A rendição condicional da Alemanha, por Gideon Rachman

Enviado por Paulo F.

Do Diário de Notícias de Lisboa
 
A rendição condicional da Alemanha
 
por GIDEON RACHMAN  
 
A Europa acordou na segunda-feira com inúmeras manchetes sobre a humilhação da Grécia, o triunfo de uma Alemanha todo-poderosa e a subversão da democracia na Europa.
 
Que disparate. Se alguém capitulou foi a Alemanha. O governo alemão tinha acabado de concordar, em princípio, com outro resgate de muitos milhares de milhões de euros à Grécia, o terceiro até agora. Em troca recebeu promessas de reformas económicas de um governo grego que tornou bem claro o seu profundo desacordo com tudo o que acabou de acordar. O governo do Syriza irá, claramente, fazer tudo o que puder para frustrar o acordo que acabou de assinar. Se esta foi uma vitória da Alemanha, nem quero imaginar o que seria uma derrota.

 
Quanto a essa história do desprezo pela democracia grega, também isso é um disparate. O referendo grego do dia 5 deste mês foi na essência uma votação para dizer que o resto da zona euro deveria continuar a emprestar biliões à Grécia, mas nas condições determinadas por Atenas. Aquilo nunca foi realista. O verdadeiro constrangimento à liberdade de ação da Grécia não é a natureza antidemocrática da UE. É o facto de a Grécia estar falida.
 
Muitos dos comentários sobre a perda de soberania grega no acordo agora delineado centraram-se na ideia de que a Grécia terá de privatizar ativos no valor de 50 000 milhões de euros e de que serão estrangeiros a supervisionar o fundo baseado em Atenas. Dado o registo de corrupção e clientelismo dos sucessivos governos gregos, isso parece ser uma muito boa ideia. Mas a profunda oposição do Syriza à privatização torna improvável que seja arrecadada qualquer coisa parecida com 50 000 milhões de euros.
 
É claro que as dificuldades dos cidadãos gregos são horríveis. Eu estive em Atenas na semana passada e senti muita pena de muitos dos indivíduos que conheci, que temem pelos seus empregos, pelas suas poupanças e pelo futuro. Mas a noção de que tudo isso é culpa dos europeus cruéis, que impuseram despreocupadamente a austeridade a um país de outra forma saudável, é uma fantasia neoesquerdista. A Grécia tem sido mal governada desde há décadas e estava a viver bem acima das suas possibilidades.
 
Quando veio a crise, o governo grego estava com um défice orçamental de mais de 10% do produto interno bruto e o setor privado recusava-se a emprestar ao país. Sem os empréstimos concedidos à Grécia pelo Fundo Monetário Internacional e pela UE, o ajustamento à austeridade teria sido instantâneo e muito mais brutal. A ideia de que os credores da Grécia têm sido totalmente inflexíveis também é falsa. Os credores da Grécia do setor privado já aceitaram uma redução da dívida em 2012 e os reembolsos da dívida grega foram adiados para um futuro distante.
 
Entretanto, os cidadãos alemães, holandeses, finlandeses e outros também têm todo o direito de se sentir lesados. Quando aderiram ao euro foi-lhes dito que havia uma cláusula de “não resgate” no tratado de criação da moeda única. Isso destinava-se a tranquilizar os contribuintes de que nunca teriam de pagar as contas dos outros países da zona euro.
 
Bom, isso já ardeu. Já houve resgates para Espanha, Portugal e Irlanda, bem como três pacotes para a Grécia. Um novo empréstimo de 85 000 milhões de euros à Grécia seria quase o dobro do PIB anual da Sérvia, um país de tamanho médio, na mesma região. E quanto a toda a conversa sobre os europeus se recusarem maldosamente a cancelar dívidas gregas, na verdade já se percebeu que é altamente improvável que a Grécia vá alguma vez pagar os 320 000 milhões que já deve.
 
É notoriamente evidente que as denúncias mais aparatosas da maldade da zona euro ao recusar o perdão das dívidas gregas vieram de economistas de países cujos contribuintes não estão em causa.
 
Esta última iteração da crise grega viu também uma rutura mais declarada entre a França e a Alemanha. O governo francês surgiu como o campeão da manutenção da Grécia dentro do euro e da flexibilização da austeridade. A França tem, sem dúvida, motivos dignos para defender a Grécia, que têm a ver com a solidariedade europeia, a geopolítica e afins. Mas se eu fosse um contribuinte alemão teria ficado bastante arrepiado com a visão do presidente François Hol-lande de França a abraçar Alexis Tsipras, o primeiro-ministro grego, ao saírem do edifício da UE.
 
Porque a França também tem motivos egoístas para tentar reverter a austeridade na Europa. Estamos a falar de um país que não passou um orçamento equilibrado nem uma única vez desde meados da década de 1970. Os governos franceses têm quase tantas dificuldades em avançar com reformas estruturais da sua economia como os seus parceiros gregos. Após esta última crise, é provável que os franceses voltem à luta com ideias brilhantes para “reforçar” a já alargada segurança social zona euro, bem como da UE. Quem será que eles acham que vai pagar isso?
 
