Maira Vasconcelos
Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).
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“Existe a militância artística, ainda que hoje se sinta a falta disso”, diz Luís Martínez Salas

Uma entrevista especial com o artista desenhista e pintor chileno Luis Martínez Salas

“Existe a militância artística, ainda que hoje se sinta a falta disso”, diz Luís Martínez Salas

por Maíra Vasconcelos

de Buenos Aires

Terminaria a entrevista com o artista desenhista e pintor chileno Luis Martínez Salas, sem ter entendido como ele chega às temáticas com as quais trabalha e compõe seus quadros. Temas como o ato de refugiar-se, mundo interno-externo, fé, construção-destruição, solidão, bruxaria-misticismo, a natureza do desenho, e tem até “o homem imaginário” do poeta chileno Nicanor Parra. Pinturas feitas apenas a óleo, mas os desenhos levam de tudo, tinta, carvão, acrílico, pastel. Ele é de Valparaíso, Chile, e mora há 15 anos, em Buenos Aires.

Sobre o tempo de trabalho, Martínez não mede, não sabe dizer, entra em seu atelier sem saber a que horas irá deixar para logo retomar. Tentar ver a obra de Luis Martínez, que particularmente chamo de Beto, é como lutar com os olhos para descobrir fragmentos, mil fragmentos soltos que contam sobre “micromundos”, disse. Brinquei com ele, certa vez, essa obra tem 1.250 fragmentos. Beto confirma a ideia da fragmentação, mas diz não poder falar sobre todos os fragmentos de suas obras. Fez questão de frisar a diferença entre desenho e escritura: “palavra é outra coisa”. Como quem diz não ter controle a ponto de saber precisar todas as representações de suas obras. 

Leitor de poesia, Martínez localiza o Chile como “melancólico poético”, algo disso que alimenta seu trabalho, como ter vivido 17 anos de ditadura pinochetista. Os terremotos também influenciam sua criação, os amigos, as vivências familiares, os jardins de sua mãe, o bairro e Valparaíso. Essa miscelânea quase íntima (e Beto adora uma mistura) é o que talvez mais se aproxima àquilo que contribui para a feitura de suas obras. No entanto, Beto acredita que “somos como uma espécie de esponja que vai recolhendo coisas sem se dar conta”. 

Como você trabalha? Quantas horas por dia?

Não sou muito sistemático para trabalhar e acho que isso se pode ver nas telas. Não sou de horários fixos, nem disciplinado, nesse sentido. Quando entro, custo a sair, e pode ser qualquer horário. Há uma necessidade de trabalhar, mas não uma condição marcada por horários. 

Trabalho bastante no meu atelier, bem encerrado e contra a parede. Ou seja, trabalho não como em bastidores, trabalho sobre a tela, sobre madeira, em bases rígidas. Como que ataco a obra, não a acaricio. E ataco com diferentes materiais. Em pintura somente óleo, mas em desenho é onde faço muita mistura e trabalho com pintura, com tinta, látex, marcadores, acrílico, pastel, carvão, de tudo um pouco. 

O que significa atacar a tela?

A tela faz assim, tem um movimento, então eu trabalho sobre a parede. Não se movimenta, e não sei se é tão importante dar destaque a isso. Para mim, sim, é importante, mas é uma loucura minha, nada mais. Não há vai e vem, não há movimento. 

E quando você diz que ao entrar em um trabalho é difícil de sair…

Me concentro e vou por um tubo, como se diz. Pode ser dez horas da manhã ou às duas da madrugada. 

E quanto tempo você fica com uma obra?

É que o tempo para mim não é uma coisa importante. Porque me coloco a trabalhar, depois paro para almoçar, depois sigo mais dez minutos, depois retomo à noite mais três horas. E depois deixo por três dias, porque pego outra coisa, desenhos pequenitos. Não há uma coisa tão… Por isso, digo que não sou sistemático. Não consegui ser sistemático. Porque me fazia lembrar esses trabalhos de escritório, trabalho de desenhador. Brigo sempre com isso de ser profissional, não consigo ser profissional e não quero ser profissional. Digo como eu entendo profissional, nesse sentido de horário de escritório, de trabalhar de oito da manhã às cinco da tarde, e depois esquecer o trabalho. Eu não posso esquecer. Jogo futebol e há uma coisa, sempre está o artístico, no terceiro tempo (risos), conversas, o que for. Para mim é tudo. Em tudo está o artístico, em toda observação, no contato com afora. Não é só estar no meu atelier, cumprir com um horário e conseguir um resultado. Não é isso. 

Você quer dizer de ter um ofício…

Sim, gosto mais de ofício, porque o ofício está próximo ao artesão, a isso que tem a ver com um contato com o que está fazendo, mais do que pensar em um resultado e o que irá vir de volta. Tento fazer com que isso não aconteça. Às vezes, acontece, quando você trabalha com uma galeria ou trabalha para sobreviver, e aí entra alguma coisa disso, tenho que terminar isso em tanto tempo. Mas sempre me perguntam, quanto tempo você demora para fazer isso?  E eu não sei. Às vezes, respondo assim, dois meses. Mas, na verdade, é que não…

Como você vê o artista na atualidade? 

