Os pontos a se analisar na vitória de Biden, por Luis Nassif

Ou Biden prepara as pontes para uma renovação total da política, com a inclusão de negros, índios, latinos e minorias em geral, ou se verá o afundamento da potência que dominou o mundo por cem anos.

Ponto 1 – Biden faz parte o sistema.

O novo presidente americano Joe Biden é parlamentar antigo, com relações com todo o mundo político. Foi conselheiro de Barack Obama, para enfrentar o pesado boicote empreendido pela bancada majoritária do Partido Republicano.

Portanto, levantando-se sua biografia, irá se encontrar vários escorregões em relação a temas progressistas, assim como da vice-presidente Kamala Harris.

Mas o político é ele e suas circunstâncias. Portanto, não se pode prever o comportamento dele, como presidente, com seu histórico. Apenas dá para listar as circunstâncias, a principal das quais será a de unificar um país dividido pelo ódio.

Ponto 2 – os direitos civis entraram na agenda

A pandemia trouxe à tona os dejetos da sociedade americana.

  1. A violência policial contra negros.
  2. Os índices de mortalidade dos negros, índios e imigrantes.
  3. A questão da precarização do modelo de saúde americano.
  4. A redescoberta da participação política por grupos sociais.
  5. Finalmente, a grande aliança contra os supremacistas brancos.

Esse grito está ecoando em outros países, como o início da reação contra o avanço da ultradireita nos últimos anos. Será um fator a estimular práticas progressistas. Mas não basta.

Ponto 3 – a voz dos desassistidos continua muda

Há um renascimento do ativismo de grupos organizados, negros, LBGTs, mulheres. Mas há um enorme contingente de vulneráveis desorganizados que votaram em Donald Trump, apesar da crueldade explícita de sua gestão.

Não se trata de nenhuma paixão incontida por Trump, mas pelo fato de ele representar o anti-sistema, mesmo sendo mil vezes pior em todos os quesitos: honestidade, sinceridade, preocupação social.

Os sem-voz encontraram no WhatsApp e nas redes sociais sua maneira de organizar.

Sem a organização de sindicatos, partidos, movimentos sociais, movem-se de forma animalesca, mirando inimigos imaginários.

Não há nenhum centímetro de raciocínio político em sua atividade. Apoiam o candidato que é contra planos de saúde para pobres, pelo fato de ele prometer muralhas para conter patrícios imigrantes, que poderiam competir pelos empregos.

O trumpismo se alimenta da miséria humana. Esse fato levará o Partido Democrata inevitavelmente a propor uma série de políticas sociais inéditas, para combater um problema inédito no país. E terá o apoio do que resta de racionalidade do Partido Republicano, porque a ameaça é contra a própria noção de país. Mas enfrentará a resistência dos velhos guardiões do sistema.

Ponto 4 – a desigualdade e a questão fiscal

O ponto central da recuperação americana será a melhoria do poder aquisitivo da classe média, políticas sociais que reponham um mínimo de consumo às famílias de baixa renda. Será alcançada com políticas fiscais desonerando as classes médias, e políticas sociais reduzindo o custo da saúde e da educação.

Ao mesmo tempo, terá que comandar uma dura reforma no sistema policial, e nas políticas de encarceramento, cujos alvos principais são raciais e sociais.

E aí esbarrará em uma pesada cortina ideológica.

Ponto 5 – a retomada da economia

Para enfrentar a crise de 2008, Obama investiu na política energética, visando reduzir a dependência dos Estados Unidos de fornecedores externos e a dependência dos combustíveis fósseis.

Mas o avanço do petróleo do xisto comprometeu o projeto, produzindo um desastre ambiental e, depois da queda dos preços do petróleo, um desastre econômico.

Agora parece ser o momento para se reeditar essa política, já que um dos componentes centrais do projeto Biden é o da sustentabilidade.

Um dos pontos centrais será a retomada das políticas de atração de cérebros estrangeiros, profundamente prejudicada no período Trump.

Ponto 6 – a retomada do emprego e as relações com a China

Aí começam as complicações.

