A longa marcha da China rumo à liderança econômica: O Império resiste, por Ruben Rosenthal

Este artigo é o terceiro de uma trilogia que procurou mostrar como a China evoluiu a partir de meados do século 20, de uma economia essencialmente agrária e de indústria pesada, para se tornar a segunda economia mundial, tendo alcançado inovações tecnológicas em setores de ponta.

Abertura da reunião dos representantes diplomáticos da China e EUA em Anchorage, Alasca, 18 de março \ Foto: Frederic J. Brown/AFP/Getty Images

do blog Chacoalhando

A longa marcha da China rumo à liderança econômica: O Império resiste

por Ruben Rosenthal

No governo Biden, deverá continuar ou mesmo ser expandida a política de sanções e restrições a empresas e autoridades chinesas, com o pretexto de impor punições por competição desleal e violações de direitos humanos em Xinjiang e Hong Kong.

Nestes meses iniciais da presidência de Joe Biden, os analistas políticos procuram identificar o que se pode esperar das relações entre Estados Unidos e China.  As ações da nova administração até o momento indicam que existe vontade política para tentar resolver as atuais pendências através de  negociações? Ou a probabilidade é de que ocorra agravamento do contencioso comercial, e de que alguma crise localizada, como a questão do Mar do Sul da China ou de Taiwan, possa evoluir para uma confrontação armada entre as duas maiores economias do planeta?

Este artigo é o terceiro de uma trilogia que procurou mostrar como a China evoluiu a partir de meados do século 20, de uma economia essencialmente agrária e de indústria pesada, para se tornar a segunda economia mundial, tendo alcançado inovações tecnológicas em setores de ponta.  Uma jornada em  que precisou e ainda precisa superar obstáculos, e que resgata a relevância histórica da China para o processo civilizatório.

O primeiro artigo da trilogia relata como, através do plano de modernização tecnológica Made in China 2025, o país espera se tornar uma superpotência industrial até 2049. O segundo artigo mostrou que através da Nova Rota da Seda (Iniciativa Cinturão e Rota) a China rompeu com a política diplomática que adotara a partir dos anos 80, de manter um perfil discreto em política externa, para passar a agir de forma mais assertiva na busca de parceiros comerciais e de regiões de influência.

No entanto, ao passar a interferir nos interesses econômicos norte-americanos e de seus aliados, a China se tornou alvo de uma incessante campanha em diversas frentes. O artigo sobre a Nova Rota da Seda também relata como evoluíram as relações entre a República Popular da China e os Estados Unidos a partir da tomada do poder pelos comunistas, com foco nas administrações de Obama e Trump, resumidas a seguir.

Relações China-EUA no governo Obama

Um novo fator pode ter levado a China a assumir uma posição ainda mais assertiva na Ásia. Em outubro de 2011, a então secretária de estado de Barack Obama, Hillary Clinton, defendeu um reposicionamento da política externa norte-americana, em função da retirada de tropas do Afeganistão. Segundo a secretária de estado, a região Ásia-Pacífico deveria se tornar “alvo prioritário das ações diplomáticas, estratégicas e de investimentos dos EUA”.

No centro da nova estratégia de Washington de um “pivô para a Ásia” estava a Parceria Trans-Pacífico (TPP, na sigla em inglês), prevista para se tornar o maior acordo de livre comércio no mundo, cobrindo cerca de 40 por cento da economia global. A iniciativa da Nova Rota da Seda representou uma reação da China à mudança de foco da política externa dos Estados Unidos proposta por Clinton.

Em 2011, o déficit comercial dos EUA com a China alcançou 295,5 bilhões de dólares. Em 2012, EUA e Japão questionaram junto à OMC, a Organização Mundial do Comércio, as restrições chinesas à exportação de metais de terras raras. Era o início das tensões comerciais entre os dois países, que atingiriam um clímax na gestão Trump.

Relações China-EUA no governo Trump

Donald Trump se retirou da TTP já no seu primeiro dia no cargo, em 2 de janeiro de 2017, antes mesmo da ratificação da Parceria pelo Congresso. Em seu governo, o contencioso comercial evoluiu para uma guerra comercial, com a aplicação de barreiras e sobretaxas a produtos chineses.

Por outro lado, sanções econômicas foram aplicadas em função de acusações de violações de direitos humanos em Xinjiang, Hong Kong e Tibet. Foram também levantadas acusações contra os chineses de ataques cibernéticos e de roubo de tecnologia. A questão da internet 5G se tornou uma parte importante da disputa tecnológica entre os dois países.

A retórica anti-China dominou a administração Trump, aumentando ainda mais com as acusações de que o vírus da Covid-19 fora produzido em laboratório pelos chineses. E que uma indenização bilionária deveria ser imposta à China.

O documento interno “Estratégia dos EUA para o Indo-Pacífico”, de 2018, que teve sua divulgação liberada nos últimos dias da gestão de Trump, mostra como as ações do governo estavam claramente impregnadas de um viés ideológico.

Em um dos itens do documento consta: “A China busca dominar tecnologias de ponta, incluindo inteligência artificial e biogenética, para aproveitá-las a serviço do autoritarismo. O domínio pelos chineses de tais tecnologias traria profundos desafios para as sociedades livres”.