A arte engloba muitas áreas, poderíamos dizer assim. Quando você vai em um lugar como a Ex-Esma (antiga Escola de Mecânica das Forças Armadas, na ditadura argentina funcionou como centro de detenção, tortura e extermínio, hoje transformado em museu), onde há mostras de arte que apelam à memória, à questões sociais, à diversidade sexual, a arte aí tem uma forma de dizer aos outros, de participar, de interpelar ao outro e a si mesma, de comprometer-se. E está o outro que é a fama, o artista que vendeu tantos milhões, personagens que… eu não vou por aí, não vou pelo lado do mercado, ainda que precisemos viver do próprio ofício. Então, tampouco fico sabendo muito disso. Estou mais no micro, estou com amigos, dou aula. Vou a exposições, sim, mas tampouco me interessa participar de um circuito ou de estar tão ligado em tudo o que está acontecendo no mundo da arte. Não, apenas vejo alguma coisa. Vejo museu, galeria, sim, mas não me informo tanto (risos).

Quando se refere ao micro…

Da vida, é a vida cotidiana.

Nunca a macropolítica? já participou como militante, por exemplo?

Não, não tenho história de militante, não venho de uma família de militantes, tenho uma família do micro, do cotidiano, dos amigos, do bairro, tenho uma família que me criou e me criei em um lugar assim. E gosto disso, é um lugar do qual posso cuidar, tenho acesso, posso ser responsável e do qual desfruto. O outro me escapa e me parece que não… tampouco tenho necessidade de ir até isso, ao que é mais grandiloquente. 

Portinari dizia que toda arte é política. O que pensa disso?

Partindo de que todo ato é político, então claro que a arte tem uma implicância e uma importância social, e até para si mesmo também. Saber e ter consciência de que isso é assim. Existe a militância artística, ainda que hoje se sinta a falta disso, sem necessidade de participar de um grupo. Mas está em falta, porque estaria bom, gosto da ideia do coletivo, mas a mim tem sido difícil encontrá-lo em uma época de muito individualismo. Com isso estou de acordo. Não estou de acordo, talvez, com a arte comprometida desde o dizer de um partido político. Acredito no artista que com sua própria voz pode dizer desde o seu próprio lugar, mas que seu lugar também não é tão próprio, não é sozinho, não é tão indivíduo, porque somos como uma espécie de esponja que vai recolhendo coisas sem se se dar conta. 

As problemáticas sempre afetam e comovem. E não que se decida fazê-lo, ao menos em meu caso, não decido vou trabalhar sobre esse tema. Não me resulta pensar os temas exatos, vou trabalhar sobre os imigrantes, mas trabalho, aparece. É como uma espécie de viagem interior e logo aparece da forma como eu desenho e pinto. Ainda não estabeleço temáticas assim, bom, meu projeto é. Quando digo isso, meu projeto é, isso já me esfria, me cataloga.

Mas espera, agora você caiu em uma pergunta que já iria te fazer sobre as temáticas. Vi seu trabalho separado por temáticas e me perguntava como você chegou a isso? Foi um processo de desenvolvimento artístico do seu trabalho, essa separação temática tão precisa?

Acredito que cheguei justamente por aquilo que te comentava antes, aquele círculo próximo, cotidiano, do micro. Viver em uma família de classe média baixa, viver os 17 anos de ditadura, ser o menor de sete filhos, ver todas as dificuldades econômicas, ver todas as dificuldades econômicas da família, do bairro, de uma cidade como Valparaíso, viver terremotos (risos), o geográfico de Valparaíso, o geográfico do Chile, o climático do Chile, o melancólico poético do Chile, a viagem à Argentina, encontrar com tudo o que acontece aqui (em Buenos Aires), que é bastante agitado, acho que tudo isso. E as histórias dos amigos, as pessoas que conhecemos. 

Então, a gente vai em uma espécie de carro rodeado de… que é uma forma, rodeado de outra forma, e isso vai afetando e você vai conformando e habitando esse espaço. Mas não é uma coisa de decidir, vou trabalhar esse tema em particular. É algo que está, que é em si, ou parte de si mesmo. 

Quero falar de uma tela especificamente, El refugio. Vi um fragmento do seu quadro Fé, lá em cima, bem pequenininho. E te pergunto se esses fragmentos realmente estão? Há um fragmento de fé em todo refúgio? O artista se refugia e nesse refúgio há fé, e a partir disso cria sua própria arte? Essa fé que necessitamos para continuar a criar…