  1. As disputas inevitáveis de uma potência, quando está prestes a ser suplantada por outra.
  2. Para reduzir as tensões internas, Biden de alguma maneira terá que definir uma política de emprego para os americanos, depois que o mercado de trabalho foi dizimado pela transferência da produção para a China.
  3. Por outro lado, a única manifestação do poder americano, hoje em dia, reside nas grandes empresas tecnológicas, com interesses diretos em uma parceria produtiva com a China, e com ligações explícitas com o Partido Democrata.

Ponto 7 – a coronavirius

Os Estados Unidos estao batendo seu próprio recorde diariamente. Até a posse de Biden, o país estará sob o comando de um negacionista. Biden encontrará um sistema em frangalhos e uma comunidade esgarçada pelo tempo de isolamento social e pelos problemas econômicos.

Seu discurso de posse foi portentoso. Terá a seu favor os artistas e intelectuais, com seus cänticos de  solidariedade, assim como Roosevelt teve o cineasta Frank Capra.

Conclusão

Pode ser que as circunstâncias produzam um novo Roosevelt. Mas o país está cindido ao meio pelo esgotamento da democracia representativa. Ou Biden prepara as pontes para uma renovação total da política, com a inclusão de negros, índios, latinos e minorias em geral, ou se verá o afundamento da potência que dominou o mundo por cem anos.

Luis Nassif

6 Comentários

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  1. O ponto central da política externa dos EUA continuará sendo o mesmo: sabotar a integração econômica Alemanha-Rússia-China-Irã. Todavia, ela me parece inevitável. Os alemães precisam do gás e do petróleo russo e não ficarão tristes se exportarem produtos para os russos e iranianos. Os russos precisam vender combustível, importar produtos industrializados alemães vender armas para os iranianos. Os chineses precisam exportar produtos industrializados, comprar energia e reciclar o excedente financeiro em algum lugar e se recusam a confiar totalmente em Wall Street. Os iranianos precisam exportar petróleo, comprar produtos industrializados chineses e armamentos russos.

    Além de ameaças e sanções os norte-americanos não tem absolutamente nada de novo a oferecer aos chineses, iranianos, russos e alemães. Fora deste novo circulo virtuoso de circulação de riqueza, o Brasil perdeu completamente o rumo da história. Nosso país é visto como um adversário em potencial e não será resgatado da miséria pelos gringos.

  2. Há dois destinos incontornáveis para os EUA e todos os países do antigo 1o mundo, exceto, talvez, a Alemanha:
    – Deslocalização das indústrias para a China, com sua mão de obra super-explorada, acarretando perda de empregos industriais.
    – Automação das indústrias que restaram, mas também de boa parte do setor de comércios e serviços, acarretando mais perdas de empregos e aumento do subemprego.
    Independente se o governo é menos ou mais progressista, estas tendências do capitalismo são inevitáveis e estão se acelerando desde a crise de 2008, pois são a única chace de manter o lucro das empresas.

    A questão (que vale também para a Europa e o Brasil) é, como fazer políticas inclusivas em tal situação? Com que arrecadação, se o país está se desindustrializando de forma rápida e inevitável?

    E o fundamental de políticas inclusivas, sob o capitalismo, não são os serviços públicos, mas o emprego, o bom emprego, com direitos e bem remunerado. Hoje, poucos países ainda podem manter isso para a maior parte dos trabalhadores, como a Alemanha, Coreia do Sul e Japão: e mesmo assim estão desregulamentando o trabalho aos poucos. O resto do mundo (Europa, EUA e nós) caminha rapidamente para a precarização massiva, não por maldade das elites, mas por conta da automação da produção.

    A principal causa da frustração nos EUA é, portanto, a questão do trabalho: querem trabalhar em boas condições e serem bem remunerados. Não há boa vontade progressista que consiga oferecer isto aos trabalhadores americanos, sejam eles funcionários, pequenos proprietários ou autônomos.

    A América está em colapso junto com o capitalismo, que não consegue mais manter a paz social dentro das nações. A reação a isso é o neofascismo, que arruma bodes expiatórios para culpar e quer, na verdade, destruir tudo com seu ódio irracional. Por isso, digo que a única saída é começarmos a pensar numa transição para uma alternativa mais racional e justa ao capitalismo em colapso.

  3. Espero que o Biden e o estado americano se concentrem na solução dos seus problemas internos e deem uma folga na geopolítica. Mesmo porque se não solucionarem seus problemas afundam mais rapidamente. Mas… a indiferença dos poderosos estão lá preocupados com o povo e com o compromisso dos políticos para vencer a eleição

  4. Há pelo menos três eixos da vitória de Biden nos EUA que merecem atenção. O eixo doméstico, o eixo brasileiro (as consequências positivas e negativas) e o eixo mundial. Esses eixos estão nitidamente ligados, mas devem ser vistos de forma separada. Qualquer visão do que acontece deve-se levar em conta o declínio do império, da saída do mundo unipolar para o multipolar e também do declínio da democracia liberal mundial, esses eventos não são separados nem são pequenos.
    No eixo doméstico é difícil prevermos como será a administração Biden, mas o que fica claro até agora é que haverá um esforço de apaziguamento das tensões raciais e ideológicas, tentando trazer o país a uma certa normalidade democrática e paz para o país poder seguir caminhando enquanto nação. O plano de governo proposto é bastante progressista, alguns afirmam que é até mais progressista que o de Obama, logo terá grandes resistências internas, além claro das dificuldades inerentes na aplicação desses tipos de políticas.
    Para o Brasil o grande impacto será o enfraquecimento da extrema direita, e os oportunistas do centro em se apropriar da vitória e tentar emplacar alguns nomes e projetos nefastos o país. No âmbito climático poderá haver alguma mudança e pressões em cima do governo brasileiro. De qualquer modo o isolamento do Brasil no cenário latino e mundial se agravará mais, sem dúvida, o que trará inclusive prejuízos econômicos.
    No plano mundial não devemos esperar grandes mudanças da política do império. Apoio a golpes continuará, mudanças de regime e guerras estão na agenda.
    Uma olhada rápida nos eventos veremos que as políticas imperiais não pararam com Trump, como é afirmado erroneamente. Golpes como na Bolívia, e a tentativa falhada na Bielorrússia são exemplo. Sanções aumentaram sobre Venezuela, Rússia, China e Irã. Ameaças de conflito e tensionamento até o limite com a Rússia e a China (guerra quente), escaramuças com tropas russas na Síria (tem vídeos no youtube, interessante ver), ameças no mar do sul da China e bombardeamento da Síria são alguns. A saída dos acordos internacionais como o INF de redução de mísseis de médio alcance, saída do acordo de redução de armas estratégicas também estão na conta do Trump, colocando o mundo numa insegurança não vista desde os piores momentos da guerra fria, não a toa o relógio do apocalipse está no momento mais próximo da meia noite em sua história, saída do JCPCOA com o Irã, saída da OMS, ameaça a OMC, ameças a OTAN, G7 etc, etc. Enfim a lista de Trump é enorme. Isso levou a confiança nos EUA aos menores patamares vistos.
    Ao meu ver haverá um distensionamento em alguns pontos, como a OMS, OMC e G7, com o Irã em algum nível, a guerra fria com a China deverá ser mais fria e menos quente (com a retirada de ameaças de ações armadas), com isso a tentativa de trazer os EUA a patamares de um interlocutor mais confiável. Deverá haver um respiro mundial. Um respiro significa um fôlego, não um mundo maravilhoso com Biden.

  5. Binden está pegando o país num ponto de encruzilhada onde não será possível levar uma política meia bomba como Obama fez. Ele tem experiência e talvez esteja à altura do desafio que é imenso e impossível de transpor sem extensa pactuação a nível interno e externo. O Trumpismo não está morto, apenas ferido , o que o torna ainda mais perigoso, podendo retornar com mais fúria e radicalismo mais adiante. Apenas discursos conciliadores e que clamem pela união serão insuficientes. Aposto que medidas concretas para agradar o agricultor trumpista vão prejudicar muito o agronegócio brasileiro. Bozo escolheu ser um bode expiatório para eles e (quem diria) a nossa dependência da China irá aumentar. Engole esta, empresários imbecis que investiram no golpe!

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