O planejamento econômico está de volta
por Cédric Durand e Razmig Keucheyan
Tradução Cesar Locatelli
Quando a URSS entrou em colapso, a questão do planejamento econômico parecia resolvida de uma vez por todas. Na luta entre o mercado e o plano, o primeiro conquistou uma vitória decisiva. Trinta anos depois da queda do muro de Berlim, o veredicto não é mais tão óbvio. Em todo o mundo, debates acadêmicos e políticos sobre planejamento econômico estão em ascensão.
Três razões explicam esse retorno inesperado. Primeiro, a grande recessão de 2008. Essa crise do capitalismo não apenas ilustrou, mais uma vez, a irracionalidade do mercado. Mas os esforços para contê-lo vieram com intervenções estatais de grandes proporções, financeiras e regulatórias. No mundo pós-2008, a vitória do mecanismo de mercado “livre e não distorcido” parece menos decisiva, afinal.
Em segundo lugar, a crise ecológica. Quando se trata de pensar sobre desenvolvimento sustentável, muitos tomam em consideração planejar sem usar a palavra. Atualmente, os especialistas referem-se a “cenários” ambientais, que proporcionarão um futuro livre de carbono. No debate sobre o “Novo Acordo Verde” (Green New Deal), estimulado pelo endosso de Alexandria Ocasio-Cortez ao projeto, a palavra “planejamento” é raramente usada. Mas a ideia de sujeitar escolhas produtivas e investimento a objetivos de longo prazo que não o lucro está claramente lá. Isso equivale ao planejamento econômico.
A terceira razão é o surgimento das tecnologias da informação. Formas históricas de planejamento foram sobrecarregadas com o chamado “problema de informação”. Os regimes socialistas do século XX tentaram substituir a coordenação pelo sinal de preços e a oferta e demanda pelo planejamento ex-ante. Isso foi feito para permitir uma alocação mais racional de recursos (recursos naturais, força de trabalho) e, assim, tornar as economias menos sujeitas a crises e desemprego. Entre outras coisas, isso implicava ser capaz de prever antecipadamente que necessidades satisfazer e fornecer essas informações às unidades de produção.
No século XX, o planejamento ex-ante claramente falhou. O que os consumidores querem e quanto desejam, são duas perguntas que os planejadores nunca conseguiram responder com eficiência. Reunir as informações necessárias para coordenar a atividade econômica revelou-se impossível. Para elaborar um plano, você precisa agregar informações no nível macroeconômico e, ao mesmo tempo, enfrentar incertezas inescapáveis na produção e mudanças nas preferências do consumidor. Além disso, isso deve ser feito em tempo hábil. Distorções na expressão de necessidades e inércia no aparato produtivo provocaram o impasse do sistema.
Uma das grandes questões do início do século 21 é: os algoritmos e os big data mudam a natureza desse problema? “A revolução do Big Data pode ressuscitar a economia planejada”, de acordo com uma coluna do Financial Times de setembro de 2017. As plataformas digitais são uma ferramenta poderosa para centralizar e gerenciar informações. Ao contrário do que aconteceu na URSS, essa centralização não é feita por seres humanos com faculdades cognitivas limitadas e propensas a erros e corrupção. Isso é feito por algoritmos.
A Amazon sabe muito sobre as preferências dos consumidores em muitos setores. O big data permite combinar coordenação macroeconômica (ou quantitativa) com microeconômica (ou qualitativa). As plataformas são capazes de agregar quantidades imensas de informações instantaneamente e, simultaneamente, acompanhar as preferências individuais. Isso, a burocracia soviética de planejadores nunca foi capaz de alcançar.
Nas últimas décadas, o software de planejamento de recursos empresariais (ERP – enterprise resource planning) se tornou um importante dispositivo de governança, tanto no setor industrial quanto nos serviços. Os ERPs mais poderosos permitem uma visão pan-óptica, em tempo real, do ecossistema em que as empresas se encontram. Isso reforça muito sua capacidade de controle e transformação.
O Walmart usa um programa de software chamado HANA como um incentivo para a inovação. Os dados fornecidos por 245 milhões de clientes, no ritmo de 1 milhão de transações por hora, por 17.500 fornecedores, pela atividade interna da empresa, e também dados externos com impacto nos negócios – clima, sentimento de redes sociais, indicadores econômicos – todos esses dados representam matérias-primas a partir das quais os analistas fazem inferências para resolver os desafios que a empresa enfrenta.