Quanto aos alemães, na última cimeira, eles estavam claramente a namorar o grexit – a ideia de forçar a Grécia a sair da zona euro. Eles recuaram depois de várias advertências, como a emitida pelo ministro dos Negócios Estrangeiros do Luxemburgo, de que um tal curso de ação seria “fatal para a reputação da Alemanha na UE e no mundo”.
 
Em vez de arriscar um resultado desses, o governo alemão concordou com mais outro resgate para a Grécia. Contudo, na realidade, o euro já está a envenenar a atitude da Alemanha em relação à Europa e a atitude desta em relação à Alemanha.
 
Toda esta saga faz-me recordar uma frase desse grande alemão, Karl Marx: “A história repete-se, primeiro como tragédia, depois como farsa.” O mais recente acordo da dívida grega consegue ser uma farsa e uma tragédia ao mesmo tempo.
 
* Colunista chefe de Internacional do Financial Times
Redação

7 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. O ponto de vista é de um

    O ponto de vista é de um financista. Na análise ele tira do jogo o mercado financeiro como se não existissem lobbies e como se a corrupção moral fosse apenas de governantes e povo. Sabemos bem a moral dos mercados e da imprensa que sacraliza agiotas e demoniza suas vitimas. 

    O mercado é agiota.  O que aconteceu na Grécia é agiotagem pura e agora dão pauladas em suas pernas. 

    Talvez fosse o caso do mercado provar o que dá lastro ao seu rico dinheiro tão suado. 

  2. O artigo todo é uma coleção

    O artigo todo é uma coleção de disparates.

    Tem sido comum portugueses e espanhóis ávidos por serem os campeões de subserviência aos interesses alemães. Mais austeros que a austeridade e coisa e tal.

    A imprensa mainstream portuguesa – DN, Público, Expresso – é muito ruinzinha…

     

     

  3. O artigo é típico do FT e da

    O artigo é típico do FT e da revista The Economist. O autor está coerente com a linha editorial do periódico que lhe paga para assim escrever. Temos, enfileiradas, uma série de bravatas, com o claro objetivo de defender os detentores do capital, os credores da Grécia. Oportunista, maldosa e covarde é a citação de Karl Marx, no final do artigo; mas o autor o faz porque Marx está morto. Eu gostaria de ver o autor so artigo debater é com o vivíssimo Thomas Piketty.

  4. Falar da dívida grega sem

    Falar da dívida grega sem mencionar o papel da Goldman Sachs na camuflagem financeira por ocasião da entrada no Euro é me chamar de débil mental. Acontece que eu não sou. Porém, reconheço, torço pelo Flamengo.

  5. Mais um canalha defendendo o lucro sanguinário dos bancos!!

    O referendo grego do dia 5 deste mês foi na essência uma votação para dizer que o resto da zona euro deveria continuar a emprestar biliões à Grécia, mas nas condições determinadas por Atenas. Aquilo nunca foi realista.

    E os juros e condições cobrados pelos bancos por acaso são realistas???!!

    Porque tantos comentaristas “cultos” vivem se batendo pela defesa dos lucros exorbitantes de poucos banqueiras bandidos?? O certo é priorizar os lucros desses crápulas promovendo miséria, desemprego, suicídios e destruindo uma nação por completo?? Só pra garantir um balancete em azul para esses bancos??!! Tenha paciência… E o Nassif ainda dá espaço p[ara canalhas como esse no seu blog!!

  6. Tadinha da Alemanha, tão

    Tadinha da Alemanha, tão pobrizinha, principalmente o seu ministro da Economia, que – por um mero acaso – é o ‘gestor’ do fundo de Investimentos para no qual os ativos da Grécia – suas ilhas, seus monumentos, sua natureza e sua história – vão ser ‘retidos’:

    http://www.globalresearch.ca/euro-leaders-want-greek-assets-transferred-to-independent-fund-managed-by-german-finance-minister-schauble/5462358

    http://www.globalresearch.ca/greece-might-have-to-sell-ancient-ruins-islands-under-bailout-deal/5462489

    Admiro esse blog por abrigar uma diversidade de opiniões, especilamente no espaço aberto nos comentários. Mas sinceramente é vergonhoso publicar uma coisa dessa só para jogar o ajuste da Dilma goela a baixo da gente…

  7. Novamente.

    Aqui há pessoas que entende bem mais de economia que eu. Ao ler: “Os credores da Grécia do setor privado já aceitaram uma redução da dívida em 2012 e os reembolsos da dívida grega foram adiados para um futuro distante.” me fiz a pergunta: Se entre os credores privados houver bancos privados com ações no mercado, fatalmente isso constará do balanço. Qual os questionamentos que os acionistas podem fazerse, digamos, não aparecer lucro ao final ou se os dividendos distribuídos não forem o esperado.?

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador