Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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O amor dentro de cenários em ruínas no filme “Insolação”

O filme brasileiro “Insolação” (2009), de Felipe Hirsch e Daniela Thomas, é um trabalho autoral e experimental sobre um tema aparentemente clichê de tão explorado que já foi pelos diversos gêneros cinematográficos: frustrações e desencontros nas relações amorosas. Porém aqui a sensação da paixão confunde-se com a sensação fisiológica da insolação. É o elemento de ligação entre o amor e a condição humana de exílio e prisão em um cenário quase extraterrestre de ruínas e enormes formas geométricas de concreto. Dessa maneira, “Insolação” liberta-se do tradicional foco do “humano, demasiado humano” para o problema da frustração amorosa para se voltar para atmosfera gnóstica que parece sufocar e aprisionar os personagens. Em outras palavras, o Mal não estaria no ser humano, mas na própria realidade que o aprisionaria.

Para além de todas diferentes narrativas míticas, simbolismos, correntes e escolas, o Gnosticismo poderia ser sintetizado em uma fórmula básica: “Eu estou no mundo, mas não sou desse mundo”. Essa frase resume perfeitamente o sentimento de estar relegado às mais baixas profundezas do cosmos, vivendo em um planeta, num corpo carnal feito de um aglomerado de moléculas nas mais insuspeitas combinações, em um complexo amálgama que, de alguma maneira, constitui a base material da nossa reclusão espiritual.

Essa sensação de exílio, estranhamento, de inadaptabilidade, de estar em um mundo que nos expulsa é o que torna o Gnosticismo muito mais do que uma doutrina ou filosofia. Antes disso, uma “atitude mental”, uma “predisposição” que antecede qualquer sistematização filosófica.

Pois o filme brasileiro “Insolação”, estreia no cinema do diretor teatral Felipe Hirsch ao lado de Daniela Thomas, parece confirmar essa ideia: não podemos categorizá-lo como um “filme gnóstico” ao lado de “Show de Truman”, “Matrix” ou “Dark City”, mas ele expõe essa atmosfera de exílio e prisão que definiriam a própria condição humana nesse planeta. Nessa condição, só nos restaria uma coisa: o amor, não como promessa de felicidade, mas como uma experiência que nos proporciona a sensação de estarmos vivos.

“Insolação” partiu de um projeto de adaptação de um serie de contos russos que falavam sobre o amor. O resultado foi linhas de diálogos fragmentados com personagens diversos em situação muitas vezes surrealistas perambulando sob o sol e o calor de uma cidade em ruínas, desértica, feita de formas geométricas modernistas gigantescas em concreto. Nos interiores das casas, apartamentos e escritórios tudo parece estar desarrumado, em mudança. O enquadramento da câmera salienta ainda mais a sensação de desconforto dos personagens, em ângulos descentralizados, em plano geral ou panorâmica para ressaltar a insignificância do indivíduo frente ao espetáculo de desolação.

Com um elenco de primeira (Paulo José, Antônio Medeiros, Leandra leal, André Frateschi, Maria Luisa Mendonça, Simone Spoladore), “Insolação” nos apresenta muitas vezes skatchs fragmentados onde os textos são mais declamados do que representados, personagens em busca de alguém para amar, sempre tendo como fundo as ambientações áridas de uma Brasília que não aquela a que estamos acostumados em cartões postais.

Amor, ruínas e insolação

O filme foi rodado em ambientações abandonadas da cidade, em uma região que parece representar o fim da utopia modernista não só de Brasília, mas do próprio movimento arquitetônico do modernismo: como a profusão das grandes áreas de concreto e a monumentalidade aprisionou o indivíduo em um cenário quase extraterrestre pela frieza e aridez.

Paulo José faz uma espécie de mestre de cerimônias que se encontra com os personagens em uma lanchonete abandonada onde tenta fazê-los refletir sobre suas vidas. O público acompanha a rotinas dessas pessoas, onde todos parecem estar presos em um dia sem fim, desconectado de qualquer noção de tempo e espaço. E todos parecem sofrer de um mesmo mal: a insolação, sensação que se confunde com a paixão amorosa que eventualmente um terá pelo outro, mas que constantemente é frustrada.

Acompanhamos narrativas alternadas como a do garoto apaixonado por uma mulher mais velha enquanto a relação dos pais se desmorona, a mulher insaciável por sexo que procura o amor na promiscuidade, uma jornalista que chega a um escritório de arquitetura e desestabiliza as relações pessoais etc.

Aqui e ali nas sequências fragmentadas, os personagens expressam a necessidade de sair dali. De passagem conta-se a história dos fundadores daquele lugar como pessoas que caminharam em um deserto por muito tempo até perderem o caminho. Assim como esses fundadores míticos, todos parecem prisioneiros em um ambiente de calor sufocante.

“Insolação” trata de amores frustrados e fracassos na busca da felicidade, porém o filme enfoca esse tema tão comum em diversos gêneros cinematográficos sob um prisma bem diferente. Poderíamos dizer que o tema das frustrações amorosas quase sempre é narrado sob o ponto de vista do “humano, demasiado humano”, isto é, a interdição do amor e da felicidade criada pelas fraquezas humanas como culpa, irresponsabilidade, imediatismo, hipocrisia, traição etc.

O que torna o filme de Felipe Hirsch e Daniela Thomas diferenciado é a atmosfera gnóstica que parece sufocar e aprisionar os personagens que, esta sim, parece interditar todas as tentativas de realização ou de fuga. A infelicidade humana não é uma questão ética ou moral, mas acima de tudo ontológica: o Mal não está no ser humano, mas na própria realidade que o prende.

Para ressaltar esse Mal inscrito na própria realidade, o filme nos oferece uma verdadeira experiência sensorial que, pelo ponto de vista da semiótica, chama-se de percepção de “primeiridade”: a fotografia do filme é rica em texturas, rugosidade, aridez, jogos de alto contraste claro/escuro; o áudio capta expressa o som do atrito de pessoas e objetos – o lápis no papel ressecado, o arrastar dos pés nos pisos de rugosidade do concreto, pedras, areia etc. O que sublinha a sensação de inadaptabilidade de todos naquela cidade, um cosmos que parece, paradoxalmente, ao mesmo tempo prender e expulsar o ser humano.

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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