Física quântica, pós-modernismo e pós-verdade, por Carlos Coimbra

​Física quântica, pós-modernismo e pós-verdade

por Carlos Coimbra

A ciência moderna não nasceu a partir de um evento único e mágico, mas com uma série de descobertas superpostas e interligadas. Sem dúvida, no entanto, é impossível entender a construção da ciência moderna sem compreender que a física quântica é um de seus pontos chave.

A maioria dos físicos concorda que o debut da física quântica se dá com o artigo de Max Planck intitulado Zur Theorie des Gesetzes der Energieverteilung im Normalspectrum (“Sobre a Teoria da Distribuição de Energia no Espectro Normal”), publicado em 1900. Aqui, Planck propõe a ideia seminal de que a distribuição de energia emitida por um corpo absorvedor/emissor ideal é quantizada. Isso resolveu um dos maiores problemas da física da época (a catástrofe do ultravioleta), lhe garantindo o prêmio Nobel em 1918.

Marie Curie, Albert Einstein, Niels Bohr, Erwin Schröndiger e Werner Heisenberg foram alguns dos que subsequentemente contribuíram para o desenvolvimento e maturidade dessa teoria.

Explicar a física quântica e sua concepção mecânica (a mecânica quântica) não é tarefa fácil. Os próprios físicos entendem que sem matemática não há como descrevê-la apropriadamente. Mas resumindo de forma muito pobre, a física quântica descreve os fenômenos do mundo atômico e subatômico, que funcionam de forma completamente diferente daqueles que presenciamos no dia a dia do mundo macroscópico. No mundo quântico os elétrons só “existem” de fato quando mensurados, partículas podem “atravessar” barreiras e podem se teleportar sob certas condições especiais.

Sem o desenvolvimento da teoria quântica seria impossível, por exemplo, desenvolver a tecnologia dos semicondutores e portanto os chips que temos em nossos computadores e smartphones. Assim, o smartphone em que você lê este texto é um dos muitos subprodutos diretos da física quântica.

Afora a questão tecnológica, que é mais concreta e prática, a física quântica também teve impactos diretos na química e na biologia. O próprio modelamento da molécula de DNA é um exemplo disso.

E afora a sua descrição dentro dos limites da ciência básica, a teoria quântica também inspirou a criação de toda uma filosofia ao seu redor. Nesse contexto, um dos livros preferidos de minha longínqua juventude foi “O Ponto de Mutação” do físico Fritjof Capra, escrito em 1982. A concepção do texto é a da divulgação científica, a partir da descrição de novidades da ciência que fugiam ao status quo cartesiano. O início da obra trata exatamente sobre o impacto da física quântica que acima descrevi. No entanto, Capra vai mais além e destaca que a teoria quântica trouxe também impactos sobre os paradigmas científicos e sobre o próprio método científico reducionista baseado no cartesianismo. Além disso, outra ideia central do autor é a de que a física quântica dá origem à concepção de que tudo está interligado e que portanto existiria uma teia da vida quântica por trás do mundo em que vivemos.

Esse tipo de abordagem, apesar de aparentemente bela, trouxe infelizmente muitos efeitos colaterais e deturpações. Um exemplo claro é o misticismo criado em torno da física quântica. Muitos autores dos anos 1990 publicaram best-sellers usando invencionices tresloucadas como “medicina quântica”, “ioga quântica”, “ensino quântico”, “astrologia quântica”, “parapsicologia quântica”, só para começar a lista. Algumas dessas ideias, apesar de superficiais, são até bem intencionadas; outras não passam de puro charlatanismo. Em todo caso, o que vemos aqui são exemplos muito claros de pseudociência.

Antes mesmo dessa salada de frutas, nos anos 1960 e 1970, a física quântica foi usada como lema para o movimento new age, inspirando mesmo respeitadíssimos físicos, filósofos, psicólogos e cientistas sociais a emitirem um conjunto de conceitos nonsense como “a raiz de -1 e os números imaginários estão associados ao órgão erétil masculino” (Lacan), ou “E=mc2 é uma equação sexuada” (Irigaray) ou “existem singularidades geométricas associadas à gravidade quântica chamadas de singularidade-sucesso nem estáveis nem instáveis” (Deleuze), para citar alguns exemplos.

Logicamente, essas frases não têm qualquer lógica, mas não invalidam as obras de filosofia ou psicanálise de Deleuze ou Lacan. Destaque-se portanto que muitos conceitos de teoria quântica ou física moderna foram muitas vezes utilizados fora de contexto criando frases soltas, impensadas e totalmente sem sentido.

Muitos dos conjuntos de ideias acima apresentadas fazem parte de um movimento chamado “pós-modernismo” filosófico ou científico. A base desse pós-modernismo é a suposta quebra de paradigma já relatada quando descrevi o livro de Fritjof Capra: a rejeição mais ou menos explícita à tradição racionalista do Iluminismo, a partir de concepções teóricas e elaboradas desprovidas de provas empíricas, algumas vezes baseada em um relativismo cognitivo e cultural que desdenha a ciência, tomando-a como um simples mito narrativo, uma reles construção social.

A crítica ao método é louvável, principalmente aquela construída nos moldes da obra de Paul Feyerabend (vide o livro de sua autoria “Contra o Método”). A diferença é que aqui a tese é construída a partir de bases históricas sólidas e argumentações lógicas que criticam consistentemente as análises epistemológicas vigentes. Esse é o lado interessante do movimento pós-moderno na filosofia.

O problema do movimento pós-moderno surge quando extrapolações poéticas são feitas a obras como as de Feyerabend. Esse tipo de extrapolação criou nos últimos 50 anos um relativismo epistemológico sem limites que propõe que não há nada de essencialmente verdadeiro e nem a ciência moderna pode ser levada a sério.

Esse tipo de relativismo impensado criou um grupo de céticos sem causa. E a pós-modernidade que tinha propostas iniciais progressistas, se encharfudou em um mar de reacionarismo em que algumas vezes se evoca a ideia de que não basta não levar a sério a ciência; além disso é preciso transformá-la também em vilã.

Dessa forma, a licença poética a teorias como a teoria quântica acabou criando um monstro. Não, não é um monstro chamado “pós-modernismo” e física quântica nada tem a ver com isso. Pois o pós-modernismo tem ótimos elementos discussivos, como os já referidos em relação a Feyerabend e a física quântica é apenas uma disciplina da física e por si só é neutra. O problema é outro e o nome do monstro é outro.

O monstro aqui referido é filho do pós-modernismo ultra relativista e seu nome é “pós-verdade”. Pós-verdade é a impressão de que cada um pode criar a sua própria verdade baseada em intuições sobre o mundo em que vive, relegando os fatos objetivos. Não que isso seja proibido. Alguém pode criar sua realidade baseada em unicórnios, duendes e fadas. Pode até ser bonito. O problema ocorre quando a pós-verdade de alguém se transforma em discurso público, em ovo de serpente e em política pública. Lembram daquelas narrativas sobre arianos, deuses nórdicos e raça superior?

Redação

14 Comentários

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  1. Excelente texto. É ótimo

    Excelente texto. É ótimo vê-lo por aqui, pois pessoas que estejam interessados em viver numa sociedade melhor e mais justa e se guiem em dados e evidências precisam de um ponto de encontro.

    Não se corrige um problema ignorando sua causa, mesmo que esta seja uma teoria responsável por salvar a vida de incontáveis pessoas, melhorar e confortar tantos outros. Agir como um avestruz e botar a cabeça num buraco para ignorar a realidade só nos levará para dentro da caverna de platão.

    Permitir-se escolher qualquer método de pesquisa pode ser libertador, mas conduz, invariávelmente, a dois problema, o erro e a adoção do método por pessoas de pouca honestidade. Vidê o desastre que tem sido o debate sobre apropriação cultural e a adoção dos “fatos alternativos” por Trump.

    É importante atender ouvir os valores da sociedade democrática, algo que ciência jamais substituirá, e tambêm é importante traçar planos, projetos e objetivos alcançavéis, que funcionem na realidade e que possam ser realizados.

  2. Genial

    Genial

    Apenas faltou discorrer sobre as convergências sobre física quântica e espiritualidade. Se o mundo quântico não explica a espiritualidade, o individuo se conformará única e exclusivamente com a Fé.

  3. Se fosse possível mensurar o

    Se fosse possível mensurar o PIB(Produto da Indigência Beócia) com a relação à Mecânica Quântica alcançaríamos trilhões de dólares. Por outro lado, se a medida for em distância o limite seria o infinito. Nunca na história das Ciências uma das suas mais fundamentais teorias foi tão mal entendida e por consequência instrumentalizada para fins que vão de espúrios a ingênuos. Para o primeira caso o exemplo melhor é o do picareta Amit Goswam. 

    Com foco no micro(partículas elementares), ou seja, na fundamentação básica da matéria, falta pouco para que entre em consonância com a Teoria da Relatividade(ou o inverso) para que tenhamos, enfim, algo como uma Teoria de Tudo, ou seja, uma explicação completa(ou perto disso) acerca da origem e possível fim do Universo. 

     

  4. Um mestre indiano comentando

    Um mestre indiano comentando sobre uma explicação de Budha quando perguntado sobre a reencarnação, algo que eu acho que ele nunca se manifestou abertamente, disse que Budha foi o primeiro físico quântico da humanidade.

     

    Diz que a manifestação da existência não percorre o espaço nem o tempo. Está aqui e também está lá, uma hora existe outra hora não existe. É tudo uma infinidade de processos simultâneos que quando superpostos geram fatos e existencias.

     

    Estou só colocando uma outra visão sobre o assunto uma vez que não domino a física nem a matemática para discutir sobre o tema que acho muito pertinente e interessante.

     

    Mas é um estudo de milênios desde os antigos iogues aos mestres das Escolas de Mistério que dizem que Jesus visitou. Porque acho que através da meditação e da iluminação se chega a uma compreensão da existência sem as fórmulas matemáticas. Tem uns que acham que precisa provar, outros precisam de uma crença, mas o mistério permanece. A ciência e a religiosidade não são antagônicas, fazem parte de nosso aprendizado.

  5. Eu acrescentaria uma observação:

    Muito bom!

    Eu acrescentaria uma observação: Referências à física quântica são, frequentemente, utilizadas para incorporar a credibilidade (inerentemente questionável por uma questão de método) de um modelo construído pela ciência física à postulados completamente anti-científicos que combatem a própria ciência. Ciência e percepção subjetiva são duas habilidades humanas de construção de cosmologias que nos proporcionam a organização do “todo” e da nossa inserção nele.

  6. O Ponto de Mutação

    Excelente livro de Fritjof Capra, comparando principios de física quântica com principios da idéia budista. Realmente as comparações são válidas e muitas vezes vc tem que abdicar das idéias cartesianas de análise de problema e ver o problema de um ponto holista. O método cartesiano, que possibilitou um grande avanço das ciências, faz a análise fracionada dos problemas, vendo cada parte como funciona  e após isto, forma-se uma idéia seu totum.

    A visão quantica, tal como a  budista, vc busca uma visão total do problema, pois só assim terá o conhecimento dele. O precedimento cartesiano não funciona para o “insigth” do assunto.

    Capra tem um outro livro que chama-se o “Tao da Física”, tambem muito interessante, que trata muito bem deste assunto.

    Não sou um especialista em mecânica quântica (longe disto), pois não creio que há muitos que entendam desta parte da física, mas é interessantissima de conhecer, apesar de dar muito trabalho, inicialmente!

    Daí a generalização feita nos anos 70 sobre o assunto é totalmente impertinente!

  7. Relativismo exacerbado
    Começo por dizer que gostei do enfoque da matéria apesar de bem superficial.

    Saliento de que o ‘monstro’ assim referido não é tão recente, e as questões quânticas e perspectivas visionárias sobre tal, tão pouco.

    Em meados de cinco mil anos atrás os conceitos e sua tratativa científica já eram bem visionários, mas apenas podemos hoje compreender que todas as junções disto estão na análise psiconeurofisiológica da raiz humana, que assim como o universo, trabalha com padrões de processamento relativístico, e a total imersão da realidade dá-se por uma semântica interpretativa acerca da visão de mundo que cada um concebe em si.

    Interessante a menção a possíveis ‘charlatanismos’, porém através do poder que a sugestão influe sobre a conexão neurossomática, há possibilidades de que cada interpretação torne-se assaz vigente na realidade, começando por algo individual, e a posteriori, alterando paradigmas gerais no globo, como a própria aplicação da mecânica quântica no desenvolvimento tecnológico tido por Steve Jobs através de insights por sistemas de crença zen-budistas que não poderiam ser de fato transmitidos integralmente aos moldes científicos reducionistas.

    Ainda sim é bom estabelecer certos limites para não abranger demais a visão disto, deturpando a moral e ética, e até mesmo o modelo empírico.

    Mas tendo em mente de que qualquer banalidade tem seu backstage ‘mágico’ que ainda excluí a semântica de uma realidade última, é necessário compreender os critérios herméticos que são tão antigos como a própria estruturação epistemológica.

    Até mais.

    1. Goste quando se referiu a
      Goste quando se referiu a métodos empíricos e leis herméticas, me permita acrescebmtar Jesus Cristo ,trazendo a visão para um período mais próximo , Jesus explicou a física quântica ,basta analisar suas palavras.
      Não concordo com a forma que o autor abordou , achei um pouco persuasiva, mas é gratificante ver que o assunto está sendo ultimamente mais abordado na mídia .

  8. Bom texto, mas a discussão vai longe

    Ótima relação entre o pós-modernismo na filosofia da ciência e a pós-verdade, parecem de fato irmãos. Talvez vale a pena citar outros livros além do Feyerabend (um “contra” clássico da literatura epistemológica) que vão além nesta discussão:

    Gosto muito da abordagem do “Theory and Reality – An introduction to the philosophy of science”, do Peter Godfrey-Smith, que situa bem essa discussão de realismo X pós-modernismo e chega até as “Science Wars”, com o hilário episódio da “Hermeneutica Quântica” de Sokal.

    Quem quiser ir a fundo na discussão filosófica sobre relativismo X realismo (será que tbem vale para pós-verdade?) sugiro o livro “The Scientific Image” do Bas van Fraassen. Aliás, ele tbem escreveu um bom livro sobre Mecânica Quantica.

    Recentemente li o ótimo “The Deah of Expertise” do Tom Nichols, que aborda questões desta ultra-relatividade na sociedade atual de forma clara e simples.

    Alguém indica outras leituras relacionadas?

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