O caso Lula na ONU e a distância entre a teoria e a vigência dos direitos humanos

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
[email protected]

O caso Lula na ONU e a distância entre a teoria e a vigência dos direitos humanos

Por Cristiano Zanin Martins e Valeska Teixeira Zanin Martins

Na sexta-feira (17/8), o Comitê de Direitos Humanos da ONU proferiu uma decisão histórica e de alta relevância para a defesa das garantias fundamentais ao acolher o pedido de liminar que apresentamos em favor do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para assegurar que ele possa “concorrer nas eleições de 2018” do Brasil, com “acesso adequado à imprensa e aos membros do seu partido político”.

Em 22 de maio, o mesmo órgão internacional já havia alertado o país para que não fosse realizada “qualquer ação que impeça ou frustre a apreciação” pelo comitê sobre as grosseiras violações a garantias fundamentais que apontamos no corpo do comunicado individual feito em favor do ex-presidente em 28 de julho de 2016 — mesma data em que anunciou que irá analisar o mérito das violações apontadas.

No pano de fundo do comunicado estão fatos notórios ocorridos antes e durante a ação penal em que Lula foi indevidamente acusado e condenado pela prática de “atos indeterminados” para, supostamente, beneficiar uma empreiteira em troca de uma parte do preço de uma afirmada reforma em apartamento em Guarujá (SP) que teria sido “atribuído” ao ex-presidente.

No início do procedimento internacional, apontamos violações aos seguintes dispositivos do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCPP):

·                     Artigo 9 (1) e (4): proteção contra a prisão ou detenção arbitrária;

·                     Artigo 14 (1): o direito a um tribunal independente e imparcial;

·                     Artigo 14 (2): direito de ser presumido inocente até que se prove a culpa por lei; e

·                     Artigo 17: proteção contra interferências arbitrárias ou ilegais na privacidade.

Em julho deste ano, requeremos ao comitê, adicionalmente, a análise de violação ao artigo 25 do PIDCPP, que impede a imposição de “restrições infundadas” ao direito de “votar e de ser eleito em eleições periódicas, autênticas, realizadas por sufrágio universal e igualitário por voto secreto, que garantiam a manifestação da vontade dos eleitores”. O pedido foi acolhido e também será objeto de oportuna apreciação pelo órgão internacional.

À época do protocolo do comunicado, possivelmente diante do ineditismo da medida e do desconhecimento da via, algumas vozes se levantaram para questionar a medida. Atualmente, outras vozes — em regra interessadas no desfecho do processo eleitoral ou mesmo em impedir a candidatura do ex-presidente por algum motivo — tentam converter a decisão e a obrigatoriedade de seu cumprimento pelo país em mera “recomendação” ou em situação de menor relevância jurídica.

Nada mais descabido. Em 2009, de forma soberana e juridicamente válida, o Brasil reconheceu a jurisdição do Comitê de Direitos Humanos da ONU ao aprovar o Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos por meio do Decreto Legislativo 311/2009. Vale dizer, aquilo que era facultativo — a aprovação do protocolo e da jurisdição do comitê — tornou-se obrigatório e vinculante a partir da edição desse ato normativo.

Neste ponto, relevante uma digressão. Após mensagem presidencial dirigida ao Congresso Nacional, o tema tramitou pelas comissões (i) de Relações Exteriores e de Defesa Nacional; (ii) de Direitos Humanos e Minorias; e (iii) de Constituição e Justiça e de Cidadania, todas da Câmara dos Deputados.

Na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional, a relatoria coube ao deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR), que ressaltou em trecho de seu parecer que foi aprovado em 24/5/2006:

Entendemos que não figura entre as preferências de regimes ditatoriais a assinatura de tratados internacionais de proteção aos direitos humanos e que, em 1992, o Brasil firmava aos poucos, sua democracia. Contudo, quase quinze anos se passaram entre a assinatura do Pacto e seus Protocolos e quase dez desde a recomendação das Nações Unidas. Cabe ao Congresso, portanto, envidar esforços para que a aprovação dos Protocolos seja realizada da forma mais expedita possível”.

No âmbito da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, a relatoria coube ao deputado Bosco Costa (PSDB-SE), que apresentou parecer, aprovado em 4/9/2016, destacando o seguinte:

A adesão ao presente protocolo se harmoniza com a política adotada pelo Brasil em suas relações externas. O País já admite a competência de importantes órgãos internacionais de direitos humanos, nos âmbitos global e regional, para o exame de casos individuais, como a Comissão e a Corte Interamericanas de Direitos Humanos, o Comitê para a Eliminação da Discriminação racial e o Comitê para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres. Assim, a aprovação da competência do Comitê das Nações Unidas representa mais um avanço da política brasileira na defesa dos direitos humanos e no reconhecimento do indivíduo, em algumas situações, como sujeito de direito internacional”.

