Conceitos equivocados sobre deficiência intelectual e políticas de inclusão

Conceitos equivocados sobre deficiência intelectual e políticas de inclusão

Por Meire Cavalcante

Ao navegar pelo meu feed de notícias do Facebook, chamou-me a atenção o título de um texto [http://www.cartacapital.com.br/revista/891/a-tecnologia-que-faz-pensar] publicado por Carta Capital. “Telefones e tablets contra a deficiência intelectual”, dizia a chamada. Causou-me estranhamento o título da matéria. Deveríamos, por alguma razão, usar dispositivos tecnológicos “contra” uma deficiência? Como já estou acostumada a ver textos recheados de chavões sobre a deficiência, imaginei que o autor escreveria sobre esta como algo ruim, a ser combatido. Cliquei para ler. Foi então que descobri que: 1) A revista mudou o título original, que era “A tecnologia que faz pensar”, de uma coluna de saúde publicada originalmente na edição 891 da revista; 2) Apesar de o título original ser melhor que o atual, o texto não se mostrou menos recheado de chavões e preconceitos.

Sobre a escolha editorial da revista, fica um alerta: é fundamental que jornalistas avaliem bem o peso que as palavras podem ter quando são abordados assuntos específicos. Afinal, ao escolher o termo “contra”, o editor de conteúdo assumiu que deficiência é algo a ser combatido, remediado de alguma maneira.

Agora, sobre o texto, que fazia referência a uma pesquisa realizada com tablets e smartphones junto a pessoas com deficiência intelectual, aparece a afirmação de que “o principal e justo objetivo dessas pessoas e de suas famílias seria, portanto, que a tecnologia mudasse suas vidas para melhor, ajudando a incluí-las em NOSSA sociedade, que lhes é frequentemente hostil e cruel” (grifo meu). Quer dizer que a sociedade é “nossa” e “essas pessoas” estão fora dela? Nós, aqui, sem deficiência, e eles lá, excluídos? Bastava dizer sociedade, problematizando processos discriminatórios nela existentes, não?

Dando sequência à leitura, o autor diz: “Nossa política nacional de escola inclusiva não cumpre seu papel, quase todas as ações das escolas não são planejadas, são isoladas e adaptadas. Frequentemente não existe um tutor disponível para acompanhar a criança na escola, ali ela fica praticamente abandonada, vagando a esmo, exposta ao isolamento social ou ao bullying“.

Baseado em que o autor faz tal afirmação? É importante questionar, uma vez que a crítica foi jogada em meio ao texto, sem nenhum tipo de argumentação. O autor conhece o conteúdo da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/politicaeducespecial.pdf]? Conhece as ações de redes públicas de ensino que implementam o Atendimento Educacional Especializado – AEE, direito resguardado pela Constituição Federal, normatizado por meio da Resolução N. 4/2009 [http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/rceb004_09.pdf]? O autor sabe quais são os recursos e serviços de acessibilidade, atualmente, disponíveis aos estudantes público-alvo da Educação Especial no Brasil?

Sobre o tema de sua coluna – tecnologia – conhece o autor os recursos de tecnologia assistiva disponíveis aos estudantes e os programas e políticas públicas voltados à área, tais como PDDE – Escola Acessível [http://portal.mec.gov.br/par/194-secretarias-112877938/secad-educacao-continuada-223369541/17428-programa-escola-acessivel-novo] e o Programa de Sala de Recursos Multifuncionais [http://portal.mec.gov.br/pnpd/194-secretarias-112877938/secad-educacao-continuada-223369541/17430-programa-implantacao-de-salas-de-recursos-multifuncionais-novo]? Sabe quais critérios orientam a contratação de profissional de apoio (que o autor chama de “tutor”) no âmbito escolar [http://inclusaoja.com.br/2011/06/03/profissionais-de-apoio-para-alunos-com-deficiencia-e-tgd-matriculados-nas-escolas-comuns-nota-tecnica-192010-mecseespgab/]? Desconhece ele o fato de que, segundo a Política Nacional vigente, recursos e serviços de acessibilidade não são disponibilizados aos sujeitos devido à condição de deficiência, mas devido à funcionalidade e as necessidades específicas de cada um?

Nem todas as pessoas precisam de “tutores” (profissionais de apoio) só por terem deficiência intelectual. Isso é um preconceito, um chavão, uma afirmação baseada no princípio de que pessoas com deficiência intelectual não gozam de autonomia e nem têm capacidade para tal.

O autor coloca, ainda, a condição de deficiência como uma ameaça ao estilo “invasão de zumbis”. Diz o texto:  “Políticas erradas, como a negligência no combate ao mosquito Aedes e a consequente epidemia de vírus Zika, vão produzir uma legião de pessoas com DI. Devemos nos preparar para isso.” Legião? O que é isso? Quer dizer que o nascimento de pessoas com deficiência deve ser combatido como uma epidemia, um mal a eliminar? Com relação a esse tema, o Fórum Nacional de Educação Inclusiva (do qual sou coordenadora na região Sudeste), emitiu nota contrapondo esse discurso preconceituoso e perigoso [http://inclusaoja.com.br/2016/01/31/posicionamento-do-forum-nacional-de-educacao-inclusiva-sobre-microcefalia-causada-pelo-zika-virus/]. Em outro post, no Jornal GGN, também me manifestei sobre esse assunto [http://www.jornalggn.com.br/blog/meire-cavalcante/deficiencia-como-tragedia-ou-nosso-tragico-preconceito-0].

Devo também lembrar ao autor que não se usa, há muito tempo, o termo “normal” para designar pessoas sem deficiência. Afinal, se estas são “normais”, assumimos, por óbvio, que pessoas com deficiência são “anormais”. Deixo aqui o convite para a leitura do texto da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (MEC/2008), que, na parte sobre os marcos históricos e normativos, revisita as antigas práticas da Educação Especial:

 

A educação especial se organizou tradicionalmente como atendimento educacional especializado substitutivo ao ensino comum, evidenciando diferentes compreensões, terminologias e modalidades que levaram à criação de instituições especializadas, escolas especiais e classes especiais. Essa organização, fundamentada no conceito de normalidade/anormalidade, determina formas de atendimento clínico-terapêuticos fortemente ancorados nos testes psicométricos que, por meio de diagnósticos, definem as práticas escolares para os estudantes com deficiência.

 

Em contraposição a este modelo ultrapassado, a atual Política Nacional define a Educação Especial como modalidade transversal a todos os níveis, etapas e modalidades, que realiza o Atendimento Educacional Especializado (AEE); disponibiliza recursos e serviços; e orienta sua utilização na sala de aula comum. O AEE, garantido pela Constituição Federal, configura-se como uma das medidas fundamentais para a efetivação de sistemas educacionais inclusivos. De acordo com a Política, o público-alvo da Educação Especial são estudantes com deficiência, Transtornos Globais do Desenvolvimento e Altas habilidade/ superdotação.

A Resolução CNE/CEB Nº 4/2009, que institui as Diretrizes Operacionais para o Atendimento Educacional Especializado na Educação Básica, orienta para a organização e a oferta do serviço, prioritariamente, em sala de recursos multifuncionais da própria escola, no turno oposto ao da escolarização, podendo, ainda, ser realizado em outra escola ou em centro educacional especializado da rede pública ou comunitária, confessional ou filantrópica sem fins lucrativos. O Art. 2 da Resolução define que o AEE tem como função “complementar ou suplementar a formação do aluno por meio da disponibilização de serviços, recursos de acessibilidade e estratégias que eliminem as barreiras para sua plena participação na sociedade e desenvolvimento de sua aprendizagem”.

É urgente que nossos colegas da área da saúde, parceiros tão importantes para a garantia dos direitos fundamentais de todos e todas, se apropriem dos marcos políticos, legais e pedagógicos que regem as políticas públicas de inclusão escolar na atualidade. Estamos passando por um processo profundo de transformação de conceitos e práticas. E a compreensão da mudança do conceito de deficiência é o ponto-chave.

Com o advento da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU/2006), que desde 2009 tem efeito de emenda constitucional do Brasil (Decreto 6.949/2009) [http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm], e as políticas públicas decorrentes, os sistemas de ensino estão reorganizando seus serviços e reorientando suas práticas por entender que as dificuldades que pessoas com deficiência enfrentam para exercer seus direitos não são decorrentes de sua condição de deficiência, mas das barreiras que lhes são impostas.

Segundo o item “e” do preâmbulo da Convenção, “a deficiência é um conceito em evolução e […] resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas”. Considerar sujeitos com deficiência intelectual pessoas que precisam necessariamente de tutores, desconsiderando contextos, é um equívoco, uma barreira atitudinal.

O combate à discriminação e ao preconceito nas relações que ocorrem dentro das escolas independe de haver ou não pessoas com deficiência. O desenvolvimento inclusivo nas escolas exige que o Projeto Político-pedagógico seja pautado pelos direitos humanos. Por isso, a Resolução Nº 1/2012 (CNE/MEC) estabelece as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos [http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=10889-rcp001-12&Itemid=30192]:

 

Art. 2º A Educação em Direitos Humanos, um dos eixos fundamentais do direito à educação, refere-se ao uso de concepções e práticas educativas fundadas nos Direitos Humanos e em seus processos de promoção, proteção, defesa e aplicação na vida cotidiana e cidadã de sujeitos de direitos e de responsabilidades individuais e coletivas.

 

É de competência do Ministério da Educação a elaboração das diretrizes nacionais e apoio técnico e financeiro para a implementação das políticas públicas, em regime de colaboração e parceria com os sistemas de ensino estadual, municipal e distrital. A esses sistemas competem a execução e a oferta da escolaridade e dos serviços da educação especial. Vivemos sob um pacto federativo. É importante que os textos publicados colaborem no sentido de esclarecer a população sobre o que cabe a cada ente federado, em vez de apenas fazer críticas soltas e sem fundamentação.

As políticas públicas de educação inclusiva da última década foram efetivas e decisivas para garantir o acesso, a permanência e o aprendizado das pessoas com deficiência na escola comum. Em 2003, 71% das 504 mil matrículas de pessoas com deficiência eram em escolas ou classes especiais. Isso significa que tínhamos sistemas de ensino majoritariamente segregadores até então. Em 2014, o número de matrículas saltou para 886,8 mil, sendo que dessas 79% são matrículas inclusivas. Na rede pública de ensino, os dados são ainda maiores: Hoje, 93% das pessoas com deficiência matriculadas em escolas públicas estão em salas comuns (Censo Escolar/INEP/MEC). Outros indicadores podem ser conhecidos neste documento, disponível no site do Ministério da Educação  [http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=17655-secadi-principais-indicadores-da-educacao-especial&category_slug=junho-2015-pdf&Itemid=30192].

Evidentemente que há muito por fazer. Mas afirmar, generalizadamente, que as escolas do país realizam ações “não planejadas, isoladas e adaptadas” é um desrespeito com o trabalho duro de gestores públicos, professores, profissionais da educação, familiares e parceiros de outras áreas, que contribuem com a consolidação da educação inclusiva em todo o país. Muito temos a caminhar, mas o compromisso dos educadores brasileiros é, indubitavelmente, com a promoção de escolas democráticas, justas e abertas às diferenças. E isso merece todo o meu respeito.

Meire Cavalcante é jornalista e educadora

Redação

1 Comentário

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  1. Meire, parabéns pela

    Meire, parabéns pela explanação do assunto. Tenho certeza que embora ainda estejamos distante do que consideramos ideal, estamos no caminho certo e inclusão social é uma conquista gradativa. Não se muda uma realidade secular de exclusão de uma hora para outra, é necessário persistir, perseverar e acreditar que juntos podemos construir uma sociedade mais justa, fraterna e igual, pautada principalmente no respeito e na aceitação da diversidade humana. Saber que nas trincheiras da luta temos pessoas como você, nos enchem de coragem para continuar caminhando.

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