo não seria tão tensa; até desnecessária diria. Mas, desde sempre, o acumular riquezas materiais e as deixar para os descendentes emperrou, emperra e emperrará nosso país para sempre. A cultura, ora, a cultura que se exploda.

  3. Belo e sensível texto de

    Belo e sensível texto de despedida. Amizades são a razão de ser e estarmos no mundo. Sempre que posso (e quase sempre posso) saio de minha calmaria doméstica para as visitas aos queridos e queridas amigas de sempre, cujos diálogos, na verdade boa prosa, nos colocam neste quase eterno estado de poesia. Com a morte de uns e outros, ficam as nossas lembranças, impregnadas de saudades.

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