No documento da Casa Branca intitulado “Enfoque Estratégico dos Estados Unidos para a República Popular da China”, datado de maio de 2020, estão elencados os desafios que a RPC colocava para os Estados Unidos, na visão da administração Trump. O documento avalia que a China procurará obter “vantagens econômicas e militares indevidas, para impor o pensamento do Partido Comunista Chinês e censurar a livre expressão”.

Nestes meses iniciais da administração Biden, a política em relação à China que foi herdada do antecessor Donald Trump está sendo reavaliada. Resta ver se as futuras ações dos EUA irão favorecer a cooperação ou a confrontação entre os dois países.

Relações China-EUA no governo Biden

Ao analisar o enfoque da administração Biden no estabelecimento de sua política de competição estratégica com a China, o pesquisador An Gang, da Universidade de Tsinghua, Pequim, identifica duas fases distintas. Na primeira, que iria da posse em janeiro até a reunião em março de altas autoridades dos dois países em Anchorage, no Alasca, Gang percebe quatro ações principais.

Como primeira ação, a política hostil na relação comercial está sendo revista, mas permanece ainda indefinida. As táticas agressivas de guerras comerciais adotadas por Trump provavelmente não terão continuidade.

No entanto, no governo Biden deverá continuar ou mesmo ser expandida a política anterior de sanções e restrições a empresas e autoridades chinesas, com o pretexto de impor punições por competição desleal, e violações de direitos humanos em Xinjiang e Hong Kong.

A segunda ação está relacionada com a estratégia geopolítica norte-americana. Os EUA retiraram forças (convencionais) do Oriente Médio e do Afeganistão, e passaram a concentrar o foco na estratégia do Indo-Pacífico, como forma de contenção da China.

Vijay Prashad, historiador e jornalista indiano, chama a atenção para a reunião virtual ocorrida em 12 de março, de Joe Biden com os chefes de estado da Austrália, Índia, Japão. Tratava-se de uma reunião do Diálogo de Segurança Quadrilateral, conhecido como Quad.

Reunião do Quad
Reunião virtual do “Quad”, com participação dos chefes de estado da Índia, EUA, Austrália e Japão, 22 de março \ Foto: Twitter/Scott Morrison

O objetivo do Quad é de aprofundar a pressão econômica e militar sobre a China. O grupo foi criado em 2004, fez parte da política de Obama de um “pivô para a Ásia”, mas só decolou na administração Trump.

Embora não tivesse ocorrido menção direta à China durante a reunião, a decisão tomada então, de se formar um grupo de trabalho em tecnologias críticas emergentes e cadeias de fornecimento indicou a clara  intenção de bloquear o acesso da China a tecnologias e matérias primas que possam ter uso civil e militar, avalia Prashad.

A terceira ação visualizada por Gang foi que os EUA passaram a atuar de forma coordenada com os aliados. Por exemplo, a administração Biden conseguiu que a União Europeia suspendesse a ratificação de acordo de cooperação em investimentos com a China, a pretexto da situação em Xinjiang.

A quarta ação foi de priorizar na cooperação China-EUA, a questão das mudanças climáticas, com foco nas emissões de carbono. Os EUA esperam assumir a liderança global neste campo, após o negacionismo que vigorou durante o governo Trump.

Reunião em Anchorage, Alasca 

Representantes de alto nível dos dois países se reuniram em Anchorage, em 18 e 19 de março. A delegação norte-americana era liderada pelo secretário de estado Antony Blinken e por Jake Sullivan, conselheiro de segurança nacional. No comando da delegação chinesa estavam o ministro das relações exteriores, Wang Yi, e Yang Jiechi, conselheiro de estado e ex-embaixador da China nos Estados Unidos.

Conforme relato no britânico The Guardian, na véspera da reunião os EUA tomaram uma série de ações contra a China, incluindo intimações de diversas empresas chinesas de tecnologia por questões de segurança nacional, atualização de sanções relacionadas com a questão de Hong Kong, bem como iniciaram a revogação de licenças de telecomunicação.

Os anfitriões não foram nada sutis desde a intervenção inicial, como mostram as declarações de Blinken e Sullivan publicadas pelo The Guardian (ver vídeo).  Blinken disparou: “Nós vamos discutir nossas profundas preocupações com ações da China, incluindo em Xinjiang, Hong Kong, Taiwan, ataques cibernéticos contra os Estados Unidos e coerção econômica de nossos aliados. Cada uma dessas ações ameaça a ordem baseada em regras que mantém a estabilidade global.”

Jiechi replicou de forma contundente: “Os Estados Unidos fazem uso de força militar e da hegemonia financeira para ampliar sua jurisdição e reprimir outros países. Abusam dos conceitos de segurança nacional, para obstruir as trocas comerciais normais e incitar alguns países a atacar a China”. E prosseguindo: “Deixe-me dizer que, para os chineses, os Estados Unidos não têm qualificação para falar com a China a partir de uma posição de força”.