É tal qual como você disse, você respondeu (risos). Esse fragmento de Fé está no Refúgio e a gente se refugia em nós mesmos, no ofício, nos amigos, continuamos falando da mesma coisa, hein? No micro, no interno, no cotidiano, isso é um refúgio. E a forma é como uma trincheira, meio ventre, essa concavidade. E o outro desenho que é convexo, que é mais uma espécie de cápsula, de situação de proteção do lado de fora, do externo, de um isolamento, mas de um isolamento que…que ao mesmo tempo joga com o fragmentário. Há coisas que não as tenho muito claras, porque são desenhos, palavra é outra coisa. Então, às vezes acho, me aproximo, posso interpretar às vezes algo disso que você diz dos fragmentos, que me pareceu que está muito bom. Sim, acontece isso dos fragmentos, porque trabalho com esse tema que tem várias arestas, ramificações. Mas, mais ou menos, há um tema central que é o ser humano no mundo. Em que mundo? E aí está a coisa. Em um mundo atacado, em mundo fragmentado, quebrado, em um mundo que nós construímos e destruímos, um mundo que já estava e viemos a destruir, mas não destruímos tudo, quebramos e voltamos a restaurar para voltar a fragmentar, então mudam os fragmentos, mudam de lugar, de posição, então depois se arma algo concreto e dentro desse concreto, se você se aproximar e fixar, há pequenos micromundos, e esses pequenos micromundos, se você se afastar e voltar a olhar, já não verá o mesmo que viu há um segundo. 

E aí intervém a dinâmica do tempo, o tempo do fazer, que eu não sei, e o tempo também de olhar, de mirar o trabalho como quem contempla uma paisagem. E aí caímos em outra coisa, que é pensar que, aquele que se detém a olhar um quadro, gosto da sensação de que se senta a olhar uma paisagem, um horizonte, uma árvore, a natureza. E aí vem a outra coisa. O tema da natureza, como a natureza do desenho quer se aproximar à natureza, digamos, do mundo, à natureza do que chamamos Deus. Deus como natureza, digo, não como a figura paternal da igreja, não! O Deus natureza, a terra.  

E você entra muito na terra, não? Me dá essa impressão.

Sim, sim, sim. Várias coisas de escavar.

Porque os personagens se afundam…

Sim, há uma imagem de inundação, há uma imagem de estar com a água até o pescoço (risos). Há uma imagem em que dela nasceu isso da sensação… durante a feitura, que está o suporte, o plano ou a tela, e eu não tenho uma ideia pré-concebida, então o que faço é agitar a água e metendo assim a mão, como buscando algo embaixo, no fundo, para fazer emergir. Há coisas submergidas, submergidas em uma memória primitiva, no inconsciente. Então você vai com o intuitivo a buscar isso, colocando a mão aí. Imagine que a tela não fosse algo sólido, então o que faço é agitar isso com os materiais que tenho e então aparece uma imagem que está na memória, que está no suporte, ou aparece no rito do fazer artístico.

Ao ver o desenho “Pequeno Jardim”, e jardins são retratados nas diversas artes, historicamente, fiquei um bom tempo observando sem poder extrair mais do que nada e um vazio no que diz respeito a tentar encontrar um jardim, de algum modo, de que remetesse a plantas, e não há. Que jardim é esse?

Não apela tanto a história do jardim na arte e seu misticismo e religiões. Tem mais a ver com questões íntimas, próprias de minha experiência, que foi uma mostra que fiz, em 2013 ou 2014, que se chamava “Punta de Jardín”. E esse jardim eu conectei com o jardim da minha mãe, que tem a ver, sim, com questões religiosas e místicas, mas da ordem do caótico, do bosque, da selva. Minha mãe tinha um jardim bem selvagem, caótico, não era de forma alguma cuidado e ordenado, estava sempre cheio de bichos e de coisas. E quando criança, brincava muito nesses jardins que se transformavam um pouco em bosque… Tem mais a ver com descobrir formas, bichos e coisas aí de outra dimensão, que geralmente não se vê. E o místico pode estar nessa relação com a natureza, com a natureza que se vê e que não se vê, mas não com a natureza de um jardim adornado, o jardim decorativo, lindo, não, não. Tem a ver com essa outra beleza… inclusive, mais orientais ou mesmo com os índios mapuches, que falam que nos bosque, por exemplo, há um caos na natureza que é de outra ordem, que não é essa ordem que tem prevalecido no ocidente. Tem a ver com a espacialidade e o encontro de formas, de jogo de formas, de linguagem. Poderia ser uma metáfora de jardim ou algo assim, acho. 

Para terminar, como você se relaciona com a sua imaginação?

(muitos risos, dos dois) É um trabalho, ¡qué sé yo! Me relaciono, para bem, para mal, me relaciono. A imaginação está sempre, no ônibus, no dia a dia. Às vezes, descanso. Por isso, às vezes, você está muito cansado e pensa, mas nem fiz tanta coisa, física, digo. Mas estamos o tempo todo aí (e fez um gesto de mover a cabeça), para bem ou para mal, e muito para mal. Por isso, é necessário ir aí para descarregar. Se durante quatro dias não faço (trabalho), começo a me sentir mal, parece um exagero, mas começo a me sentir mal corporalmente, fisicamente, começo a enroscar em mim mesmo. Então, necessito “pá”, sair, assim entra oxigênio, começo a imaginar outras coisas, ¡qué sé yo!

 

*

LUIS MARTÍNEZ– Mostra “Mundos Integrados”
GALERIA MAGNA ARTE ARGENTINO
segunda a sexta-feira, 12h às 20h
Libertad, 1033, Buenos Aires, Argentina
Até 31 de outubro, 2019

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

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