Contra todas as probabilidades, os algoritmos podem ser bem socialistas. É concebível que a Amazon, o Google ou o programa Industry 4.0, desenvolvido na Alemanha, se prepare para um futuro econômico pós-capitalista? Este argumento é desenvolvido por Leigh Phillips e Michal Rozworski no seu livro recentemente publicado People’s Republic of Walmart (República Popular do Walmart). O chefe do Alibaba, Jack Ma, também leva essa ideia muito a sério:
“Nos últimos 100 anos, passamos a acreditar que a economia de mercado é o melhor sistema, mas, na minha opinião, haverá uma mudança significativa nas próximas três décadas, e a economia planejada se tornará cada vez maior. Por quê? Porque com acesso a todos os tipos de dados, podemos encontrar a mão invisível do mercado”.
Planejar, obviamente, não é apenas um problema econômico. É político. Significa assumir o controle de importantes escolhas produtivas, que influenciarão todos os setores da vida social e também a relação entre sociedades e natureza. Consequentemente, implica um aprofundamento da democracia.
No século XX, o planejamento econômico veio com estruturas políticas autoritárias. Na URSS, uma burocracia de planejadores decidia as qualidades e quantidades de bens para produzir, isto é, quais necessidades satisfazer e quais não satisfazer. Isso era feito de cima para baixo. Mas essa correlação entre planejamento e autoritarismo não é inevitável. Por um lado, o capitalismo também gera seus próprios autoritarismos políticos, como mostra o atual aumento de governos “populistas” de direita.
Agora é a hora de ser criativo em questões de desenho institucional, de modo a combinar o controle democrático sobre a economia e a emancipação individual do consumismo. O planejamento econômico deve ser de baixo para cima. Experimentos em democracia “participativa” ou “deliberativa” têm sido numerosos em todo o mundo nos últimos vinte anos. Até hoje, contudo, grupos focais, júris de cidadãos, orçamentos participativos ou conferências de consenso não foram usados para influenciar escolhas produtivas.
O filósofo francês Dominique Bourg argumenta em favor de uma Assembleia do Futuro. Por meio da regulamentação, ela poderia assumir as escolhas sociais de médio e longo prazo, como as que afetam a mitigação e a adaptação às mudanças climáticas. Essa assembleia deve ter fortes poderes decisórios em questões de atividade econômica. As instituições atuais da democracia representativa permaneceriam no lugar, mas seriam atualizadas de modo a adaptar-se aos desafios do século XXI.
Transcender crises econômicas e destruições ambientais simultaneamente é o objetivo. O planejamento econômico democrático é o instrumento para reconstruir uma narrativa coletiva e implantar uma nova soberania ao longo do tempo.
Cédric Durand é professor-associado de Economia na Universidade de Paris Cite e autor do livro ‘Fictitious capital. How finance is appropriating our future’ (Capital fictício. Como a finança está se apropriando do nosso futuro).
Razmig Keucheyan ensina sociologia na Universidade de Bordeaux.
Artigo públicado originalmente em: https://www.opendemocracy.net/en/oureconomy/economic-planning-back/
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As novas tecnologias (robôs, IA, impressoras 3D, 5G etc) são, de fato, ferramentas poderosas, não apenas para o planejamento, mas também para poupar as pessoas de trabalhos enfadonhos ou estafantes.
Mas nada disso será para o bem das pessoas se a proposta for para domesticar o capital, como o autor propõe: ele fala em pós-capitalismo, mas na verdade se trata de planejar o mercado, mantendo o trabalho remunerado e o dinheiro (valor), como se fosse uma URSS turbinada e mais ou menos como a China já faz, mesclando mercado e estado.
Nada disso nos emanciparia do capitalismo, apenas aumentaria a simbiose mercado/estado em favor do capital, que seria preservado em suas categorias básicas: trabalho abstrato, valor e mercadoria. Até a competição, pelo visto, seria preservada e, ao que parece, a proposta do autor é uma espécie de social-democracia 4.0, que é inviável, pois a automação torna o trabalho obsoleto e não cria valor (que é constituido da exploração do trabaho).
O autor esnfrenta a catástrofe com mentirinhas, como diria o Nilson Laje, cuja leitura do capitalismo atual é muito melhor.
O big data e outras tecnologias da informação, envolvem conhecimentos e o que se tem no momento é uma luta constante pela apropriação deste conhecimento. Os grupos sociais, governamentais e empresariais, estão em uma constante luta pela apropriação deste conhecimento que vai se tornar uma das armas sociais mais poderosas. E já é uma arma importante em várias setores da sociedade. Mas esta é uma arma que depende como sempre da pergunta e dos objetivos. Usada por bancos e mercado, como já veem sendo usadas servem a objetivos de bancos e mercado. Usada por organizações políticas respondem a outras perguntas, e tem seus resultados interpretados de forma diferente. É portanto como todo conhecimento o objeto do desejo e instrumento político, isto é de poder. A luta pela apropriação deste conhecimento sera central nas lutas sociais e economicas.