Democracia violada: os desafios políticos após a Era Trump, por Lauro Accioly Filho

Um exemplo de turning tables é o aumento da taxa de pobreza infantil nos Estados Unidos, com mais 3,3 milhões de crianças vivendo na pobreza.

Multidão de apoiadores de Trump na invasão ao Capitólio, em Washington, D.C., em 6 jan. 2021 (Crédito: TapTheForwardAssist/Wikimedia Commons)

OPEU – Observatorio Politico dos EUA

Democracia violada: os desafios políticos após a Era Trump

por Lauro Henrique Gomes Accioly Filho*

A crise política estadunidense impactou densamente o tabuleiro geopolítico para a população do país. Como destaca o sociólogo Manuel Castells, os Estados Unidos se configuram como representantes da democracia, enquanto modelo de regime político inviolável, cuja imagem de superioridade democrática nasceu da Revolução Americana e permaneceu sendo enaltecida desde então. Dessa maneira, a crise doméstica nos Estados Unidos fez com que diversos olhares estivessem atentos às suas movimentações, visto que era um desafio político estrondoso para o regime democrático considerado modelo para os demais, especialmente com o cenário de invasão ao Capitólio.

De acordo com Cristina Pecequilo, um dos maiores desafios para a atuação de liderança global dos Estados Unidos é a manutenção dos mecanismos de barganha doméstica. Para manter o status quo de holder of the balance, fez-se recorrente a produção de um imaginário de inimigo comum, a fim de limitar os desafios brandos do sistema político estadunidense, desenhado por uma dinâmica estrita de polarização.

O contexto se agrava quando os mecanismos de cooptação e de chantagem aplicados na agenda de política externa do país subestimam sua capacidade de controlar os equilíbrios regionais e globais, o que produz um obstáculo significativo frente às mudanças no equilíbrio de poder mundial.

À vista disso, o potencial chinês para disputa hegemônica ganha destaque com a primeira cúpula do Belt and Road Initiative, acentuando a cristalização do que Parag Khanna chama de Século Asiático, emergindo uma nova era da Rota da Seda.

Mapa da nova rota da Seda (Fonte: Unisinos; Crédito: Mercator Institute for China Studies/publico.pt)

O cenário, do qual a China “desafia” os Estados Unidos, não se restringe a fatores econômicos. Recentemente, a China lançou um relatório sobre violação de direitos humanos nos Estados Unidos, enfatizando questões como proteção de direitos civis, fragilidade do sistema político-eleitoral, crescentes desigualdades sociais e raciais no seu próprio território e violações, de caráter imperialista, do direito de outros países, entre outros temas.

O relatório expõe feridas e falhas da atuação dos Estados Unidos em âmbito doméstico e internacional, grifando que o Século Asiático ganha força com a fragmentação do poder estadunidense que desmorona desde os acoplados casos de ataques do Onze de Setembro, a Guerra do Iraque, a crise financeira de 2008 e com a eleição de Donald Trump, simbolizando uma profunda ruptura com os períodos de glória de seu domínio global.

Não à toa, a crise política nos Estados Unidos deu fundamento para a narrativa chinesa de questionar o papel de liderança que o poder do país proporcionava. A crítica não foge das entrelinhas dos aspectos econômicos, quando é afirmado no relatório que os políticos estadunidenses servem apenas aos interesses das oligarquias, não defendem os direitos básicos dos cidadãos e ainda se apropriam dos direitos humanos como uma arma para atacar outros países, tornando-se obstrutores do desenvolvimento global dos direitos humanos.

Livro - Chutando a escada: A estratégia do desenvolvimento em perspectiva  histórica em Promoção na Americanas

Esse recorte acena para o que Ha-Joon Chang aborda no livro Chutando a escada: a estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica (UNESP, 2004), quando contesta a narrativa projetada para restringir os avanços de países como a China, já que as políticas e instituições “boas” sob preceitos democráticos e do laissez-faire não foram usadas por países em desenvolvimento para alavancar suas economias. Deste modo, o que ocorre é uma imposição de padrões e regras internacionais que dificultam o progresso econômico dos países em desenvolvimento, impedindo-os de trilharem as vias seguidas anteriormente pelas nações já desenvolvidas.

