Nova etapa do Mais Médicos, sem cubanos, esbarra em problemas antigos

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Da Agência Senado
 
A saída repentina de 8,5 mil profissionais cubanos do Programa Mais Médicos colocou o Brasil novamente diante da necessidade de resolver o problema do atendimento a comunidades que dependem única e exclusivamente do Sistema Único de Saúde (SUS). Algumas delas, bastante isoladas, como os 34 distritos indígenas, são ainda mais dependentes desse segmento da atenção básica promovida pelo governo.
 
A maneira como o Programa Mais Médicos foi estruturado, com alocação dirigida e com a participação de um contingente que, por contrato, estava ligado de maneira muito firme ao convênio, manteve esse setor da saúde em relativa estabilidade desde 2013. Naquele ano, críticas aos serviços prestados pelo Estado levaram o governo de Dilma Rousseff a lançar mão dessa estratégia emergencial. Assim como agora, havia queixas quanto à disponibilidade de médicos brasileiros para a tarefa. Estes não se dispunham, em grande número, a se deslocar para as cidades mais distantes e pobres do interior. Quando iam, desistiam em frequência maior que os estrangeiros ao enfrentarem dificuldades.
 
Com a volta dos cubanos, o País está tendo de providenciar o atendimento no curto prazo e reestruturar o programa para que ele seja sustentável com profissionais formados no Brasil ou aqueles, tanto estrangeiros quanto brasileiros, formados no exterior, mas sem um certificado de revalidação dos seus diplomas.
 
O primeiro edital do governo com o objetivo de suprir as 8.517 vagas deixadas pelos profissionais de Cuba teve 36.490 interessados e, como resultado inicial, a habilitação de médicos para 8.411 delas — 98,7%. Contudo, até as 10h de segunda-feira (17), só 5.935 médicos, ou seja 70% dos habilitados, haviam se apresentado aos municípios escolhidos. O número de localidades que já receberam seus médicos ainda não havia sido apurado até aquele momento.
 
A Unidade Básica de Saúde da Família do município baiano de Itabuna, por exemplo, passou a contar com um novo médico já no dia 26 de novembro. O município é conveniado ao programa desde 2013, e já havia recebido três médicos de Cuba.
 
Marcela Oliveira Falcão, administradora da unidade, informou que o funcionamento foi afetado durante uma semana, do dia 19 a 23 de novembro. Neste período, os doentes menos graves ficaram por conta das enfermeiras e outros profissionais de saúde. Quem precisou de um médico foi encaminhado para o centro de referência da cidade.
 
— Foi uma semana difícil porque a gente não esperava, mas conseguimos contornar, e a comunidade não ficou desassistida. Do dia 26 para cá nós já estamos funcionando com o novo médico, que deu um suporte inicial atendendo a demanda de forma espontânea — afirmou Marcela.
 
Itabuna tem motivos para comemorar: apesar do grande número de inscrições, 106 vagas, no Brasil todo não tiveram um candidato sequer.
 
É que a preferência dos médicos é por atuarem em centros urbanos. Não por acaso, 63 das 106 vagas estão em Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI), principalmente em estados da região Norte. No Amazonas, sobram 86 postos. Na região do Alto Solimões nenhuma das 22 vagas foi preenchida. No Alto Rio Negro, restaram 11 postos. No Amapá e no Pará, faltam 20 profissionais. Esses postos serão somados às vagas resultantes de desistências para compor as próximas etapas da convocação.
 
Até o momento, 2.476 médicos (30%) não compareceram ou iniciaram suas atividades nos postos para os quais foram designados. Se esse número for mantido, 2.582 vagas serão oferecidas no edital seguinte, para o qual já se inscreveram 10.205 médicos brasileiros ou estrangeiros formados no exterior, conforme o Ministério da Saúde. As inscrições foram finalizadas no domingo (16). Nos dias 20 e 21 de dezembro, os médicos brasileiros com registro nos conselhos regionais de medicina, portadores do ambicionado CRM, terão uma nova chance de participar do programa para preencher vagas de desistentes. Aqueles sem registro poderão pleitear as vagas nos dias 27 e 28. Em seguida, nos dias 3 e 4 de janeiro, as oportunidades serão abertas para estrangeiros formados no exterior e sem registro no país.
 
Rotatividade
O primeiro edital desta nova fase não apresenta soluções novas para evitar a rotatividade dos profissionais. Garantir que os médicos, especialmente os brasileiros, cumpram os três anos de contrato é um dos desafios do programa. Dados do Ministério da Saúde, referentes ao período de 2013 a 2017, indicam que 54% dos brasileiros desistiram em até um ano e meio depois do ingresso. Já os estrangeiros permaneceram mais tempo no programa. A maioria dos cubanos ficou mais de dois anos e meio.
 
Entre brasileiros e estrangeiros, a maior parte dos desistentes (58%) atuava em periferias de capitais e regiões metropolitanas e áreas consideradas de extrema pobreza. É justamente neste último grupo de municípios que estava fatia significativa dos cubanos (35%, contra 25% dos brasileiros).
 