Por seu turno, na Comissão de Direitos Humanos e Minorias, a relatoria coube ao deputado Luiz Couto (PT-PB), que destacou em seu parecer, aprovado em 8/11/2006, o seguinte:

O texto é meritório. A adesão ao presente protocolo se coaduna com a política seguida pelo Brasil em suas relações externas, que, de maneira exemplar, defende a proteção internacional do ser humano. Nessa linha, o País já admite a competência de importantes órgãos internacionais de direitos humanos, nos âmbitos global e regional, para exame de casos individuais, como o Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial, o Comitê para a Eliminação da Discriminação contra Mulheres e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

A aprovação da competência do Comitê das Nações Unidas representa mais um avanço da política brasileira no reconhecimento do indivíduo, em algumas situações, como sujeito de direito internacional”.

O Plenário da Câmara votou a matéria em 5/6/2008, e o Senado, em 10/6/2009, resultando na edição do já referido Decreto Legislativo 311, que foi promulgado pelo então presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), em 16/6/2006.

Além da existência do aludido ato normativo que reconhece a jurisdição do Comitê de Direitos Humanos da ONU, o Brasil foi notificado sobre a existência do comunicado de Lula e, desde então, apresentou três manifestações perante aquele órgão. Em nenhuma delas o país recusou a jurisdição do comitê para analisar as violações apontadas pelo ex-presidente ou o caráter vinculante das decisões proferidas por aquela instância.

Ao contrário. Em manifestação apresentada em 27/1/2017, o Brasil afirmou: “219. O Estado brasileiro aproveita esta oportunidade para reafirmar seu compromisso com o Sistema de Direitos Humanos das Nações Unidas e particularmente com esse honorável Comitê de Direitos Humanos”.

Em outra manifestação, apresentada em 29/9/2017, a representação do país afirmou: “119. A República Federativa do Brasil reafirma aqui seu comprometimento com o Sistema das Nações Unidas de Direitos Humanos e com esse Comitê”.

É impensável e incompatível com a boa-fé, portanto, que, após confirmar o compromisso de respeitar as decisões do Comitê de Direitos Humanos da ONU por meio de decreto legislativo e também por manifestações no caso concreto de Lula, o Brasil possa se furtar ao cumprimento da decisão proferida pelo órgão internacional.

Oportuno lembrar, ainda, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal registra a obrigatoriedade da jurisdição das cortes internacionais de direitos humanos reconhecidas pelo Brasil. Embora se referindo à Corte Interamericana de Direitos Humanos, o decano da suprema corte, ministro Celso de Mello, fez registrar a necessária “observância, por parte dos Estados nacionais que voluntariamente se submeteram, como o Brasil, à jurisdição contenciosa da Corte Interamericana, dos princípios, direitos e garantias fundamentais assegurados e proclamados, no contexto do sistema interamericano, pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos” (STF, AP 470 AgR-vigésimo quinto, rel. p/ o ac. min. Teori Zavascki, voto do min. Celso de Mello, j. 18-9-2013, P, DJE de 17-2-2014).

A Procuradoria-Geral da República também já se manifestou no mesmo sentido. Na ADFP 320/DF, embora também se referindo à Corte Interamericana de Direitos Humanos, o órgão máximo do Ministério Público Federal defendeu perante o Supremo Tribunal Federal que “as decisões proferidas pela Corte em face do Estado brasileiro têm força vinculante para todos os poderes e órgãos estatais. O cumprimento de suas sentenças é mandatório, nos termos da obrigação internacional firmada pela República”.

Na mesma manifestação, o então procurador-geral da República fez referência ao artigo 7º do ADCT e concluiu: “Houve, pois, decisão constitucional originária de inserir o Brasil na jurisdição de uma — ou mais — cortes internacionais de direitos humanos, o que constitui vetor interpretativo de conciliação do Direito e da jurisdição internos com o panorama normativo internacional a que o país se submeta, em processo integrativo também previsto nos §§ 2º e 4º do artigo 5º da Constituição”.

Acreditamos que o Brasil não irá se deixar contaminar pela antiga tentação de países que negam proteção a garantias fundamentais mediante a invocação de disposições do Direito interno. Até porque essa espécie de recusa é expressamente proibida pelo artigo 27 da Convenção de Viena sobre os Direitos dos Tratados, também aprovada pelo Brasil (Decreto 7.030/2009) sem qualquer reserva a essa disposição.

Buscamos superar, no caso Lula, a distância entre a teoria e a vigência real dos direitos humanos. O Comitê de Direitos Humanos da ONU apontou, por meio de suas recentes decisões, o acerto desse caminho e irá julgar o caso do ex-presidente Lula possivelmente em 2019. As determinações até aqui proferidas têm por objetivo impedir a ocorrência de danos irreparáveis ou que possam frustrar a execução da decisão final.

