Socialismo sem rupturas

Mais uma das análises definitivas da Maria Inês, fundamental para, no futuro, os historiadores poderem entender como se deu esse movimento do PT, de juntar teses “socialistas” com teses de mercado.

Todos os princípios programáticos descritos pela Inês seriam assinados por qualquer partido social democrata europeu. O “socialismo” – conforme a Inês demonstra – significa inclusão das massas no jogo democrático, Estado planejador e executor, pragmatismo no tema estatização (de um lado, fortalecer as estatais, mas não aumentar o seu número), ênfase nas políticas sociais e nos direitos dos cidadãos.

Essa caminhada, que fez a esquerda e a direita do partido caminharem para o centro – e moldarem uma social democracia – é um momento mágico para historiadores poderem acompanhar em tempo real como se constrói a história. E mostra que não são as grandes formulações teóricas que mudam países e governos. Elas entram mais como slogans ou movimentos individuais, como ideias colocadas na prateleira. Depois, as circunstâncias vão moldando as ações e sempre movimentando a história apenas quando a crise se apresenta.

Quando se encontra um governante com intuição capaz de entender e cavalgar os movimentos das águas, completa-se o ciclo. E ele é chamado de Estadista. No caso de Lula, o movimento deflagrador da virada foi a crise do “mensalão”, que colocou o governo a um passo do fim. Quando não se encontra o político adequado, a crise prevalece e países perdem o bonde.

É extraordinário apreciar os caprichos da história, principalmente através da análise de uma pessoa, a Inês, que consegue enxergar a história no momento em que está acontecendo.

Do Valor

Socialismo volta ao programa, mas sem rupturas

Por Maria Inês Nassif

O PT já esteve muito mais à esquerda do que está hoje; também já esteve muito mais à direita. Desde 2002, quando venceu um processo eleitoral imbricado com uma grave crise financeira – alimentada por um movimento especulativo de motivação também eleitoral -, a posição ideológica do partido tem sido mais movida pela conjuntura do que pelos grandes embates internos que marcaram a vida da legenda até o XII Encontro Nacional, de dezembro de 2001, responsável pelo último documento que foi produto de uma disputa acirrada entre suas tendências.

Segundo o secretário de Relações Internacionais do PT, Valter Pomar, da Articulação de Esquerda, a radicalização da oposição, a partir de 2005, levou a um paradoxo: enquanto a esquerda perdia espaço internamente, todo o partido se “esquerdizava”. “A burguesia, a direita, a oposição radicalizaram e o efeito foi ‘esquerdizar’ o partido, ou seja, trazê-lo da Carta aos Brasileiros para o programa do XII Encontro”, disse.

O PT, no seu 4º Congresso, que começa hoje, deve manter a tendência do 3º Congresso, de assumir-se como partido socialista democrático, sem, contudo, voltar ao período pré-XII Congresso, quando os grupos mais radicais chegavam a pregar a ruptura democrática. As teses apresentadas pelas tendências que disputaram o Processo de Eleição Direta (PED) do ano passado são um claro sinal disso: apenas a tendência mais radical, a Esquerda Socialista, fala em mudança no “modo de produção” e na “superação prática das relações capitalistas”.

“As teses do PED relatam a consolidação da ideia da revolução democrática no Brasil, do socialismo democrático. O PT, antes de ser comprometido com a ruptura, tem compromisso com o Estado democrático de direito”, afirma o ex-ministro da Justiça Tarso Genro. “Foi um caminho processual: não quebramos a ordem nem fizemos a revolução”, constata o deputado José Genoino, ex-presidente do partido.

O XII Encontro Nacional do PT, realizado em dezembro de 2001, aprovou “Diretrizes do Programa de Governo do PT para o Brasil”, documento coordenado pelo então prefeito de Santo André, Celso Daniel, num trabalho de costura das posições das facções mais à esquerda do partido e as do já consolidado Campo Majoritário , que havia feito uma forte inflexão ao centro como concessão para eleger Luiz Inácio Lula da Silva presidente. O documento professava o socialismo, mas admitia uma aliança com a “burguesia” – definia uma política de alianças mais ampla, uma exigência de Luiz Inácio Lula da Silva para concorrer em 2002, depois de ter sido derrotado em 1989, em 1994 e 1998 como candidato de uma coligação que sequer conseguia reunir todos os partidos que se diziam de esquerda. A “Carta ao Povo Brasileiro”, divulgada em junho de 2002, quando o dólar fazia uma escalada perigosa frente ao real, deu a guinada definitiva ao centro, prometendo continuidade na política econômica do governo tucano de Fernando Henrique Cardoso. O socialismo encolheu.

Em 2005, atingido em cheio pelo chamado Mensalão – série de denúncias de comprometimento da direção do partido com captação ilegal de dinheiro para financiar campanhas eleitorais -, o PT sofreu dois movimentos que teoricamente neutralizariam um ao outro. De um lado, perdeu a parcela mais radical da esquerda, que saiu com muito barulho e fundou o P-SOL. Isso teoricamente definiria o esvaziamento da esquerda partidária. De outro lado, foram excluídos do governo os integrantes do Campo Majoritário que detinham grande poder sobre as definições de política e política econômica, o então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e o chefe da Casa Civil, José Dirceu – e o controle exercido por ambos não era favorável às tendências de esquerda. Palocci era o fiador da política econômica ortodoxa, de continuidade à do governo anterior. Dirceu, segundo integrantes da esquerda, exercia controle sobre as minorias internas, dificultando o acesso delas ao governo petista.