Em discurso de 15 minutos, Jiechi ressaltou ainda a hipocrisia dos EUA em relação aos direitos humanos, criticou as intervenções externas dos norte-americanos, e acusou as autoridades de adotarem uma mentalidade de “Guerra Fria”.

Já o ministro das relações exteriores, Wang Yi, teria adotado um tom mais conciliador, conforme relatado em Foreign Policy. Segundo a publicação, o ministro declarou que “Blinken e Sullivan são verdadeiros amigos do povo chinês”. Tal declaração está evidentemente carregada de ironia.

O Pós-Alasca

Para An Gang, as ações da administração Biden após Anchorage indicam uma nova fase, em que republicanos e democratas atuarão de forma conjunta no congresso norte-americano para introduzir leis agressivas em relação à China. Diversos projetos de lei versando sobre questões de competição estratégica aguardam votação no legislativo, e poderão afetar negativamente o futuro das relações entre os dois países.

Poucos dias após a reunião do Alaska, em 22 de março, foram aplicadas sanções em quatro autoridades chinesas pelos EUA, Canadá e Reino Unido. No entanto, os chineses não foram pegos de surpresa. Os ministros do exterior de China e Rússia se reuniram em Guilin, na China, em 22 e 23 março, quando concordaram em atuar conjuntamente contra as “sanções ilegítimas, sem base na lei internacional”,  conforme relato de Amber Wang, jornalista do South China Morning Post, de Hong Kong.

Sergey Lavrov e Wang Yi
Sergey Lavrov, ministro das relações exteriores russo, e seu homólogo chinês, Wang Yi; Guilin, China, 23 de março \ Foto: Reuters

O ministro do exterior russo, Sergey Lavrov, classificou as ações dos norte-americanos de “táticas destrutivas de Guerra Fria”. A Rússia também sofre sanções impostas pelo Ocidente após a anexação da Crimeia em 2014, aumentadas em março de 2021 a pretexto do suposto envenenamento do opositor de Putin, Alexei Navalny.

Anteriormente, Lavrov já propusera que os dois países se afastassem do dólar em suas relações comerciais, como forma de reduzir o efeito das sanções.  Yang Jin, da Academia Chinesa de Ciências Sociais, considera que a China deve receber bem a proposta de se afastar do sistema de pagamentos SWIFT controlado pelos EUA, passando Rússia e China a usar o rublo e o yuan em seus acordos comerciais.  

Para Cheng Yijun, especialista em relações China-Rússia na Academia Chinesa de Ciências Sociais, não é viável se alcançar a independência completa em relação ao dólar nas relações comerciais entre os dois países. Yijun considera também que, “forjar uma aliança com a Rússia não é a melhor opção para a China”. E continua: “Não há dúvida que os dois países se aproximaram em face das pressões vindas dos EUA, mas existem mais diferenças que pontos em comum entre eles”. A ascensão da China representaria também uma ameaça à Rússia, segundo o especialista.

Para a administração Biden, a fonte com maior potencial de conflito com os chineses é a questão de Taiwan, avalia An Gang. Daniel Ellsberg, responsável pelo vazamento do Documentos do Pentágono em 1971, também compartilha desta opinião. Temendo que a questão de Taiwan leve a um conflito militar entre EUA e China, ele divulgou agora informações altamente secretas que guardara por 50 anos.

Durante a crise do estreito de Taiwan em 1958, os líderes militares dos Estados Unidos planejaram aproveitar o clima de tensão para realizar ataques nucleares contra alvos militares chineses localizados em áreas densamente habitadas. No entanto, o presidente Eisenhower se recusou a ir adiante com o plano do alto comando.

No documento da Inteligência Nacional dos EUA publicado em abril de 2021  consta que o Partido Comunista Chinês continuará seus esforços para difundir a influência da China em detrimento dos Estados Unidos, procurando afastar Washington de seus aliados e parceiros, e criando normas internacionais que favoreçam o sistema autoritário chinês. O documento sugere ainda que os EUA precisarão estar preparados para conflitos de guerra híbrida situados entre guerra e paz.

Um indício que as relações bilaterais entre os dois países poderão se deteriorar foi a decisão da  administração Biden de resgatar a polêmica sobre a origem do vírus da Covid-19. Diferentemente de Trump, Biden quer obter um “parecer científico” sobre a questão.  Entretanto, no prazo de poucas semanas nenhuma conclusão minimamente confiável pode ser alcançada.

Um versão que apareceu na mídia no começo do mês é que o Pentágono deu 39 milhões de dólares para a entidade de caridade EcoHealth Alliance, que financiou pesquisa sobre coronavírus em Wuhan, no laboratório chinês que vem sendo acusado de ser a origem do surto  do vírus Sars-CoV-2.

Cui Liru, do Taihe Institute, um importante  think tank chinês sediado em Pequim, considera que é necessário que as duas nações discutam como lidar com a competição estratégica em temas sensíveis e de alto risco. O desafio de longo prazo será “explorar conceitos e práticas que construam pontes que ajudem a superar as diferenças estruturais”.

O autor é professor aposentado da UENF e responsável pelo blogue Chacoalhando.

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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