Um exemplo desse turning tables é o aumento da taxa de pobreza infantil nos Estados Unidos, com mais 3,3 milhões de crianças vivendo na pobreza. Isso reflete um aumento de quase 70% nas violações do trabalho infantil desde 2018, cujos dados apresentam um percentual de 26% de menores empregados em ocupações perigosas no ano fiscal de 2022.

Trata-se do retrocesso de medidas de limitação do trabalho infantil em solo estadunidense, sendo uma pauta que já foi fundamento para isolar países que adotavam postura semelhante. De acordo com o levantamento do Economic Policy Institute, em média 14 dos 50 estados americanos discutem leis locais para reduzir barreiras ao trabalho infantil, enquanto oito já aprovaram tais medidas.

A questão da imigração, segundo o relatório, é outro ponto latente de violações de direitos humanos nos Estados Unidos, já que é abordada mais como uma ferramenta de luta partidária, sem soluções efetivas para o problema. Em contrapartida, o que acontece é um crescimento extremo de xenofobia e da violação de direitos humanos.

O documento menciona um recorde de, aproximadamente, 2,4 milhões de prisões de migrantes na fronteira do país, somente em 2022. Na fronteira ao sul, o número de imigrantes mortos chegou a 856. O que abre espaço para se deduzir que a imagem dos Estados Unidos de defensor dos direitos humanos está deteriorada.

No aspecto mencionado da imigração, cabe ressaltar trabalhos como o de Wendy Brown. A autora grifa os efeitos do neoliberalismo relacionados ao crescimento de migrações de pessoas do Sul para o Norte Global, evidenciando que – ela usa o exemplo do México – a maioria dos migrantes busca países do Norte Global, devido à falta de condições socioeconômicas em sua região. Porém, o lema do American Way of Life gera em contraponto o imaginário de alternativa do refúgio da vida precária, reflexo do sistema neoliberal.

Wendy Brown frisa que o aumento do fluxo migratório não se dá em um espaço oco, pois muitos dos empregos que esses migrantes buscam são aqueles, cuja mão de obra é precária nesses países. Sendo assim, muitos se submetem a tais empregos, ao passo que isso é desejado por grupos de interesses dos próprios países que recebem os imigrantes, já que podem tê-los com o baixo custo dos serviços prestados.

Desse modo, os Estados Unidos beiram a perda de seu componente de excepcionalismo tecido na Declaração de Independência, produto da Revolução Americana e que fomentou sua imagem de superioridade de regime político e, posteriormente, de líder global. Antes, florescia a concepção da consolidação de uma nação estar associada à implementação de um regime democrático ao modo estadunidense.

A conjuntura acima reflete as duras colocações dos Estados Unidos em relação a países como a China, pondo-os como violadores de direitos humanos, por buscarem políticas e instituições contrárias às que os estadunidenses definem como democráticas. No entanto, os países asiáticos estão cada vez mais abertos a terem seus pontos de vista colocados em consideração no cenário internacional, como reflete o relatório do governo chinês, ao buscar recapitular as posições de violadores e violados na comunidade internacional.

Lauro Henrique Gomes Accioly Filho é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Contato: [email protected].

** Primeira revisão: Simone Gondim. Contato: [email protected]. Segunda revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Contato: [email protected]. Primeira versão recebida em 9 ago. 2023. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

*** Para mais informações e outras solicitações, favor entrar em contato com a assessora de Imprensa do OPEU e do INCT-INEU, editora das Newsletters OPEU e Diálogos INEU e editora de conteúdo audiovisual: Tatiana Carlotti, [email protected].

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

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