O racha do P-SOL, na época um trauma partidário, conteve o avanço das tendências de esquerda quando a grande crise política do Mensalão colocava em xeque, internamente, o pragmatismo do Campo Majoritário (hoje chamado Construindo um Novo Brasil – PNB, que elegeu José Eduardo Dutra no Processo de Eleição Direta, o PED, de 2009). No PED de 2005, o primeiro depois do escândalo, o grupo que daria origem ao P-SOL concorreu à presidência do partido com Plínio de Arruda Sampaio. Derrotado no primeiro turno, Sampaio anunciou a saída do partido. Somados os votos de toda a oposição ao Campo Majoritário no primeiro turno do PED de 2005, ela tinha mais do que Ricardo Berzoini (SP), do Campo Majoritário; sem o grupo de Sampaio, a esquerda perdeu por 5 mil votos.

Para o secretário das Relações Internacionais, a “ironia da história” é que, a partir da saída desse grupo, o PT como um todo foi para a esquerda. Para o ex-presidente do PT, o deputado José Genoino, a dissidência “fez mais barulho do que deu prejuízo efetivo”. “A saída do grupo não foi representativa”, concorda o deputado Paulo Teixeira (PT-SP).

“A esquerda do PT começou a transitar no governo depois da saída do Palocci. Ele na economia, e Dirceu na política, limitaram muito o debate ideológico interno no primeiro mandato”, afirma Teixeira. Mas, para o ex-prefeito Raul Pont, da Democracia Socialista (DS), tendência também à esquerda do Campo Majoritário ), de alguma forma o grupo hegemônico, de centro, foi obrigado a ceder e “re-ideologizar” o PT, pois o pragmatismo do setor hegemônico não conseguiu, por si só, consolidar uma unidade partidária. Assim, foi obrigado a assumir “compromissos mais estratégicos”.

O fato é que, sem Palocci e Dirceu no governo, e mesmo sem o grupo que originou o P-SOL no partido, em 2006 os documentos do PT deram uma nova guinada à esquerda. Nas resoluções do 3º Congresso, em 2007, o socialismo democrático voltou a ser professado como opção ideológica sem que isso fosse considerado constrangimento político à legenda que ocupa o poder desde 2003, pelo voto direito, e já havia abandonado há algum tempo ideias de ruptura revolucionária. No documento final, o partido retoma a ideia de socialismo de forma clara, embora definindo o tipo de mudança que prega para o país: “A grande tarefa que o PT, o governo Lula, os movimentos sociais e as demais forças de esquerda têm pela frente é avançar na construção permanente de um governo democrático e popular com base em um projeto de desenvolvimento de longo prazo para o país, e que já está em andamento”.

“Além da reforma política e de mudanças na política econômica – com predominância do desenvolvimento sobre a estabilidade – temos de lutar por uma ampla reforma do Estado brasileiro”, diz o documento. E define a diferença entre o seu projeto e o do PSDB. “A direita tucano-liberal quer que o Estado apenas financie, não planeje. Nós entendemos que deve financiar e planejar.”

Segundo Genro, o debate sobre o socialismo nunca foi abandonado, mas foi obstruído. “A discussão permaneceu no partido durante todo o tempo, mas o PT ficou na defensiva em função da crise do socialismo real”, disse. “O socialismo democrático é uma visão que se consolida no PT desde 2002 e tem como ideia central a democracia como reguladora das relações entre o Estado e a sociedade. Hoje os partidos do mundo inteiro têm como ponto de partida de reflexão a questão da democracia.”

O que define um programa socialista, no entanto, não é a defesa de uma maior intervenção na economia – esse assunto transcende os partidos socialistas ou os governos considerados de esquerda depois da crise mundial do ano passado. “Exemplos de projetos inspirados na ideia do socialismos democrático são o alargamento do espaço da universidade pública, o repasse de recursos do Estado para diminuir a desigualdade de renda e a não-submissão do Brasil ao jugo dos países que definem o domínio do capital financeiro”, diz Genro. O “desenvolvimentismo” não necessariamente é considerado uma bandeira de esquerda, e o debate sobre o papel do Estado está situado na órbita do desenvolvimentismo. “Achar que o PT propõe a re-estatização é relativo. A capitalização da Petrobras foi muito importante para o Brasil durante a crise. As grandes empresas sabem que a gestão do PT ajuda o processo de internacionalização das empresas nacionais. O Programa Minha Casa, Minha Vida, teria sido inviável sem a capitalização dos bancos”, afirma a ex-prefeita Marta Suplicy.

Para a esquerda petista, o debate sobre o tamanho do Estado ou o seu poder de intervenção na economia não caracterizam o partido como mais ou menos socialista. Pomar vê, na história interna do partido, o período de 2003 a 2010 como o do debate entre “desenvolvimentistas versus os social-liberais”; hoje, o debate estaria se deslocando para uma polarização entre “desenvolvimentistas conservadores”, que não tocam nas reformas estruturais, e “desenvolvimentistas democrático-populares”, “que querem combinar desenvolvimento com democracia, igualdade e soberania”.

Para Raul Pont, da Democracia Socialista, embora o partido tenha colocado a palavra “socialismo” em seus documentos programáticos novamente, isso não se materializou no governo petista. “Para nós, ser socialista significa democratizar as decisões, aumentar a participação popular no governo”, opina. Para Pont, a proposta socialista não elimina a revisão de privatizações feitas no passado e cujas empresas são prestadoras de serviço ineficientes.

O fato de existirem internamente ainda essas posições, no entanto, não significa que todo o debate sobre o socialismo está liberado. “É preciso evitar fios desencapados”, afirma Genoino. “O idealismo é muito bonito, mas temos que ter cuidado para que isso não seja usado contra a ministra Dilma (Rousseff, candidata do partido à Presidência)”, completa a ex-prefeita Marta Suplicy.

Luis Nassif

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