De acordo com a Observação Geral 33, editada pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU em encontro realizado em Genebra de 13 a 31 de outubro de 2008, “em qualquer caso, os Estados-Pares terão que utilizar de todos os meios que estiverem ao seu alcance para dar efetividade às determinações do Comitê”.

Esperamos que as autoridades brasileiras e também os agentes não estatais de alguma forma envolvidos cumpram as decisões do Comitê de Direitos Humanos da ONU, porque eventual responsabilidade internacional sobreviverá a governos, a mantados, nomeações ou concessões. É o Brasil, como Estado-parte, que assumiu a obrigação de dar eficácia às deliberações daquela Corte Internacional de Direitos Humanos.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

7 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. HÁ chegado o MOMENTO das

    HÁ chegado o MOMENTO das forças progressistas e legalistas deflagrarem uma campanha INTERNACIONAL clamando pela punição dos golpistas brasileiros, alegando pra tanto CRIME DE LESA HUMANIDADE cometido por alguns agentes políticos, juízes, desembargadores e militares que, empoderados por um GOLPE midiático, tentam colocar o brasileiro de joelhos

    ..se nunca começarmos, nunca estes PALHAÇOS serão condenados e enjaulados

  2. A lavajato e o apelo ao

    A lavajato e o apelo ao combate à corrupção são a “causa maior” que está sendo utilizada para justificar as “ofensas menores” aos direitos individuais e coletivos. 

    Já foi assim durante a idade média com a caça às bruxas impedindo o desenvolvimento do ciência e do conhecimento. Também foi assim com as cruzadas para libertar Jerusálem. Também foi assim com o movimento nazista contra os judeus, comunistas e os demais “não arianos”.

    Hoje essa causa maior justifica o direito aplicável a cada caso.

    Hoje no Brasil temos apenas um casuísmo de direito.

     

  3. O preso político mais importante do mundo
    Para Pepe Escobar, Lula é o preso político mais importante do mundo.

    Para ele, a desvalorização da lira turca é fichinha perto do que o mercado financeiro internacional pretende fazer com o real, caso Lula seja autorizado a disputar as eleições. O dólar a R$ 4 foi só o começo do terrorismo.

    http://blogdoalok.blogspot.com/2018/08/lula-arrasa-o-quarteirao-da-guerra.html?m=1

    Lula arrasa o quarteirão da Guerra Híbrida dos EUA, por Pepe Escoba

  4. advogados cumprem seu papel de criarem expectativas

    a história do comitê da ONU, em que até gente boa como Kennedy Alencar cai, é uma “fake news”. Noutro dia coloquei link da BBC Brasil com trecho do original que não saíra no documento entregue e reproduzido pelo GGN. E link do Cambridge sobre “Request”. O Comitê é um anexo da ONU e seus membros são independentes, “decidem” o que quiserem, isto é, não falam pela ONU. O documento foi assinado por 2 pessoas em nome do resto dos integrantes do mesmo comitê (cfe. FSPaulo). Hoje tem artigo no Estadão de que nem mesmo como recomendação aquele documento serve. É uma sugestão. Mas a defesa faz seu papel como entrar quase na calada da noite com um habeas-corpus sabendo de quem era o plantonista de Porto Alegre. E milhões de HC. Mas quem tá de opinião formada, crente, e não procura outras fontes, fica só numa versão, de nada adianta esta postagem. A defesa e a Direção tá num jogo muito arriscado pra o PT e pras esquerdas com tais brincadeiras.

    1. Se 29% dos eleitores prefere o PT, pq o Haddad tem apenas 4%?

      Se 29% do eleitorado prefere o PT e se, num cenário sem Lula, o Haddad pontua apenas 4%, isso significa que nas pesquisas de intenção de votos, o eleitor não está sendo informado que, no de Lula ser declarado inelegível pelo judiciário, Haddad é o candidato apoiado pelo Lula.

      Num cenário sem Lula, Haddad deveria pontuar 29%. Há algo de podre no reino dos institutos de pesquisa.

  5. Direitos negados.

    Lastimável observar direitos reconhecidos até pela ONU ao cidadão Luis Inácio  Lula da Silva negados por preconceito de agentes judiciários locais. Pior ainda é desconsiderar preferência eleitoral e esperança de cerca de metadade da população brasileira.

  6. Possibilidade jurídica de candidatura sub judice

    Porque o eleitor não poderia financiar campanha para alguém que ele não sabe se é candidato ou não?

    Até que seja declarada a inelegibilidade de pretendente a cargo político eletivo, o pretendente é candidato, da mesma forma que enquanto não transitar em julgado sentença penal condenatória, todas as pessoas são presumidas inocentes.

    Candidato cujo pedido de registro de candidatura esteja sub judice em decorrência de condenação criminal ainda não transitada em julgado pode fazer campanha eleitoral. Se ele for eleito e absolvido na ação criminal, ele assume. Se ele for eleito e condenado, ele não será diplomado nem tomará posse do cargo político para o qual foi eleito

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador