Memórias da arquiteta Lina Bo Bardi

Jornal GGN – Desde o mês passado, arquitetos comemoram o centenário de nascimento de Lina Bo Bardi, criadora de espaços de convivência apreciados, como o Masp e o Sesc Pompeia. Ela era famosa pela postura aguerrida no debate arquitetônico, mas alguns documentos revelam um lado mais doce, mais dócil.

Manuscritos e quadro pintado pelo pai de Lina Bo Bardi revelam memórias da arquiteta

Por Flávio Ferreira

Da Folha de S. Paulo

A arquiteta criadora de espaços de convivência apreciados por milhares de pessoas nos fins de semana, como o Masp e o Sesc Pompeia, tinha pavor dos domingos.

Esse sentimento manifestado desde a infância por Lina Bo Bardi (1914-92), cujo centenário de nascimento é comemorado desde o mês passado, está no olhar desolado de um elefante que não consegue fugir de um circo, retratado por seu pai num quadro.

Essa obra faz parte de um acervo da família Bardi que está fora dos institutos e exposições sobre Lina, e virou um presente precioso transmitido entre amigos até chegar à casa da psicanalista Marilucia Melo Meireles.

“Domingo – Fuga do Circo” foi descrito por Lina em carta de 1975 a Piero Manginelli, médico da arquiteta e de seu marido, Pietro Maria Bardi. “Meu pai o dedicou a mim, que sempre tive horror dos domingos. Os animaizinhos ele tirou de um grande livro colorido com o qual aprendi a ler.”

Lina Bo Bardi na Casa de Vidro (sem data)

O arquiteto Marcelo Ferraz, que trabalhou com Lina nos últimos 15 anos de vida dela, diz que a arquiteta tinha aversão aos domingos pois era muito ativa e não gostava da “paradeira” que marca o dia.

O manuscrito inédito é uma delicada manifestação do afeto que ligava os Bardi a Manginelli, em um tempo em que “médico da família” não era só um programa do governo.

Esse é um lado pouco conhecido da arquiteta famosa pela postura aguerrida no debate arquitetônico. Ou seja, vem à tona um lado mais dócil de Lina no momento em que é reconhecida mundo afora como estrela controversa.

O quadro do pai de Lina, Enrico Bo, foi umas das obras presenteadas pelo casal Bardi ao médico, entre as quais estão peças com valor arqueológico, como uma escultura grega de 350 a.C. e cartões de Ano-Novo feitos à mão por Lina.

Segundo uma diretora do Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, Anna Carboncini, o destino de “Domingo” era desconhecido pelos pesquisadores. Curadores italianos até pediram o quadro ao instituto para incluí-lo numa mostra sobre Lina no museu Maxxi em Roma, iniciada em dezembro.

“Domingo – Fuga do Circo”, tela pintada por Enrico Bo, pai de Lina Bo Bardi, e doado a psicanalista de São Paulo

“É uma pena que a tela não tenha ido à Itália, mas é importantíssimo saber onde está a obra e outros documentos de Lina, para que sejam incluídos em futuras mostras.”

REALISMO MÁGICO

Na carta, Lina se mostrou orgulhosa da obra do pai. “Envio-lhe um quadro que meu pai pintou em 1952. Ele começou a pintar nas longas noites da guerra seguindo uma vocação sufocada por décadas”.

A arquiteta fala da vocação reprimida pois ele só começou a pintar aos 62 anos, em 1942. À época, ela tinha um estúdio em Milão, onde expunha as obras do pai. Na mesma rua ficava o ateliê do pintor Giorgio De Chirico (1888-1978).

Em artigo publicado na revista “Habitat”, em abril de 1952, Lina afirmou que “De Chirico, voltando de uma de suas caminhadas crepusculares, com pantufas e o cãozinho Totó, ficou encantado diante diante daqueles quadros pendurados na parede”.

Lina também falou ao amigo das exposições do pai. “Em 1945, ele obteve muito reconhecimento, expôs em Milão, e muitos quadros seus estão em coleções italianas e brasileiras. Esse tipo de pintura se chamou realismo mágico”.

A ligação dos Bardi com Manginelli não era fruto apenas da relação médico-paciente, mas principalmente da afinidade pelas ciências humanas e do gosto pela aventura.

Desenho de Lina doado a Piero Manginelli

No consultório da avenida Paulista, Manginelli e os Bardi emendavam conversas sobre antropologia que deixavam os outros pacientes esperando por horas. A secretária era obrigada a tocar uma campainha para avisar que era hora de voltar à medicina.

O papo ia longe porque o apreço de Manginelli pelas ciências humanas vinha de berço. Ele nasceu no Museu Pré-Histórico e Etnográfico Luigi Pigorini, em Roma, onde a família ocupava um quarto para administradores do museu.

O médico fazia pesquisas de campo e incursões em sítios arqueológicos na América do Sul, que levaram à elaboração de dois livros.

Na carta, Lina mostrou querer proximidade com o aventureiro Manginelli, mas certa distância do médico. “Entre altos e baixos, procurei consultá-lo o mínimo possível, para não me acostumar a ter uma assistência ‘constante’. Acho que isso é o certo, não?”.

Lina concluiu a carta mostrando afeto pelo amigo. “Meu pai morreu em 1962. Ficaria feliz que esse quadrinho, que me é particularmente caro, ficasse com o senhor e lhe agradasse, é uma pequena brincadeira e bastante divertida.”

Após a morte do médico, familiares deram as peças à psicanalista Marilucia Melo Meireles em 2012. Ela guarda hoje esse acervo afetivo da arquiteta que trabalhou para criar lugares com a convicção de que era preciso unir as pessoas.

Colaborou FRANCESCA ANGIOLILLO

Redação

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