Em Itabuna, os médicos estrangeiros cumpriram seus contratos devidamente. O único brasileiro deixou a vaga para fazer uma especialização, conforme a administradora da unidade de saúde municipal, Marcela Oliveira.
 
— O brasileiro depois de um tempo passou na residência e acabou indo [embora]. O médico cubano ficou sozinho na unidade por um bom tempo, esse ano praticamente inteiro — explicou.
 
De acordo com as regras do Mais Médicos, o profissional que se desliga do projeto em até seis meses deve devolver os valores recebidos de ajuda de custo e passagens aéreas. A ajuda pode chegar até a até três vezes a remuneração do profissional, atualmente em R$ 11,8 mil.
 
Para evitar a rotatividade, o Ministério da Saúde estuda mudanças no ressarcimento, cujas regas se tornariam mais rigorosas incorporando a devolução proporcional depois dos seis meses. Quem se desligasse na metade do contrato, ou seja, com um ano e meio de trabalho, devolveria metade do que recebeu.
 
Perdas e ganhos
Um dos resultados negativos do recente edital foram as 2.844 inscrições de profissionais que já atuavam no programa Estratégia Saúde da Família (ESF), segundo levantamento do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems). Foi, de acordo com o ditado popular, como descobrir um santo para cobrir outro, já que o Saúde da Família é tão essencial quanto o Mais Médicos.
 
O ministro Gilberto Occhi informou que a pasta está fazendo um levantamento dessas transferências. E garantiu que não serão permitidos desligamentos de um dos programas para aderir a outro em uma cidade diferente, se o município de origem for também cadastrado no Mais Médicos. Além disso, será cumprida a regra de só permitir a migração de médicos para municípios com perfis de vulnerabilidade maiores do que aqueles em que atuam ou já tenham atuado.
 
Impactos e avanços
Mediado pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), o Mais médicos Desde o também prevê mais investimentos para construção, reforma e ampliação de Unidades Básicas de Saúde (UBS). Até há pouco tempo, tinha a peculiaridade trazer ao Brasil cidadãos de um país socialista, que não vê empecilho em reter parte dos salários de seus profissionais, dentro da lógica de que Cuba se define como um Estado baseado na solidariedade. De acordo com relatório de avaliação do programa entre 2013 e 2017 pela Comissão de Assuntos Sociais (CAS), o governo brasileiro gastou cerca de R$ 13 bilhões com o projeto. Cerca de R$ 7 bilhões foram transferidos a Cuba, por meio da Opas. Em 2018, os gastos com o programa foram de R$ 3,3 bilhões – R$ 200 milhões a mais que no ano passado.
 
— O Mais Médicos surgiu em momento delicado do atendimento da saúde brasileira. Nós estávamos sem médicos no interior mesmo com projetos que incentivavam a participação com salários mais altos e especiais via governo federal — explica a relatora, senadora Lídice da Mata (PSB-BA).
 
Antes da implementação do programa, a situação da saúde pública era preocupante. Dados de 2013 da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) indicavam que a proporção de médicos por habitante no Brasil (1,8/1.000) era menor do que em outros 33 países listados no estudo Health at Glance e também do que a média da OCDE (3,2/1000). Em Portugal, a média era 4,0. Cuba, por sua vez, contava com 7,5 médicos para cada mil habitantes.
 
Neste ano, antes da saída de Cuba, o Mais Médicos tinha cerca de 16,4 mil profissionais atuantes, dos quais aproximadamente 8.400 eram estrangeiros. No todo, eles atendiam 63 milhões de brasileiros, de acordo com o Ministério da Saúde. Ainda assim, havia déficit de 2.091 profissionais, correspondentes às vagas abertas, desde o final de 2017, com a saída dos que já haviam encerrado os três anos de contrato para atuação no programa.
 
Com o impeachment de Dilma em 2016, o ministério estava reduzindo número de médicos cubanos, que chegaram a 11.400. O acordo Opas-Cuba-Brasil acabou em novembro diante das declarações do presidente eleito Jair Bolsonaro (PLS), que não aceitava a recusa de médicos cubanos em revalidar os diplomas e a remuneração fatiada pelo governo da ilha.
 
Saldo positivo
O programa foi avaliado positivamente pela CAS. A relatora concluiu que o Mais Médicos possibilitou uma melhor distribuição de profissionais em regiões carentes e distantes, no interior e nas periferias, e uma maior cobertura de atenção básica e saúde da família, com mais consultas e procedimentos.
 
— É uma unanimidade entre os prefeitos brasileiros de todas as legendas partidárias. Porque até então os médicos não chegavam aos municípios. A população, os representantes e vereadores que vieram participar das audiências públicas só relataram aprovação — afirmou Lídice.
 
Consta ainda do relatório uma pesquisa conduzida pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pelo Instituto de Pesquisas Sociais e Políticas e Econômicas de Pernambuco (Ipeste) em 2015. Dentre os 14 mil usuários do programa entrevistados, em quase 700 municípios do país, 95% disseram estar satisfeitos ou muito satisfeitos com a atuação dos médicos do programa. Para 85% dos usuários a qualidade do atendimento havia melhorado; 87% afirmaram que o médico era mais atencioso, e 82% que a consulta resolvia melhor seus problemas. A nota média que os usuários deram ao programa foi 9 para um máximo de 10.
 
A avaliação positiva se confirma na opinião da dona de casa Terezinha de Jesus Alves da Silva, moradora de Campos Belos (GO). Em novembro, ela se consultou com uma médica cubana por causa de uma dor de cabeça:
 
— Gostei demais. Estou tomando a medicação até hoje. Agora como é que vai ser?
 
Em Itabuna, a administradora da unidade de saúde, Marcela Oliveira, destacou o cuidado no atendimento e a responsabilidade no cumprimento de horários pelos médicos cubanos.
 
Lado B
Apesar dos avanços apontados, o senador e médico Eduardo Amorim (PSC-SE) pondera no sentido de que, com a ajuda estrangeira, o programa não poderia ser uma solução definitiva para a saúde pública do país. A iniciativa teria sido sempre um “paliativo”.
 
— Primeiro, a gente não sabe com precisão a formação desses profissionais. O Estado teria que ter um detalhamento da formação deles antes de acolher. Segundo, se nós exigimos dentro do Estado brasileiro uma relação trabalhista honesta, correta e sobre princípios rigorosos dentro da legalidade que a nossa lei impõe, por que a gente vai fragilizar para uma situação como essa [a dos médicos cubanos]? — questionou.
 
No entender da de Lídice da Matta, que chegou a ser atendida por um médico estrangeiro, a controvérsia em torno da remuneração era usada para justificar um posicionamento ideológico:
 
— Não era um posicionamento de defesa do atendimento e da saúde do povo.
 
Na opinião do senador Otto Alencar (PSD-BA), que também é médico, independentemente de questões ideológicas, o programa garantia maior atendimento à população.
 
— Eles [profissionais cubanos] trabalham exercitando as suas atividades sem pedir carteirinha de identidade ideológica doutrinária de nenhum paciente. Quem perde [com a saída de Cuba], na verdade, é o paciente — protestou o senador.
 
Perspectivas
— Eu acredito que o próximo governo pensará em medidas, como nós pensamos também, com relação aos profissionais que se formam através do Fies e com relação ao serviço civil obrigatório, que também pode proporcionar a presença desses médicos em determinadas cidades — cogita Gilberto Occhi.
 
Apesar de concordar com a ideia de um serviço obrigatório, o senador e médico Humberto Costa (PT-PE) é cético quanto ao assunto. Ele destaca que os representantes da categoria não recebem bem as possibilidades aventadas.
 
— Esse programa [o Mais Médicos] levou muito tempo para ser constituído e qualquer outra saída enfrenta uma resistência enorme da corporação médica. Por exemplo, a instituição de um estágio obrigatório de um ano — observou o parlamentar.
 
Segundo Eduardo Amorim, um outro desafio da saúde pública brasileira é criar uma política pública de recursos humanos para o SUS que esclareça questões sobre dedicação exclusiva, valor de salários e horas de trabalho dos médicos e demais profissionais da saúde.
 
Revalida
A intenção de Bolsonaro é de cobrar o Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos Expedidos por Instituições de Educação Superior Estrangeira (Revalida) de todos os profissionais em atuação País. Essa medida atingiria cerca de 3,3 mil que atuam hoje como “intercambistas”. A favor destes há uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de 2017 no sentido de que a ausência de revalidação do diploma para os médicos do programa é constitucional.
 
Enquanto isso, o ministro da Saúde estuda formas de agilizar e tornar mais frequente o processo de certificação junto ao Ministério da Educação, o que deve ficar como subsídio ao próximo governo.
 
Orçamento
Do ponto de vista dos recursos, Occhi garantiu que em 2018 serão aplicados R$ 131,4 bilhões em saúde, um recorde para o setor, acima do piso constitucional de R$ 112 bilhões. A saúde e a educação têm sido preservadas dos efeitos da chamada Lei do Teto dos Gastos, a Emenda Constitucional 95, que limitou os gastos públicos por 20 anos. Contudo, dados do Orçamento da União coletados no sistema SIGA Brasil, do Senado, indicam que os gastos com saúde pagos até o momento representam apenas 5,7% de todo o orçamento efetivo da União. Já a Atenção Básica com Saúde signfica apenas 1,37 do orçamento total.
 
Em valores nominais, os recursos têm crescido 37% em 2018, na comparação com 2013. Mas, quando se considera os efeitos da inflação, medida pelo Índice de Preços ao Consumidor (IPCA), as mudanças não são significativas.
Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

1 Comentário

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  1. mais medicos
    Acho que agora e a hora dos médicos, enfermeiros e dentistas do Exército, marinha e aeronáutica irem prestar este tipo de serviço, afinal estes profissionais, por fazerem parte do contingente militar não tem essa opção de se recusarem a irem pras áreas indígenas ou de difícil acesso.
    Pra eles missão dada é missão cumprida !!!

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